Paulo Augusto Moreira Lima

A professora de matemática do terceiro ano primário apresenta o seguinte problema: 70% dos mortos por Covid-19 se concentram na população acima de 65 anos. Então pessoal, para reduzirmos o número de mortes, devem ser vacinados prioritariamente idosos com idade superior acima de 65 anos ou os veterinários? Acredito que ninguém duvida que as crianças irão acertar a resposta.
Parece simples e lógico estabelecer os grupos prioritários de vacinação, mas o problema é que o fácil é muito difícil de ser feito no Brasil, inclusive em políticas públicas.
<a href="https://conteudo.jota.info/saude"><img class="aligncenter wp-image-292716 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-saude.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Você quer entender por que seus pais e avós ainda não foram vacinados, mas um vizinho de 25 anos formado em odontologia, e que não exerce a profissão porque estuda para concurso, foi contemplado e postou vídeo no insta derramando lágrimas dos olhos de emoção ao ser vacinado?
Tomemos o Estado de Goiás para ilustrar o problema. Em algumas cidades de Goiás foram vacinados veterinários com prioridade sobre os idosos. Sim, é verdade que os veterinários são profissionais da saúde, mas estariam a merecer tratamento similar aos médicos que atuam na linha de frente? Estão em situação de risco superior aos idosos? E o mantra do respeito à ciência?
A campanha na capital de Goiás, além dos veterinários, também considerou como grupos prioritários todos os farmacêuticos, médicos e odontólogos no rol dos vacinados com prioridade sobre os idosos. Portanto, todos aqueles que estão inscritos nas entidades de classe, mas não atuam, ou estão em áreas administrativas, ou sem contato direto com pacientes, tiveram a oportunidade passar na frente dos idosos.
Se você, caro leitor, sentiu que algo não está correto, devemos concordar que o culpado não é quem aplicou a vacina. E muito menos os veterinários, médicos, odontólogos e farmacêuticos que foram convidados a se vacinar. Tenho certeza de que se pudessem, cederiam suas doses aos pais e avós.
E de quem é a culpa? Vamos aos fatos. A Coordenação-Geral do Programa Nacional de Imunizações, vinculada ao Ministério da Saúde, pasta dirigida pelo expert em logística general Eduardo Pazuello, elaborou, em 18/01/2021, um documento que se intitula “Informe Técnico – Campanha Nacional de Vacinação contra a Covid-19”. Na página 4 do “plano de vacinação”, consta que foram definidos grupos alvo da campanha: idosos (60 anos ou mais), trabalhadores da saúde, entre outros
<blockquote class="jota-article__eye">Veja, portanto, que em momento algum o Ministério da Saúde restringiu os profissionais da saúde aos que estivessem na linha de frente. Na verdade, o MS redigiu o documento<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> de modo que todos os trabalhadores da saúde fossem incluídos, na linha da frente ou não.</blockquote>
O Ministério da Saúde formou a tempestade perfeita: 1) conceituou os trabalhadores da saúde da forma mais ampla possível; 2) definiu todos os trabalhadores da saúde como grupo prioritário, sem adotar o critério da linha de frente (frontline); 3) para piorar, não houve definição da prioridade dentro da prioridade, ou seja, o Informe Técnico elaborada pela Coordenação-Geral do Programa Nacional de Imunizações não se deu o trabalho de dizer se vão primeiro todos os profissionais da saúde, ou se vão os idosos. Não vou poupar palavras, o Informe técnico de 18/01/2021 do Ministério da Saúde é tão ruim que deveria mudar o nome para DesInforme Atécnico.
Senti inveja do plano de vacinação do Reino Unido<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Além de terem disponibilidade de mais vacinas que nós, fizeram escolhas sensatas e pragmáticas. O grupo prioritário tem como eixo central a idade, pois a taxa de mortalidade aumenta com a idade. E firmaram prioridades dentro do grupo prioritário, na seguinte ordem: 1) residentes em abrigos para adultos e respectivos cuidadores; 2) maiores de 80 anos e trabalhadores da saúde da linha de frente; 3) maiores de 75 anos etc<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. O plano é simples, pragmático e lógico, evidente que não serve para nós, que apreciamos o dúbio e complicado.
Então o resto da estória nós já sabemos de cor. Com um plano de vacinação que não tem guidelines claras, cada um fez de um jeito. Algumas cidades estão vacinando com prioridade os que estatisticamente morrem mais, outras focaram nos trabalhadores da saúde da linha de frente, mas também incluíram os trabalhadores de saúde da linha lá de trás. Teve até Secretário de Saúde que vacinou a esposa fora do grupo prioritário por amor.
Fato é que o Ministério Público e Defensoria Pública já receberam centenas de denúncias sobre “fura-filas”. Interessante notar que parte das autoridades ouvidas a respeito dos supostos privilégios respondem secamente que houve cumprimento dos critérios do Ministério da Saúde. Adolf Eichmann<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> também alegou no seu julgamento que só seguia ordens de seus superiores. A questão sobre Eichmann, segundo a tese de Hanna Arendt, é a irreflexão, ou seja, a falta de capacidade de perceber que atos compatíveis com a ordem jurídica nazista eram moralmente desprezíveis. Creio que nem preciso completar o raciocínio aqui.
Certamente esse problema não terá solução fora do Poder Judiciário.  E vamos lá começar aquela cantilena da judicialização da saúde, do ativismo e da intromissão do Judiciário no Executivo. Se a judicialização da saúde é tratada por muitos como um mal, por certo é um mal necessário, ou, valendo-me do dito popular, “dos males o menor”.
Isso porque a judicialização da saúde nasce da falta de transparência da administração pública quanto a dados que deveriam ser públicos, assim como da ausência de clareza quanto aos critérios técnicos de tomada de decisão
Nessa perspectiva, quando não se adota o critério dos trabalhadores da saúde que estejam na linha de frente como grupo prioritário, e se decide por também contemplar na campanha de vacinação todos os biólogos e veterinários, equiparando-os a médicos intensivistas e enfermeiros, abre-se o flanco para discussão da questão em juízo. Em poucas palavras, enquanto a Lei de Gerson<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> estiver impregnada na administração pública brasileira, haverá judicialização da saúde.
<blockquote class="jota-article__eye">Portanto, não se pode criticar irrefletidamente as ações judiciais que questionem decisões administrativas relativas à saúde, se estas revelarem hipóteses de manifesto abuso de direito e desvio de finalidade. Neste caso, a judicialização da saúde é gestada e alimentada pelo próprio poder público.</blockquote>
Dessa vez, acredito que não vai funcionar colocar a culpa nos bodes expiatórios de sempre pela judicialização da saúde, ou seja, os advogados gananciosos, e os promotores de justiça e defensores públicos que ingressam em juízo porque “buscam os holofotes”.
Evidente que haveria maior espaço de decisão administrativa se estivéssemos com elevado estoque de vacinas. Mas levando em conta que ainda estamos a engatinhar na campanha de vacinação e temos pouquíssimas doses de vacina disponíveis, urge priorizar o que realmente deve ser priorizado.
Para concluir, se os governantes não procuram priorizar os que mais morrem na pandemia por atenção à eficiência, pragmatismo, e por dever ético e profissional, poderiam ao menos fazê-lo visando a agradar aos seus eleitores e a garantir o sucesso de suas carreiras políticas, ou para salvar a própria pele, livrando-se de futuros processos que questionarão o peso de suas escolhas e omissões na morte de milhares de pessoas. Uma hora a conta chegará.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Veja que no anexo deste Informe Técnico consta a definição de trabalhadores da saúde: “Trabalhadores dos serviços de saúde são todos aqueles que atuam em espaços e estabelecimentos de assistência e vigilância à saúde, sejam eles hospitais, clínicas, ambulatórios, laboratórios e outro locais. Desta maneira, compreende tanto os profissionais da saúde – como médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, biólogos, biomédicos, farmacêuticos, odontólogos, fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais, profissionais da educação física, médicos veterinários e seus respectivos técnicos e auxiliares – quanto os trabalhadores de apoio como recepcionistas, seguranças (...)”.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> https://www.gov.uk/government/publications/priority-groups-for-coronavirus-covid-19-vaccination-advice-from-the-jcvi-30-december-2020/joint-committee-on-vaccination-and-immunisation-advice-on-priority-groups-for-covid-19-vaccination-30-december-2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ; 4) maiores de 70 anos e indivíduos clinicamente vulneráveis; 5) maiores de 65 anos; 6) com idade entre 16 e 64 anos com condições que os coloquem em risco de doença grave e morte; 7) maiores de 60 anos; 8) maiores de 55 anos; 9) maiores de 50 anos.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém. Tradução de José Rubens Siqueira. Ed. 1999. São Paulo: Companhia das Letras.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> A expressão Lei de Gerson tem origem em uma propaganda dos cigarros Vila Rica feita nos anos 70 pelo meio campista Gerson da seleção brasileira. Gerson falava no comercial: "Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo de um bom cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!".

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JOTA

Enquanto a Lei de Gerson estiver impregnada na administração pública brasileira, haverá judicialização da saúde

Grupos prioritários de vacinação e a cantilena da judicialização da saúde

Enquanto a Lei de Gerson estiver impregnada na administração pública brasileira, haverá judicialização da saúde