Direito do Trabalho

Há relação entre coronavírus, ganhadeiras da viradouro, domésticas e trabalhadores de app?

O Coronavírus demonstrou que existe sim essa coisa chamada sociedade e visibilizou os trabalhadores informais

Crédito: Documentário "As Ganhadeiras de Itapuã"/ TV UFBA/ Reprodução (Youtube)

As ganhadeiras da Viradouro tomaram o Brasil um pouco antes do Coronavírus. A Escola de Samba Viradouro, ganhadora da competição de Carnaval mais importante do mundo, desfilou na Marquês de Sapucaí no dia 23 de fevereiro de 2020, no domingo de Carnaval, enquanto que o Covid-19 teve o primeiro caso confirmado no país no último dia de Momo, dois dias depois.

O desfile deslumbrante da Escola de Samba de Niterói mostrou a história das ganhadeiras de Itapuã, um grupo de mulheres negras escravizadas ou libertas que, no século XIX, lavava roupa cantando belas canções junto à lagoa de Abaeté, em Salvador. As ganhadeiras, em boa parte, prestavam os serviços de lavagem de roupas e com o “ganho” poderiam um dia adquirir a alforria. Aquelas que já estavam alforriadas realizam o trabalho para ganhar a sobrevivência por mais um dia.

Esse relato de luta por liberdade e sobrevivência conta, no entanto, somente uma parte do enredo maior. As ganhadeiras, e os ganhadores, eram negras e negros que formavam um mercado de trabalho que existia paralela e simultaneamente à escravidão nas grandes cidades brasileiras do século XIX, como Salvador e Rio de Janeiro. Os escravocratas urbanos utilizavam os cativos para realizar pequenos serviços ou comércio ambulante, ficando estes últimos com parte do “ganho”. Por isso esses trabalhadores eram chamados, além de ganhadores e ganhadeiras, de “escravos de ganho”. As mulheres, além de lavar roupas, vendiam quitutes ou bugigangas, costuravam, cozinhavam, serviam de ama de leite, trabalhavam como pedreira ou mesmo mendigavam. Já os homens tinham como principais atividades o transporte de pessoas e de mercadorias.[1]

Enquanto os proprietários dos negros lucravam com as vendas e serviços, havendo relatos inclusive que com sua parte poderiam passar anos sustentados só com essa renda, os trabalhadores tentavam ganhar a liberdade, quando cativos, e a vida quando “libertos”. O negócio era tão bom – para os proprietários, é claro – que alguns chegaram a manter, no Rio de Janeiro, empresas de aluguel de cadeirinha, nas quais negros de ganho realizavam o transporte, pela cidade afora, de brancos clientes da empresa. Deixe-se bem claro que o aluguel não era bem das cadeirinhas, mas das pessoas negras que carregavam o peso das cadeirinhas – e dos clientes transportados. Os relatos de europeus que visitavam nossas terras eram de horror e estupefação pela acintosa cena de folgados seres humanos brancos sendo literalmente carregados nos ombros por seres humanos de pele mais escura.[2]

Já a história do Coronavírus todo mundo conhece. No entanto, o vírus que assola o mundo revelou outra até então mais escondida: que os trabalhadores de plataforma e outros diaristas, como ganhadores do século XXI, são trabalhadores que arriscam suas vidas para ganhar o pão, a vida e a liberdade a cada dia, e estão completamente desprotegidos na falta de trabalho, ou no próprio trabalho, em relação à proteção em face da doença.   Agora abundam reportagens, aqui e no exterior, mostrando o absurdo da situação quando por redução da circulação esses trabalhadores ficam praticamente sem ganho algum, em situação de miséria. As domésticas diaristas, que por conta de injusta, preconceituosa e ilógica exclusão prevista em lei ficam, de um dia para o outro, sem nenhuma proteção. Todos sabem quem são os patrões dos trabalhadores de plataforma e todos sabem quem são os patrões das diaristas domésticas: tanto em um caso como noutro, os empregadores de fato logo surgem para tentar de alguma forma mínima – e insuficiente – remediar a situação.

A injustiça é gritante com toda a economia parada, mas o que poucos conseguem perceber é que, em um nível menor, essa injustiça que agora é patente ela ocorre todos os dias e deriva das escolhas realizadas em relação à proteção desses trabalhadores. Todos os dias esses trabalhadores correm para ganhar a vida e se, por acaso, há alguma inviabilidade de poderem sair para trabalhar, como uma doença, esse trabalhador perde: perde a vida, perde a casa, perde o carro, perde a motocicleta, perde a família. O filme “Você não estava aqui”, de Ken Loach, mostra maravilhosamente isso: um problema familiar, que pode ocorrer a todos e a qualquer um de nós, leva a uma série de eventos trágicos para os chamados enganosamente de “empreendedores de si mesmos” e seus familiares.

Hoje as mesmas atividades exercidas pelos ganhadores e ganhadeiras são realizadas por esses trabalhadores desprotegidos. As plataformas organizam o trabalho e retiram parte dos ganhos justamente desse tipo de trabalhador. É perceptível que as plataformas de trabalho somente se disseminam na exploração do trabalho desvalorizado que era realizado pelos escravos no século XIX. Como aconteceu na Europa dos 1800, o marchandage acontece na exploração de trabalhadores precários, retirando parte de seus ganhos. O ganho desses empresas simplesmente é retirado da remuneração do trabalhador. As plataformas nada mais são do que os novos mercadores de trabalhadores e estes se transformaram nos novos ganhadores.

Os ganhadores – seja no século XIX ou XXI – não são empreendedores de si mesmos: eles são trabalhadores, só têm o suor do seu rosto para dar e a sua desproteção traz não somente nas pandemias graves distúrbios para a vida em sociedade.

Sim, outra coisa que o Coronavírus nos ensinou foi mais profundo. O mote neoliberal histórico de Margaret Thatcher, que negou a existência da sociedade, afirmando que só existem indivíduos, caiu fragorosamente esta semana, conforme atestou o também conservador e sucessor da carniceira dos trabalhadores Boris Johnson, que, contaminado pelo vírus, afirmou com todas as linhas: “existe sim essa coisa chamada sociedade!”  O atual primeiro-ministro inglês não decretou o fim do neoliberalismo, ele simplesmente o reconheceu. Essa declaração é histórica e marca um ponto de virada. O Coronavírus mostrou que um doente em nossa sociedade pode significar a possibilidade de disseminação do agente causador a grande número da nossa sociedade. Ele mostrou que se para conter uma pandemia as pessoas devem ficar em casa e não trabalhar, há de se dar condições para que todas as pessoas não sejam obrigadas a se arriscar e sair para matar o leão do dia. Não basta ensinar a pescar e dizer vá lá: tem que ser realizada uma comunhão dos peixes pescados para a distribuição a todos que contam. Ora, o que o vírus nos ensinou é que todos contam, apesar da negação da realidade que fazem alguns governantes, mas que logo cairão na real, como aconteceu com o número um do Reino Unido.

O direito social, em especial o direito do trabalho, provam nesse momento difícil serem indispensáveis para o bom funcionamento da sociedade. Sim, essa que ressuscitou, e que, conforme já predizia Karl Polanyi,[3] ela sempre se reconhece como tal nos momentos em que o fascismo e outras pestes, por ele chamados de “moinhos satânicos”, ameaçam a sua sobrevivência.

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[1] REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

[2] SOARES, Luís Carlos. O “povo de cam”na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

[3] POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980.