Thayana Felix Mendes

Em pleno 2021, o mundo se choca com o sofrimento das mulheres afegãs desde a retomada do poder pelo Talibã. Elas temem pelo retorno dos extremismos, dos casamentos forçados, dos estupros e das proibições de trabalhar e estudar. Já há notícias de obstáculos no acesso às escolas pelas meninas que, para se proteger, evitam sair de casa.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>No Brasil, um outro cenário de restrições à educação, infelizmente, ainda não choca a opinião pública, mas já chama a atenção de organizações da sociedade civil<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e de políticas públicas dos nossos entes federados: a pobreza menstrual.
A falta de produtos para higiene menstrual, de infraestrutura sanitária em casa ou na escola e de conhecimentos básicos sobre o ciclo reprodutivo da mulher é, desde 2014, reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma questão de saúde pública e de direitos humanos. Segundo o relatório da ONU “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, publicado em maio de 2021, mais de 4 milhões de meninas brasileiras estão privadas, em alguma medida, de itens básicos para cuidados menstruais nas escolas.
<blockquote class="jota-article__eye">São mais de 1,2 milhão de estudantes sem papel higiênico, 650 mil sem pias e sabão e 320 mil sem banheiros em condições de uso<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.</blockquote>
Despidas de renda familiar para a compra de absorventes na quantidade necessária<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, as meninas os substituem por pedaços de pano, jornal, sacolas plásticas, folhas de árvore e até miolo de pão, com risco à saúde e em manifesta afronta à dignidade humana. De acordo com a pesquisa “Impacto da Pobreza Menstrual no Brasil”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, com dados analisados pela antropóloga e professora da UFRJ Mirian Goldenberg, o papel higiênico é o substituto mais usual, e ao menos 80% das mulheres já o utilizaram alguma vez. Na região Norte do país, em dados alarmantes, tecidos já foram utilizados como substitutos por 53% das mulheres e as toalhas de papel por 44%.
Mais de 160 mil litros de sangue por mês, que precisariam ser contidos devidamente para alcance da dignidade menstrual dessas meninas, escoam de forma desumana. Mês a mês, a vergonha se transforma em ausência à escola e em prejuízos de aprendizagem, acarretando, em muitos casos, na evasão escolar. O estudo de Goldenberg aponta que 28% das estudantes já faltou à aula por não ter absorventes e que perdem, em média, 45 dias letivos do ano. As desigualdades de tratamento e de oportunidades de gênero, assim, se acentuam, com consequências que não podem ser ignoradas pelo poder público. A liberdade dessas meninas está violada, e, uma vez identificada a causa, a superação passa a depender da vontade política. Uma corrida contra o tempo que se renova em ciclos de 28 dias.
Em um momento de disputas ideológicas marcantes, o tema se mostra suprapartidário, chegando ao Congresso Nacional com muita força. Por um projeto de lei de iniciativa popular capitaneado por mulheres na internet, a distribuição gratuita de absorventes para pessoas em situação de rua ou de baixa renda foi proposta ao Senado Federal em 2019 (Sugestão n.º 43/2019). No final de 2020, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos recomendou ao presidente da República e ao Congresso Nacional a criação de uma política nacional de superação da pobreza menstrual e a aprovação do Projeto de Lei n.º 4.968/2019 (Recomendação CNDH n.º 21/2020).
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Este projeto de lei de iniciativa parlamentar, inspirado na Lei municipal n.º 6.603/2019 do Rio de Janeiro, pretendia instituir o Programa de Fornecimento de Absorventes Higiênicos nas escolas públicas. Ganhou corpo ao longo da tramitação e foi aprovado na Câmara dos Deputados em agosto, criando o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, seguindo para o Senado com previsões ainda mais amplas.
Em avanço histórico, o Projeto de Lei n.º 4.968/2019 foi aprovado nesta Casa legislativa na última quarta-feira, 14 de setembro, garantindo oferta gratuita de absorventes higiênicos para estudantes de baixa renda das escolas públicas; mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema; mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal e mulheres internadas em unidades de medida socioeducativa, através de dotações orçamentárias disponibilizadas pela União ao Sistema Único de Saúde (SUS). Segue, agora, para sanção presidencial.
Restou prejudicado o Projeto de Lei do Senado n.º 2.992/2021, decorrente daquela sugestão de iniciativa popular, que previa a inclusão dos absorventes higiênicos entre os insumos prestados pelo SUS, com acesso universal a todos os vulneráveis sociais que menstruam. Em contrapartida, a proposta a ser sancionada, incluiu o absorvente higiênico como item essencial na cesta básica dentro do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), adicionando um parágrafo único ao artigo 4º da Lei nº 11.346/2006.
Nos estados e municípios, também ficou evidente para partidos de esquerda, de centro e de direita, que o Estado precisava agir. Diferente da Guerra Fiscal tradicional, onde oferecem benefícios e desonerações tributárias para disputar e atrair investimentos, nesta guerra contra a pobreza menstrual as mesmas armas ganham outro sentido. Como benefício assistencial, a distribuição direta de absorventes femininos, tampões íntimos e coletores menstruais; como benefício fiscal, a isenção do ICMS incidente sobre esses produtos. Unidos do mesmo lado da trincheira, em uma “corrida armamentista” do bem, há um crescimento exponencial de programas de governo e de leis estaduais e municipais que tratam da dignidade menstrual, com inúmeros projetos tramitando nas Assembleias Legislativas e em Câmaras de Vereadores de todo o país.
Todos os estados da federação debatem medidas de combate à pobreza menstrual, no executivo ou no legislativo – ou nos dois. Alguns programas de governo já instituem prestações diretas, como a inclusão de absorventes higiênicos nas cestas básicas pela Lei n.º 8.924/2020 do estado do Rio de Janeiro; o acesso aos absorventes pelas mulheres em situação de vulnerabilidade social, pelas Lei n.º 23.904/2021 de Minas Gerais, Lei n.º 6.779/21 do Distrito Federal e Lei n.º 5.550/2021 do estado do Amazonas e; a distribuição de absorventes para as meninas nas escolas públicas, como o decreto que cria o programa “Dignidade Íntima”, no âmbito da Secretaria de Educação do estado de São Paulo.
Na contramão dessa história, o governo do estado da Paraíba vetou o aprovado Projeto de Lei n.º 1.436/2019, que instituía o Programa "Menstruação Sem Tabu". Apesar da mobilização de movimentos sociais, o veto foi mantido no último dia 23 de agosto na CCJ da Assembleia Legislativa, por 4 votos (masculinos) a 2.
No âmbito da incidência tributária, em tentativa de desonerar e facilitar o acesso à população de baixa renda, algumas Assembleias legislativas discutem a inclusão dos absorventes na lista de isenção do ICMS, que, pela cumulatividade residual, compõe o preço final do produto. Com a alíquota zero do IPI desde o Decreto n.º 8.950/2016, entre PIS, COFINS e ICMS, o absorvente tem tributação média de 34,48%, de acordo com o Impostômetro da Associação Comercial de São Paulo<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Ou seja, mais de 1/3 do valor de compra é destinado aos cofres públicos, porque a maioria dos estados brasileiros ainda os consideram um item de higiene supérfluo, como é o caso da Paraíba, que vetou a proposta de isenção.
Na dianteira da batalha pela essencialidade está o estado do Ceará, onde a SEFAZ anunciou, no último dia 01º, a isenção de ICMS sobre absorventes íntimos, coletores e discos menstruais. Sem ignorar que essa seletividade pode não gerar reflexos no valor de mercado, a exemplo da ausência de repasse ao consumidor da desoneração pela indústria e pelo varejo, o governo do Ceará adotou, ainda, uma sistemática de transparência fiscal, exigindo destaque da isenção na nota fiscal, com a dedução expressa do valor do tributo.
Resta bastante claro que o derramamento do sangue menstrual das mulheres pobres não pode mais ser admitido. A naturalização dessa violência à dignidade menstrual deve, sim, chocar. Assim como deve chocar a consideração de que os absorventes higiênicos ainda são encarados por algumas pessoas e entes políticos como artigos de luxo, não essenciais. Cabe, portanto, à toda sociedade brasileira a vigília e a pressão pela implementação dos programas distributivos e das desonerações fiscais, que não podem se tornar meras bandeiras eleitoreiras ou normas programáticas sem efetividade.
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<blockquote class="jota-article__citation"><a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Iniciativas como o projeto “Ame seus Ciclos” do Tributos a Elas, o “Livres para Menstruar” do Girl Up Brasil e o “Absorvidas”, pelo acesso a absorventes aos presos que menstruam, se somam na promoção desse debate junto às instituições e lideranças políticas e sociais.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation"><a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> UNICEF. UNFPA. Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos. Disponível em: <a href="https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf">https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf</a>. Acesso em: 12/09/2021.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation"><a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> De acordo com o referido relatório da ONU, o gasto médio declarado com a compra de absorventes para meninas de 10 a 19 anos é de R$ 3,82 para os quintis inferiores da pirâmide social contra R$14,17 para os quintis superiores. Ob. Cit.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation"><a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Pesquisa online realizada pela marca de absorventes Always em parceria com a comunidade online Toluna. Impacto da Pobreza Menstrual no Brasil. Disponível em <a href="https://www.alwaysbrasil.com.br/pt-br/meninaajudamenina">https://www.alwaysbrasil.com.br/pt-br/meninaajudamenina</a>. Acesso em 12/09/2021.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation"><a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Disponível em: <a href="https://impostometro.com.br/home/relacaoprodutos">https://impostometro.com.br/home/relacaoprodutos</a>. Acesso em: 13/09/2021.</blockquote>

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JOTA

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