Luciano de Souza Godoy

Sempre houve uma percepção geral dos brasileiros que há malfeitos, desvios e pagamento de propinas nos negócios do futebol profissional. Mas as últimas notícias, surpreenderam os mais céticos. Dois fatores colaboram decisivamente para isso – gira-se muito dinheiro e existe pouca transparência nos negócios.
Os direitos de transmissão dos eventos para a mídia envolvem milhões, possivelmente bilhões. Pagos pelos anunciantes das grandes redes de TV e de Rádio ao adquirem os direitos de empresas que intermediam tais contratos, vendo-se do outro lado as federações e os clubes. Quem paga a conta – o adquirente dos pacotes de transmissão nas TVs por assinatura ou mesmo os anunciantes na TV aberta e nos rádios. Difusamente, o consumidor.
Curioso que até o momento se falou muito de quem recebeu, mas nada de quem pagou.
Surge um debate nacional sobre a caracterização de corrupção nos negócios do futebol - há ou não há? A dúvida espelhada no título acima não se refere ao conceito leigo de corrupção; a percepção da sociedade é nítida que há improbidade na gestão do futebol. Quanto ao conceito jurídico, dúvida existe se o tipo penal de corrupção e de outros crimes contra a administração pública podem ser aplicados aos fatos noticiados - desvio de verbas das entidades que promovem o futebol no país, dos clubes diretamente, especialmente no locupletamento de verbas pagas por contratos de transmissão por redes de televisão dos campeonatos. E mais. Não só crimes, mas punições na esfera administrativa (multas e interdições) pela recente Lei Anticorrupção e, na esfera civil, com responsabilidade por perdas e danos.
As notícias dos últimos dias sobre o escândalo de corrupção e pagamento de propina nos negócios da FIFA me despertaram duas lembranças.
A primeira lembrança se refere a um episódio quando eu exercia a Magistratura em Franca, interior de São Paulo, em 2001/2002. O time de futebol profissional da cidade, a Francana, então liderando a segunda divisão do futebol paulista, respondia por dívidas impagáveis com o INSS. Houve a penhora do estádio e, levado a leilão judicial por cinco oportunidades, nenhum arrematante apareceu. Era um bom terreno, em região nobre da cidade, no entanto não havia interessados. Após algumas semanas, soube pela “radio-peão” que houve um movimento na cidade para que ninguém arrematasse o terreno do. Era uma atuação em prol da Francana de todos os cidadãos, os quais inibiram eventual iniciativa de um investidor imobiliário em prejuízo da arrecadação da Previdência Social.
E outra história. Há exatos 15 anos, eu era juiz federal em São Paulo. Veio para o meu julgamento uma causa do Esporte Clube Pinheiros contra o INSS com razões bem articuladas. Basicamente, o “Pinheiros” pedia as mesmas condições de pagamento (isonomia) das contribuições sociais patronais ao INSS que os clubes de futebol profissional. Justificava a isonomia pelo fato de haver já preparado centenas de atletas amadores para olímpiadas, campeonatos mundiais e panamericanos em diversas modalidades amadoras. Hoje eu sei, como associado do clube, que a natação, judô, tênis e atletismo se destacam e realmente colaboram para os poucos momentos de felicidades que os brasileiros sentem em jogos olímpicos.
A partir de 1998, houve uma alteração na Lei 8.212/1993 (custeio da Previdência) pela Lei 9528/1997, incluindo os §§ 6o a 10o ao artigo 23 daquela, criando base de cálculo e alíquota específica para os clubes com a modalidade futebol profissional. E assim continua até hoje.
Haveriam de pagar os clubes de futebol profissional a alíquota de 5% sobre a receita bruta gerada pelos espetáculos (assim menciona a lei). Não sei se a arrecadação favorece os clubes ou o INSS; imagino que seja vantajosa, senão o “Pinheiros” não iria desejar o mesmo sistema para um clube que incentiva outras modalidades que não o futebol profissional.
Fato é que sendo vantagem ou não, os clubes profissionais não pagam o mesmo que outras entidades. Aliás, não pagam nem isso. Há inúmeras matérias sobre o nível de endividamento dos clubes. E chegamos recentemente a ver a Presidência da República editar uma Medida Provisória (n. 671/2015), ainda não deliberada, criando um regime especial de parcelamento de dívidas fiscais aos clubes de futebol profissional. Isto é, nem o já estipulado em lei vem sendo pago.
É um grande parcelamento de todas as dívidas dos clubes com a União, com o INSS e com os próprios atletas (não pagam FGTS) geradas até dezembro de 2014, com desconto de juros, multa e encargos, para serem pagos em até 20 anos. E aqui se repara um erro – as entidades esportivas outras que não se ocupam do futebol profissional também podem se beneficiar do parcelamento fiscal previsto na medida provisória.
No entanto, na época, fui estritamente legalista e julguei em desfavor do “Pinheiros” – a lei distinguia, não poderia o intérprete igualar. Mantive inaplicável a sistemática que beneficia os clubes de futebol profissional dos clubes de esportes amador. Mas, verdadeiramente, aquilo me intrigou desde então. Como pode o esporte que gera rendas milionárias possuir benefícios fiscais e o esporte amador não?
Aliás, verdadeiramente válido o parcelamento previsto na MP n. 671/2015 , até porque o benefício exige como contraprestação uma melhor governança financeira e administrativa dos clubes de futebol profissional. E cria, no âmbito dos clubes de futebol profissional, a responsabilidade dos dirigentes por gestão temerária. Merecem aplausos!
Se há empenho do Governo em regularizar a situação fiscal dos clubes de futebol profissional e das entidades que o Governam, inclusive com um parcelamento fiscal em 20 anos das dívidas, bem como uma preocupação em melhorar a gestão do futebol brasileiro, existe sem dúvida um reconhecimento que há interesse público envolvido no tema. São recursos públicos, do Tesouro Nacional, dos contribuintes, do cidadão, que são utilizados em prol dos clubes e das entidades do futebol profissional.
Parece-me possível o enquadramento das negociatas no futebol profissional como corrupção nos termos da legislação brasileira. Desde 2000, foi incluído previsão legal no Código Penal (artigo 327) para equiparar a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal – e os clubes e as federações de futebol profissional podem ser consideradas entidades paraestatais sim.
E devemos ainda lembrar da Lei 9615/1998, chamada Lei Pelé, e a Lei 10.671/2003, chamado Estatuto do Torcedor, que regulam o esporte nacional, mas com grande dedicação ao futebol profissional. O futebol movimenta grande volume de negócio, gerando bilhões em renda, porque o brasileiro o “consome”. É a paixão nacional. Aliás, o próprio Estatuto do Torcedor o equipara a consumidor e as entidades patrocinadoras a fornecedores.
Se há interesse público, se há verba pública pelos incentivos dados e direitos de consumidores, haverá criminalização pelo desvio de verbas que deveriam ser destinadas aos clubes por meio de direitos de transmissão dos espetáculos. Os tipos penais envolvidos são diversos para o caso, ultrapassando as hipóteses do Código Penal nos crimes contra a Administração Pública. Pode haver lavagem de dinheiro, remesse ilegal ao exterior, bem como outros tantos previstos no Estatuto do Torcedor, cabendo à Polícia e ao Ministério Público a iniciativa do enquadramento, investigação e acusação, respectivamente.
Certo que há opiniões divergentes que sustentam ser o futebol gerido por entidades estritamente privadas, não lhe cabendo o enquadramento como ente paraestatal e, assim, excluindo estas entidades da fiscalização de contas e dos crimes contra a Administração Pública.
Importante mencionar que neste sábado, no Consultor Jurídico, há interessante matéria do jornalista Tadeu Rover exatamente neste temática, com vários depoimentos contra e a favor desta caracterização. (http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/brasil-fifa-nao-considerado-crime-corrupcao).
A responsabilidade administrativa pode vir por meio da atuação do Governo com multas e, especialmente, afastamento dos dirigentes improbos nos termos do Estatuto do Torcedor. Aliás, o mesmo também possui a previsão de responsabilidade civil, inclusive por meio de ação civil pública, a ser patrocinada ou pelo Governo, ou pelo Ministério Público, ou por entidade de classe.
E, por fim, aplica-se a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), com multas administrativas relevantes, ao se apurar que houve de um lado beneficiários indiretos com o ato de corrupção – patrocinadores e empresas de mídia que se beneficiaram das verbas publicitárias dos eventos esportivos; e, de outro lado, algum Governo Estrangeiro ou entidade pública ligada a Governo Estrangeiro que foi lesada por estes atos. Entretanto, esta lei de responsabilidade administrativa objetiva incide somente a atos praticados após a sua vigência – janeiro de 2014.
Muito trabalho há pela frente para as autoridades brasileiras. Este é o momento e a oportunidade de promovermos maior responsabilidade daqueles que fazem a gestão dos negócios do futebol no Brasil.
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Luciano de Souza Godoy, 45 anos, Advogado em São Paulo, sócio do PVG Advogados, Professor da Direito FGV SP, ex-Juiz Federal. É mestre e doutor em Direito pela USP e foi Visiting Scholar na Columbia Law School. Email – Luciano.godoy@fgv.br

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JOTA

Curioso que até o momento se falou muito de quem recebeu, mas nada de quem pagou

Há ato de corrupção no futebol?

Curioso que até o momento se falou muito de quem recebeu, mas nada de quem pagou