Demian Guedes
Advogado, doutor em direito pela UERJ e autor do livro Autoritarismo e Estado no Brasil (Letramento/FGV, 2016).
Em meados da década passada, no renomado Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, uma aluna da graduação teve de comparecer à coordenação para obter uma certidão. O coordenador era um professor com quem a aluna tivera desentendimentos. Caminhavam em lados opostos de discussões, sem ilicitudes.
Na sombra do gabinete, a história foi outra. O professor, servidor público, ataca o desempenho acadêmico da aluna, chamando-a de “burra” e “vagabunda”. Ameaça seu futuro profissional, advertindo que poderia vir a prejudicá-la em concursos. Rindo, exige que ela olhe nos seus olhos. E, antes de emitir a certidão, faz a ofensa mais infame: ciente da bissexualidade da aluna, diz que seu sobrenome deveria ser Hiena, pois, segundo ele, as fêmeas dessa espécie “comem carne podre e fazem sexo entre si”. O caso foi recentemente noticiado na versão digital da revista Piauí.
Com receio de retaliações, a aluna buscou denunciar o ocorrido às autoridades da universidade, por meio do seu coletivo de mulheres, uma agremiação informal. Isso foi visto como um obstáculo ao andamento do caso. A UFRJ se limitou a marcar reuniões conciliatórias, no fundo a cultura de falsa cordialidade que protege a opressão.
Inconformada, a aluna paga o preço de sua exposição pública. Constituiu advogado e apresenta um requerimento formal, com todas as provas do ocorrido, que incluíam mensagens trocadas pelo próprio coordenador.
Passado um ano, a universidade nomeia uma comissão que determina a instauração de processo administrativo disciplinar. Observadas as formalidades, a comissão constata a ocorrência de ilícitos. Recomenda-se uma advertência, mas é reconhecida a prescrição.
A aluna apelou então ao Judiciário, em ação de indenização por danos morais, em face da UFRJ e do coordenador. Mas, o juizado federal liminarmente excluiu do polo passivo o servidor autor do fato. Não seria citado e não precisaria se defender. Diante das provas apresentadas, ao menos a universidade foi condenada a pagar uma indenização, majorada em sede recursal. O caso transitou em julgado em meados de 2020.
Após o pagamento da indenização, os advogados da aluna provocaram a UFRJ, para que exercesse o regresso contra o servidor, conforme dispõem Constituição e legislação. Até o momento, não há sinais de que se buscará tal ressarcimento. A única resposta foi uma nota encaminhada à reportagem da Piauí.
Em síntese, diante de um caso grave de abuso, o sistema de justiça administrativa brasileiro ofereceu como resposta: (i) conciliação teatral; (ii) advertência; (iii) prescrição; (iv) ilegitimidade passiva e (v) omissão no regresso de indenizações. Essa sucessão de fracassos não é acidental. São marcas de um sistema que não reprime, não repara, não educa e não previne.
Até agora, quem pagou pela homofobia do servidor público foram os recursos públicos. Quem foi penalizada foi a universidade.
As insuficiências da punição merecem um olhar do legislador, inclusive agora quando se discute uma reforma administrativa. A administração pública não pode pagar pelas ilicitudes do servidor.
Ao contrário. Quem causou a prescrição da advertência foi a universidade, inclusive. Esse lamentável desfecho só pode ser atribuído à sua inaptidão institucional e de seus processos, que precisam ser substituídos por outros, que levem em conta também os direitos de discentes e outros usuários de serviços estatais, suas fragilidades e desequilíbrios sistêmicos frente ao Poder Público.
O Judiciário não deve excluir o agente causador do dano do processo voltado à sua apuração. “Todo o sujeito de direito capaz é responsável pelos próprios atos”[1]. Entender de modo diferente é projetar na Constituição uma “imunidade de jurisdição” incompatível com qualquer concepção razoável de república.
E, uma vez paga a indenização pela Administração, não se deve cogitar discricionariedade das autoridades universitárias, do Reitor em última instância, no exercício do regresso contra o autor do dano, verdadeiro poder-dever cuja omissão pode caracterizar improbidade.
Seria oportuno o legislador atualizar as imposições da Lei nº 4.619/1965, há muito esquecidas, voltadas ainda para o arranjo institucional do regime constitucional anterior, quando procuradores da república eram obrigados a agir em casos com este. É preciso tornar responsabilidades efetivas. Atos devem ter consequências, não apenas sobre o erário.
O caminho contra a opressão e o abuso é sempre íngreme, mas precisamos garantir que ele exista.
[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 1055 - 1058.