Og Fernandes

Os fatos adiante narrados parecem extraídos de uma peça de Nelson Rodrigues(1912-1980). Não o são, contudo. Aconteceram, capítulo por capítulo.  Numa homenagem ao dramaturgo, os personagens receberam nomes fictícios encontrados em obras do autor. Algumas frases, escritas em itálico, igualmente são do mestre do teatro brasileiro. No mais, relata-se a vida como ela é.
Primeiro Ato 
Era um tempo em que ainda havia crime passional. À tardinha, a gente desocupada daquela rua suburbana sentava-se nas cadeiras dispostas na calçada, em conversas sobre a vida alheia, ou nos jogos de dominó. Nos dias úteis, o horário das conversas coincidia com a chegada de Arandir e da jovem moradora conhecida por Engraçadinha. Pouco depois das seis horas, o automóvel dobrava a esquina e percorria em marcha lenta os quase 150 metros da rua de chão de areia até alcançar o portão de ferro da residência da mulher.
Ali, o homem, com um certo jeito de fidalguia, acentuadamente mais velho do que ela, deixava a direção do carro e com gestos educados abria a porta do carona. A mulher recebia então o beijo de despedida. Ele retornava ao carro e partia. As línguas ferinas da calçada diziam que o dinheiro compra até amor sincero.
Arandir parecia alegre. O adulto não existe. O homem é um menino perene. Ela sentia-se amparada diante de uma vida difícil de arrimo de família. A paisagem da rua não deixava dúvidas: Engraçadinha e todos daquele lugar integravam a classe média baixa. Ou será a classe pobre alta? Subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos. De pouca idade, mas de muita beleza ela detinha todos os defeitos dos adultos e mais um: o da inexperiência. Não percebia os riscos da relação com Arandir.
Naquela sexta-feira, o casal cumpria o script rotineiro da volta ao trabalho. Os enamorados nem perceberam um fusca parado mais adiante na rua, a poucos metros da casa. Ao chegar ao portão, Engraçadinha fez o último aceno de adeus para o namorado. Um tiro vindo da direção do fusca atingiu-lhe a cabeça.  Morreu com o final da tarde.
Segundo Ato
Algo intrigava o Dr. Gardelão, delegado de polícia encarregado do inquérito. A perícia retirou do cadáver um projétil de pistola de marca famosa. Naquela região, matava-se de tiro de revólver e de faca-peixeira. A pistola parecia-lhe coisa de profissional. Ainda mais, um único e certeiro tiro na testa! Além disso, o vidro fumê muito escuro do carro impediu as testemunhas de mencionar as características físicas do autor do disparo. A autoridade verificou que a placa que fora anotada como pertencente ao fusca não possuía registro no Detran. Logo, o óbvio ululante, a placa era falsa.
Nas primeiras diligências, o delegado soube que Engraçadinha possuía um amante endinheirado, Arandir, que era casado com a engenheira Das Dores. Mas, e daí? Nada mais natural que um homem casado há muito tempo tenha uma namorada, pois as grandes convivências estão a um milímetro do tédio. Isso não seria suficiente.  Resolveu seguir outro caminho e investigar a origem da arma. Sabia que aquele tipo de pistola era vendida em poucas casas especializadas da cidade. Obteve das lojas a relação dos compradores do armamento nos últimos meses. A todos entrevistou para obter alguma pista. Alguém que conhecesse a vítima ou o casal.
Finalmente um deles, Durval, declarou que comprara uma pistola a pedido de uma amiga, a engenheira Das Dores, que solicitara o favor sob o argumento de que era mais fácil para um homem comprar a arma. Das Dores dizia que a cidade estava violenta e tinha muito medo de assaltos no trânsito ou em casa e que iria fazer um curso de tiro para evitar acidentes. Diante da justificação, ludibriado, Durval adquiriu a arma em seu próprio nome e entregou a encomenda à mulher. Idiota. O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota.
O delegado comprovou que Das Dores frequentara um curso de tiro. Finalmente, constatou que a mulher havia comprado um fusca há poucos meses, de cor correspondente ao fusca usado no crime. Mandou fazer uma perícia no carro, conclusiva de que havia resquícios de fita adesiva preta adulterando o número da placa. Diante das provas, interrogou Das Dores, que confessou o crime.
Revelou que desconfiava da traição do marido e contratou um detetive particular para segui-lo. Descobriu que Arandir apanhava Engraçadinha no trabalho e a deixava em casa invariavelmente no final da tarde. O profissional da espionagem seguia ocultamente os amantes e forneceu o endereço do domicílio da Engraçadinha à mulher traída. Engenheira que era, Das Dores articulou sozinha tudo o mais. Comprou o carro, pediu ao amigo para adquirir a arma a pretexto da insegurança pública e fez o curso de tiro. Numa certa tarde de sexta-feira, alterou com adesivos as placas do fusca e dirigiu-se à rua onde morava a rival. Resolveu a traição a seu modo.
Caso resolvido. Agora, era com a justiça.
Terceiro Ato
Dr. Almeida, famoso advogado criminalista da região, foi contratado por Das Dores, a essa altura já separada de Arandir. Sabia que é preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. No júri, a acusada narrou as desventuras da vida em comum com o ex-marido. Mulher traída e humilhada. Embora considerasse toda unanimidade burra, o advogado apostava na tese de homicídio privilegiado, notadamente porque havia muitas mulheres no conselho de sentença. Elas ficariam comovidas com a história de Das Dores e, quem sabe, identificariam naquele relato o drama de cada uma delas, ultrajadas que fossem por outra jovem mulher. Ré primária, mãe de família, sem antecedentes criminais, mulher sofrida, Das Dores recebeu uma sentença de 4 anos de reclusão, em regime brando.
Era o melhor resultado possível. Logo que proferido o veredicto, Das Dores foi agradecer o empenho do advogado Almeida. Até então discreto, o advogado fez a pergunta que a curiosidade do criminalista impunha:
- Das Dores, por que você matou a mulher e não Arandir, que foi o grande responsável pela tragédia?
Entre o choro e o ódio, a sentenciada respondeu:
- O quê? Eu passei a detestar aquele homem com todas as minhas forças. Ele destruiu a minha vida. Se ele morresse, não sofreria nada. Eu matei Engraçadinha porque ele tinha de sofrer pelo resto da existência.
(Pano rápido)
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*Jornalista e ministro do Superior Tribunal de Justiça

Lipstick kiss on shirt collar of man, on red background

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