Filipe Natal De Gaspari

Entre as causas de nossa fragilidade democrática, encontra-se o baixo grau de atenção prestado à história do direito constitucional brasileiro – tanto pela comunidade jurídica (que tem o dever de estudá-la) quanto pela sociedade (que tem o direito de conhecê-la). Comumente, o conhecimento limitado de nossa cultura constitucional conduz a uma simplificação de novos começos e provoca, com a mesma frequência, uma redução do senso crítico em relação às evoluções e involuções institucionais.
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Em manuais e cursos de direito constitucional, é comum encontrarmos abordagens que sobrevalorizem momentos de cesura (textos promulgados, golpes, revoluções) em detrimento de processos de transformação da constitucionalidade distendidos no tempo ou de comunicação e interação constitucional.
Nessas sistematizações, tudo se passa como se os textos promulgados (no caso de haver redemocratização) subitamente surgissem e apagassem o passado autoritário, assim como se golpes, acompanhados de diplomas normativos impostos (no caso de haver deterioração democrática), não tivessem que, de alguma maneira, absorver o sentido de constitucionalidade liberal que os precedeu.
Além disso, a recorrente ausência de menções ao passado do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>  – instituição que persiste em nossa história republicana – deveria, por si só, acender um alerta em relação às abordagens manualescas (ponto que avancei em outro ensaio aqui no JOTA<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e que não será o foco desta abordagem). A atividade decisória da Corte como comunicadora da constitucionalidade brasileira poderia dar margem a ricas investigações.
Narrativas fragmentárias e as suas limitações descritivas
O fato é que, nos manuais, a narrativa da história do direito constitucional brasileiro costuma ser apresentada de maneira fragmentária. Neles as constituições são colocadas lado a lado, em sequência, sem que haja qualquer iniciativa de situá-las em processos mais amplos de evolução ou involução da institucionalidade. Trata-se, portanto, de metodologia que aporta sérias limitações descritivas ao tema.
Quase sempre, trata-se de uma lógica de sistematização baseada em “cumes” (momentos de glória do constitucionalismo) e “vales” (momentos de ruptura). Em ambos os casos, a ênfase acaba recaindo sobre a cesura, salientando-se – ao menos em dimensão narrativa – grandes distâncias, grandes quebras, grandes etapas (supostamente incomunicáveis).
Em tal cenário, processos de deterioração institucional (quando sucedidos de golpes e ditaduras) e de transição (quando sucedidos do reestabelecimento da democracia liberal) acabam sendo praticamente esquecidos pela doutrina jurídica. Mesmo no caso das transições, sutilezas dos processos constituintes costumam ser ignoradas.
Em acréscimo, períodos de “convivência” de sistemas constitucionais em nosso passado depõem largamente contra tais sistematizações fragmentárias.
Embora com matizes políticos distintos, note-se que, entre 1930 e 1934, assim como entre 1964 e 1967<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, foram criadas zonas de “convivência constitucional”. Em ambos os casos, modelos mais liberais de constitucionalidade anteriores aos golpes (representados pelas constituições de 1891 e 1946, respectivamente) passaram a conviver com as intervenções dos poderes ditatoriais instaurados (via decretos e atos institucionais).
Entre 1930 e 1934, a Constituição de 1891 continuou a ser aplicada, assim como entre 1964 e 1967 a Constituição de 1946 continuava vigente.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Conquanto tenham-lhes imposto uma série de derrogações, os próprios atos e decretos das ditaduras indicavam expressamente a permanência de tais constituições (o que deve ser visto com distanciamento crítico, mas não pode ser ignorado).
O <a href="https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19398-11-novembro-1930-517605-publicacaooriginal-1-pe.html">Decreto nº 19.398/1930</a>, no art. 4º, preceituava que: “continuam em vigor as Constituições Federal e Estaduais, as demais leis e decretos federais, assim como as posturas e deliberações e outros atos municipais, todos; porém, inclusive as próprias constituições, sujeitas às modificações e restrições estabelecidas por esta lei ou por decreto dos atos ulteriores do Governo Provisório ou de seus delegados, na esfera de atribuições de cada um”. O AI1, por sua vez, destacava no art. 1º: “são mantidas a Constituição de 1946 e as Constituições estaduais e respectivas Emendas, com as modificações constantes deste Ato”.
É evidente que, em minha démarche, não pretendo deixar qualquer margem para que sistemas autoritários possam ser edulcorados ou tornados mais palatáveis. Não é disso que se trata. Pelo contrário: é pelo caminho do destaque das complexidades das transformações constitucionais que se criam as condições de uma plena e efetiva proteção da democracia, possibilitando-se que processos de degradação democrática não sejam mascarados pelo formalismo e pela falsa presunção de que textos constitucionais possam, por si só, impor barreiras à autocratização.
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Importa ver, tanto no regime instaurado em 1930 (Governo Provisório) quanto em 1964 (Ditadura Militar), que houve um processo conflituoso de convivência e interação de sistemas constitucionais, que está longe de encontrar a devida representação na doutrina tradicional. Na verdade, o uso do Direito e da institucionalidade (das mais diversas formas) é uma característica de governos autoritários<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Narrativas fragmentárias, por sua vez, tendem a impedir que regimes ditatoriais sejam vistos em toda a sua nefasta complexidade.
Em relação aos processos de transição no sentido da redemocratização, vale remontar ao que sucedeu à época da saída de Getúlio Vargas do poder em 1945. Neste caso, vê-se como as sutilezas envolvidas em processos constituintes merecem apresentações mais detalhadas.
A transição da Constituição autoritária de 1937 para o regime liberal instaurado pela Constituição de 1946 é um capítulo da história constitucional brasileira que merece nossa especial atenção (o próprio Estado Novo [1937-1945] não deve ser visto como um bloco monocromático, sendo possível, por exemplo, estudar os processos de degradação da ditatura ainda quando Vargas estava no poder).
Com a saída de Vargas do Catete, José Linhares (então Presidente do STF) assumiu a Presidência da República (de 30 de outubro de 1945 a 31 de janeiro de 1946). As “Leis Constitucionais” (“LC”) de nº 11 a 21<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, subscritas por Linhares, foram alterando o conteúdo da Constituição ditatorial de 1937, de modo a encaminhar o país para a redemocratização. Cumpre notar que, antes disso, a LC nº 9, de 28 de fevereiro de 1945, bem como o Decreto-lei nº 7.586, de 28 de maio de 1945, firmados por Vargas, já indicavam o provável cambiamento de regime político.
Para além da dimensão imediatamente eleitoral, a LC nº 12, de 7 de novembro de 1945, revogou o art. 177 da Constituição de 1937, que franqueava ao poder ditatorial realizar a “aposentadoria” ou a “reforma” dos funcionários civis e militares que fossem inconvenientes à ditadura. Ocorreria ainda a extinção do Tribunal de Segurança Nacional (LC nº 14 de 17 de novembro de 1945). Vale mencionar, em acréscimo, a revogação do art. 186 da Constituição de 1937, pela LC nº 16 (30 de novembro de 1945), que estabelecera o “estado de emergência” em todo o país, aumentando os poderes discricionários durante o Estado Novo.
Que manual ou curso chega a mencionar José Linhares como personagem relevante na transição do Estado Novo para o momento constitucional de 1946? Que manual apresenta e analisa a série de diplomas normativos que foram remodelando a Constituição de 1937 para que um sistema constitucional diverso, com vocações liberais e democráticas, pudesse se enraizar (via eleições e formação de uma Assembleia Constituinte [que já ocorreu sob a Presidência de Dutra])? Tudo se passa como se em um piscar de olhos a Constituição de 1937 tivesse dado lugar a de 1946.
<h3>Da literatura especializada aos manuais</h3>
Já é hora de revisitar a maneira como a história do direito constitucional brasileiro é narrada na doutrina jurídica tradicional, assim como a forma em que ocorre o seu estudo em nossas faculdades de Direito. Não me interessa problematizar aqui o tema dos manuais (o que é uma discussão de longo prazo), mas o fato é que estudantes e profissionais do direito em geral encontram em manuais e cursos uma importante – possivelmente a mais importante – fonte para os seus conhecimentos jurídicos. Se neles a história do direito constitucional brasileiro é apresentada de modo equivocado ou incompleto, o erro se enraíza na base.
No campo especializado, há novos estudos sobre a (ainda) pouco conhecida história constitucional brasileira. Mas, como a história do direito constitucional não pode ser matéria de iniciados, o conhecimento especializado deve ser incorporado pelos veículos “doutrinários” e pelos cursos jurídicos pelo país.
No mais, a proteção da democracia brasileira depende de uma compreensão histórica de como os processos de transformação constitucional efetivamente ocorrem, a fim de que progressos e retrocessos sejam, afinal, devidamente identificados – com a proteção e intensificação dos primeiros e o combate desses últimos. A retomada de nossa historicidade constitucional é um passo crucial na defesa da democracia.<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>

constituição

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JOTA

O conhecimento qualificado da história constitucional é pressuposto para a proteção da democracia 

História constitucional brasileira: para além da fragmentação narrativa

O conhecimento qualificado da história constitucional do Brasil é pressuposto para a proteção da sua democracia