Giovani Ravagnani

Daniel Becker

O que é o jeitinho brasileiro, afinal, senão uma forma de trapaça no dia a dia? O ardil tupiniquim que hoje nos assombra nada mais é do que um cheat da vida real que o brasileiro teve que desenvolver para enfrentar a burocracia ilimitada e a exploração ferina do colonizador português; o brasileiro, desde a criação do país, é um cheater sobrevivente. Mas a trapaça está aí desde que o mundo é mundo.
Nos desenhos, Bart Simpson, Pernalonga, Dick Vigarista, Maskara, Pica-Pau e muitos outros podem retratar, de forma cartunesca, grandes trapaceiros de nossa cultura. Nos esportes, para além daqueles que fazem o uso de esteroides e de doping, muitos outros truques têm sido utilizados: Roberto Rojas e o caco de vidro em 1989, o gol de mão do Maradona na final da Copa do Mundo, Máfia do Apito e o Campeonato Brasileiro de 2005. A trapaça não está presente apenas no ambiente dos esportes, ela também está intrincada na indústria do entretenimento: compra de ingresso meia-entrada sem justificativa, propina para furar a fila de um show, download de filmes piratas, compartilhamento de senhas de plataforma de streaming etc.
O e-sport, por misturar essas duas realidades, sofre duplamente. Jogadores  tentam trapacear ao jogar em ambientes multiplayer, principalmente utilizando softwares auxiliares que possibilitam benefícios ilegais nos jogos. É bom abrir parênteses que o cheat pode melhorar a experiência e a diversão do jogador quando ele está no modo de jogador único – os problemas surgem quando a competição envolve outros jogadores humanos e os cheats trazem vantagens indevidas que acabam com a competitividade dentro do jogo eletrônico.
Para quem ainda está um pouco por fora é importante contextualizar que o e-sport, hoje, é praticado quase que totalmente online e, portanto, de forma ubíqua no globo. Para poder competir, os atletas virtuais precisam se conectar ao jogo por meio de uma plataforma online - um provedor de aplicação de internet como o MercadoLivre, Netflix, Uber, PagSeguro etc. -, que oferecerá o ambiente adequado para a prática, e.g. Gamers Club, Steam, entre outros.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Em 2016, a o estúdio Riot Games ajuizou uma ação contra a LeagueSharp, software que operava no League of Legends, automatizando diversas funções como localização de adversários, aumento de precisão e o ganho de experiência. Para o estúdio, em violação aos termos e condições do jogo, o LeagueSharp permitia ainda que jogadores inescrupulosos ganhassem dinheiro por meio da criação e venda de contas artificialmente niveladas. Um dos principais argumentos da Riot Games era de que a LeagueSharp representava uma ameaça ao ambiente multiplayer online do League of Legends afastando dezenas de milhares de usuários que ficavam insatisfeitos com o sucesso desmedido dos cheaters no jogo.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Após um ano, a ação teve desfecho favorável para a Riot Games. O estúdio recebeu não só uma indenização de US$ 10 milhões, mas também assumiu o controle de todos sítios eletrônicos da LeagueSharp e o encerramento da empresa.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Em outro precedente, MDY Industries vs. Blizzard, a gigante criadora do World of Warcraft venceu uma disputa judicial contra a MDY, desenvolvedora de um bot chamado Glider, que permitia que uma espécie de piloto-automático dentro do jogo multiplayer. Curiosamente, a decisão judicial teve como base o Digital Millennium Copyright Act, a legislação americana criada para combater a pirataria na internet.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
O uso de trapaças e cheats foi assunto recente e causou muita polêmica, inclusive, em um dos maiores campeonatos online de Counter Strike do mundo, ocorrido em junho de 2020. como se um dos maiores tenistas do mundo tivesse sido acusado de doping em um torneio tão grande quanto Roland Garros. O suposto uso de cheats pela equipe Chaos ocasionou, inclusive, a eliminação da equipe brasileira MIBR<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Mas já temos um precedente brasileiro bastante interessante. Um jogador do notório Counter Strike ajuizou uma ação contra a Gamers Club para rever o banimento realizado pelas ferramentas de tecnologia da plataforma. O usuário ainda pediu ao juiz para ser indenizado pelo bloqueio.
Ao sentenciar o feito, no meio de julho deste ano, o Juiz acolheu os argumento da Gamers Club<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, reconhecendo que o banimento foi correto, uma vez ficou provado que o usuário “estava se valendo de software malicioso, o que lhe conferia vantagem indevida na competição”; e que ele mesmo reconheceu que teria emprestado sua conta para terceiro, o que é proibido, de acordo com os termos e condições de uso da plataforma da Gamers Club<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Em síntese, o órgão jurisdicional  reconheceu a validade da ferramenta tecnológica antitrapaça utilizada pela Gamers Club para banimento de um usuário, e manteve o bloqueio de usuário flagrado utilizando software que lhe trazia benefício competitivo, o qual permitia que pudesse enxergar entre as paredes do jogo, bem como por emprestar sua conta para terceiro<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.</blockquote>
Depois de levar este headshot da 5ª Vara Cível de Guarulhos, o usuário interpôs recurso de apelação, o qual está pendente de julgamento.
Trata-se de uma decisão paradigmática no Brasil, alinhada com a lógica prevista no Marco Civil da Internet para os provedores de aplicações de internet, como é o caso da Gamers Club, e com a contratualidade dos termos e condições da plataforma. Ao banir o usuário trapaceiro de seus sistemas, a Gamers Club o faz com base nos princípios previstos nos artigos 2º e 3º do Marco Civil da Internet e na literalidade de seus termos e condições de uso, em prol da manutenção do bom ambiente na comunidade – caso contrário, sem segurança e credibilidade, a plataforma perderia sua raison d'être.
Os desafios jurídicos da indústria de games são incontáveis.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> A criação de um ambiente adequado para os jogos online não é trivial e representa uma verdadeira dor de cabeça para desenvolvedores, estúdios e jogadores honestos. Mas a decisão da 5ª Vara Cível de Guarulhos é um verdadeiro alento para a comunidade gamer.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> D'ANASTASIO, Cecilia. Riot Sues Makers of League of Legends Cheating Software. Kotaku. Disponível em: <a href="https://kotaku.com/riot-sues-makers-of-league-of-legends-cheating-software-1785149554">https://kotaku.com/riot-sues-makers-of-league-of-legends-cheating-software-1785149554</a> - Acesso em 18 de jul. 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> CHALK, Andy. Riot awarded $10 million in Leaguesharp lawsuit settlement. PC Gamer. Disponível em: <a href="https://www.pcgamer.com/riot-awarded-10-million-in-in-leaguesharp-lawsuit-settlement/">https://www.pcgamer.com/riot-awarded-10-million-in-in-leaguesharp-lawsuit-settlement/</a> - Acesso em 18 de jul. 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> MCADAMS, Andy. Lawful Neutral: Cheating, copyright law, and the WoW Glider lawsuit. Massively Op. Disponível em: <a href="https://massivelyop.com/2020/02/28/lawful-neutral-cheating-copyright-law-and-the-wow-glider-lawsuit/">https://massivelyop.com/2020/02/28/lawful-neutral-cheating-copyright-law-and-the-wow-glider-lawsuit/</a> - Acesso em 18 de jul. 2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> GLOBO ESPORTE. CS:GO: jogadas da Chaos contra MIBR levantam suspeita de cheat. Globo Esporte. Disponível em: <a href="https://globoesporte.globo.com/e-sportv/csgo/noticia/csgo-jogadas-da-chaos-contra-mibr-levantam-suspeita-de-cheat.ghtml">https://globoesporte.globo.com/e-sportv/csgo/noticia/csgo-jogadas-da-chaos-contra-mibr-levantam-suspeita-de-cheat.ghtml</a> - Acesso em 18 de jul. 2020.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> De acordo com seu próprio site (<a href="https://gamersclub.com.br/">https://gamersclub.com.br/</a>), a  Gamers Club é uma empresa voltada dentre outras atividades, ao oferecimento de uma plataforma segura para que seus usuários joguem o jogo Counter Strike: Global Offensive pela internet. O principal objetivo da Gamers Club é o oferecimento de um ambiente seguro para a prática do jogo, ou seja, um ambiente que garanta que nenhum usuário esteja utilizando cheats ou se utilizando de qualquer tipo de trapaça para competir.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Sobre o assunto, vejam os seguintes matérias jornalísticas especializadas: Filipe Carbone, <a href="https://draft5.gg/noticia/banido-por-uso-de-cheat-na-gc-jogador-perde-processo-que-pedia-indenizacao-de-r-98-mil?amp=1">https://draft5.gg/noticia/banido-por-uso-de-cheat-na-gc-jogador-perde-processo-que-pedia-indenizacao-de-r-98-mil?amp=1</a>; e Jairo Junior, <a href="https://vs.com.br/amp/artigo/cs-go-gamers-club-ganha-causa-na-justica-contra-jogador-banido-por-hack">https://vs.com.br/amp/artigo/cs-go-gamers-club-ganha-causa-na-justica-contra-jogador-banido-por-hack</a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> No link a seguir, ótimos exemplos ilustrativos do cheats mais comuns dentro do universo Counter Strike GO: André Alves, <a href="https://www.ligadosgames.com/comandos-cs-go-cheats/">https://www.ligadosgames.com/comandos-cs-go-cheats/</a> - Acesso em 18 de jul. 2020.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> BECKER, Daniel; BRÍGIDO, João; CELANO, Paula. Jogos eletrônicos na ponta da lança do sistema jurídico-regulatório. JOTA. Disponível em: <a href="http://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/jogos-eletronicos-na-ponta-da-lanca-do-sistema-juridico-regulatorio-27062020">www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/jogos-eletronicos-na-ponta-da-lanca-do-sistema-juridico-regulatorio-27062020</a> - Acesso em 18 de jul. 2020.

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JOTA

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