Chico Cordeiro

Leonardo Pinho

Nathália Oliveira

A tal <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13840.htm">"nova política de drogas"</a> do governo federal insiste em priorizar internação, destinar recursos públicos para entidades privadas e impedir a atuação do controle social.
O projeto de desmonte de políticas públicas sobre drogas ganhou força a partir de meados de 2016, como consequência do golpe midiático-parlamentar, e exibe contornos dramáticos desde então. É um projeto articulado em vários níveis de governo para destruir todos os avanços alcançados nos últimos anos.
Seja no âmbito do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-da-saude">Ministério da Saúde</a> ou no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-da-cidadania">Ministério da Cidadania</a> – novo e poderoso ator no campo das políticas de drogas –, a determinação é comum e explícita: investir na internação como modo prioritário para “supostamente” tratar pessoas com problemas decorrentes do consumo de álcool e outras drogas.
<h3>Internação/institucionalização como solução mágica?</h3>
Nos últimos anos, o Ministério da Saúde aumentou o valor pago a hospitais psiquiátricos ao mesmo tempo em que boicotou e sucateou os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPSad) e as Unidades de Acolhimento (UA), que trabalham em consonância com os pressupostos da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm">Lei 10.216/2001</a>, priorizando o cuidado em liberdade, perto do lugar onde as pessoas com sofrimento mental vivem e se relacionam, sendo atendidas por vários profissionais de saúde.
Mais recentemente, foi publicada portaria do Ministério da Saúde que acaba com o financiamento de equipes de saúde que trabalham na desinstitucionalização de pessoas longamente internadas em hospitais psiquiátricos (<a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-596-de-22-de-marco-de-2022-387974558">Portaria 596/2022 do Ministério da Saúde</a>). Ou seja, a prioridade parece ser aprofundar a internação como forma de suposto cuidado, contrariando a legislação nacional e afrontando diretrizes técnicas da Organização Mundial da Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/oms">OMS</a>) sobre o tema.
Na mesma direção, a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred), vinculada ao Ministério da Cidadania, é um novo ator na política de drogas brasileira e que opera no mesmo terreno, expropriando responsabilidades do Sistema Único de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sus">SUS</a>). Neste caso, chama a atenção a destinação de bens e financiamento públicos priorizando entidades privadas que promovem exclusivamente a internação.
Segundo <a href="https://www.conectas.org/wp-content/uploads/2022/04/Levantamento-sobre-o-investimento-em-CTs-w5101135-ALT5-1.pdf">pesquisa feita por Cebrap e Conectas </a>publicada em abril deste ano , o financiamento da Senapred para vagas de internação em comunidades terapêuticas de 2017 a 2020, em valores atualizados, chega a R$ 309 milhões.
A Senapred lançou recentemente <a href="https://www.gov.br/cidadania/pt-br/servicos/editais-1/chamamento-publico/SEI_71000.011057_2022_04.pdf">edital no valor de R$ 10 milhões</a> para financiar a internação de pessoas que usam drogas em 33 novos hospitais psiquiátricos (Edital 03/2022 do Ministério da Cidadania). Além do valor destinado, é grave a adoção de um mecanismo de financiamento que passa por cima do funcionamento do SUS e suas instâncias de discussão, pactuação e deliberação, pois, no caso do edital, pretende-se financiar serviços de saúde sem pactuar com as gestões locais de saúde e com a estrutura de controle social do SUS.
O retrocesso nas políticas de saúde mental gerado pelas medidas acima é preocupante em vários aspectos. Do ponto de vista do cuidado às pessoas que usam drogas, práticas do passado, baseadas na lógica da internação/ institucionalização em hospitais psiquiátricos como suposta forma de tratar, possibilitam violações de direitos humanos básicos como recentemente documentado por diversos órgãos (<a href="https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/12/Relatorio_Inspecao_HospPsiq.pdf">Conselho Federal de</a> <a href="https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/12/Relatorio_Inspecao_HospPsiq.pdf">Psicologia e outros, 2020</a>). Estas mesmas violações são registradas em comunidades terapêuticas (<a href="https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relatorio-da-inspecao-nacional-em-comunidades-terapeuticas_web.pdf">Conselho Federal de Psicologia e outros, 2017</a>).
Em relação ao direcionamento de recursos públicos, trata-se de potencializar a destinação de milhões de reais por ano para hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas e enfraquecer propositalmente os serviços públicos como os CAPS e as Unidades de Acolhimento. Esta inversão do financiamento é estratégica para enfraquecer o SUS e suas modalidades de cuidado e interromper a continuidade de um processo exitoso iniciado há muitos anos, consistente com a legislação nacional e também com as deliberações das Conferências Nacionais de Saúde Mental. Estas iniciativas criam um sistema paralelo privado, que vai drenando o dinheiro público.
<h3>Destinação de bens e recursos públicos para entidades privadas</h3>
Outra característica que chama a atenção da gestão da política de saúde mental e álcool/drogas é a destinação de bens e financiamento públicos para o funcionamento/estruturação de entidades privadas.
Em novembro de 2021, a Sociedade Professor Heitor Carrilho, responsável pelo Hospital Psiquiátrico Professor Severino Lopes, localizado em Natal (RN), assinou Termo de Fomento para receber R$ 500 mil do Ministério da Cidadania com o objetivo de comprar uma usina de energia sustentável e melhorar as condições do atendimento no hospital. Na mesma direção, mas no mês seguinte, o Ministério da Cidadania destinou, via Termo de Fomento, R$ 250 mil para compra e instalação de Sistema de Energia Solar na Fazenda da Esperança Dom Marcelo (PB).
Apenas no dia 20 de abril de 2022, segundo informações publicadas no Diário Oficial da União, a Senapred doou 20 carros a comunidades terapêuticas que já contam com financiamento milionário do próprio órgão do governo federal. São veículos como Land Rover, Toyota Hilux, VW Amarok, entre outros, todos destinados para entidades privadas. Infelizmente os serviços públicos (CAPS, Unidades de Acolhimento) não foram contemplados.
<h3>Sistema de Justiça e Segurança Pública</h3>
É importante lembrar que as medidas adotadas no âmbito do cuidado são apenas um pilar de uma política de drogas baseada em uma perspectiva proibicionista intencionalmente racista, que se ampara na utopia de um mundo sem drogas, realidade que nunca ocorreu ao longo da história humana. O retorno que preconiza o cuidado baseado em internações na rede pública significa institucionalizar um alto número de pessoas pobres e negras, uma vez que esses são os marcadores da maior parte dos cidadãos que acessam serviços públicos.
Tal medida é semelhante a outra faceta da política de drogas, que fica concentrada nas áreas de segurança pública e no sistema de Justiça. Desde a mudança da Lei de Drogas em 2006, o encarceramento por delitos relacionados a drogas explodiu no Brasil, elevando o país à terceira população carcerária do mundo. Segundo dados do Infopen (Ministério da Justiça) de dezembro de 2019, o perfil das pessoas presas no Brasil é de maioria negra (67%), com especial atenção para quase 70% de mulheres presas por drogas. Além disso, é possível identificar que as pessoas presas são varejistas do mercado transnacional de tráfico de drogas, o que torna essa mão de obra facilmente reposta, enquanto as penitenciárias absorvem aqueles recolhidos nas ruas pela segurança pública.
Outro dado que também impacta nos números da saúde pública é a atuação bélica das forças de segurança nas regiões pobres das grandes cidades brasileiras. Ao direcionar o combate ao tráfico de drogas para as periferias e favelas, colhemos como resultados um alto número de homicídios com grande parte dos casos sequer elucidados. Além de invasões de domicílios sem mandado, agressões, torturas e tiroteios que causam prejuízos de diversas ordens no funcionamento do cotidiano desses territórios.
De acordo com o projeto <a href="https://drogasquantocustaproibir.com.br/">“Drogas: Quanto custa proibir”</a>, em 2019 a polícia brasileira matou mais de 6.300 pessoas, das quais 75% eram negras, e a maior parte dos presos por tráfico era réu primário. Em 2017, as instituições de segurança pública e do sistema de justiça criminal dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo gastaram mais de R$ 5,2 bilhões com a política de proibição das drogas, segundo o mesmo projeto.
<h3>Impedimento da atuação do controle social</h3>
Por fim, a criação da política de participação e controle social, realizada via conselhos de participação, como o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), contemplou assentos para representantes da sociedade civil organizada, de forma a ampliar o debate e buscar ouvir vozes sem relação institucional com governos. Este pressuposto democrático permeia todas as estruturas de controle social de políticas públicas.
No entanto, o governo federal atual, confirmando sua vocação para a intolerância ao contraditório, reconfigurou o Conad via <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9926.htm">decreto </a>presidencial de forma a ser composto apenas por representantes governamentais, silenciando as vozes da sociedade civil.
<h3>Reação</h3>
Para lutar contra esses retrocessos na política de cuidado às pessoas que usam drogas, foi realizada audiência pública no Senado sobre este tema, organizada pelo senador Humberto Costa (PT-PE). Contou com a participação de representantes da sociedade civil, Ministério Público e Defensoria Pública, além da deputada federal Erika Kokay (PT-DF) e da senadora Zenaide Maia (PROS-RN), que criticaram as medidas do governo federal. O senador e ex-ministro da Saúde Humberto Costa já deu entrada em projeto de decreto legislativo no Senado que susta os efeitos da portaria do Ministério da Saúde. Na Câmara, o deputado Alexandre Padilha (PT-SP) apresentou projeto com o mesmo objetivo. A suspensão do edital do Ministério da Cidadania está sendo solicitada pela deputada Kokay.
A Plataforma Brasileira de Política sobre Drogas, em conjunto com sua rede de organizações parceiras, convoca a todas as organizações da sociedade civil para unirmos forças contra este cenário de retrocessos. Um espaço estratégico de participação social com o objetivo de influenciar as diretrizes técnicas e políticas nas ações relacionadas à política de drogas é a V Conferência Nacional de Saúde Mental em suas etapas estaduais, distrital e municipais.
Nossa participação como usuárias, trabalhadoras ou gestoras do SUS na defesa de uma política de drogas que respeite os direitos humanos, priorize o cuidado territorial, enfatize as estratégias de redução de danos e altere a legislação sobre drogas vigente compõe o cenário da política de drogas que queremos!

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JOTA

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