Patrícia Aguedo

Nascido na Índia Britânica, George Orwell morreu em Londres, antes de completar 47 anos de idade. Embora breve, sua vida foi suficiente para criar ao menos duas obras primas da literatura – “1984” e “A Revolução dos Bichos” (Animal Farm). Enquanto a primeira, conhecida pelo “Big Brother”, traz um mundo distópico, essa última traz um mundo utópico, em que animais de uma fazenda tomam o controle da propriedade, no intuito de se autogovernarem sem a (nociva) influência dos humanos.
Com singular perspicácia, Orwell criou uma fábula que traz os desmandos do porco Napoleão (Napoleon), que afasta seu companheiro Bola-de-Neve (Snowball), com quem dividia o (recém conquistado) poder, para criar uma autocracia responsável por indicar a correta interpretação das regras da fazenda.
Criadas para proporcionar um melhor convívio entre os animais, num primeiro momento, as regras distinguiam quem era bom (quem tinha 4 patas ou asas), de quem era mau (quem tinha duas patas) e fixava alguns padrões de conduta (nenhum animal dormirá em camas, nem beberá álcool, tampouco matará outro animal). A regra máxima, símbolo do livro, é a de que “Todos os animais são iguais”.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Em razão dos acontecimentos descritos na obra (que não são citados aqui, pois se recomenda fortemente a leitura), as regras passam a ser reinterpretadas, numa espécie de “mutação constitucional”.
Na verdade, o que se queria dizer não era exatamente aquilo que foi dito. O que se queria dizer é que nenhum animal dormiria em camas “com lençóis”, beberia álcool “em excesso” e mataria outro animal “sem motivo”. A máxima “todos são iguais” passa a ser lida como “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros”.
Ainda que se trate de tema totalmente distinto (afinal, Animal Farm consistia numa crítica ao regime stalinista), o que se tem observado na prática quanto ao oferecimento de propostas de acordos de não persecução penal pelo Ministério Público é justamente uma orwellização das regras. Todos investigados são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.
O acordo de não persecução penal foi inserido e regulamentado pela Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que alterou a redação do Código de Processo Penal, criando o artigo 28-A. Mesmo antes da inovação legislativa, o tema já havia sido introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pelo artigo 18 da Resolução 181, do Conselho Nacional do Ministério Público, editada em 7 de agosto de 2017, que previa a possibilidade de acordo nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, desde que o investigado confessasse formal e detalhadamente a prática do delito e indicasse eventuais provas de seu cometimento.
Posteriormente, o referido artigo foi alterado pela Resolução 183, de 24 de janeiro de 2018, cujo texto serviu de base para a elaboração do novel artigo 28-A do Código de Processo Penal.
De acordo com as considerações feitas em seu texto inicial, a <a href="https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-181-1.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Resolução 181</a> teria sido editada no intuito de agilizar as investigações criminais, tornando-as menos burocratizadas e mais eficientes, bem como de otimizar os recursos Estatais (humanos e financeiros) na persecução penal e instituir uma política de desencarceramento, por meio de soluções alternativas.
Embora se tratasse de norma de questionável constitucionalidade formal, dado que versava sobre inovações no processo penal (inclusive objeto das ADI 5.790 e 5.793, ajuizadas pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pelo Conselho Federal da OAB), a nova regra passou a ser aplicada em <a href="https://www.conjur.com.br/2019-nov-27/mpf-firmou-mil-acordos-nao-persecucao-penal" target="_blank" rel="noopener noreferrer">larga escala</a>, quando todos os envolvidos (Ministério Público, juízes e defesa) estivessem de acordo, pois, de um lado, desafogava o já sobrecarregado sistema judicial e, de outro, trazia opções por vezes mais benéficas aos <a href="https://www.conjur.com.br/dl/mpf-acordos-nao-persecucao-penal.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">investigados</a>.
Com a introdução do instituto no Código de Processo Penal, contudo, os requisitos passaram a ser ex lege, surgindo o questionamento sobre a obrigatoriedade da propositura do acordo de não persecução penal por parte do órgão acusador.
Surge, então, o problema.
Com a edição da lei, o que antes era mera liberalidade do Ministério Público, fundada em regramento interno da instituição, passou a ser expressamente previsto no Código de Processo Penal, com um rol de requisitos a serem preenchidos pelos candidatos ao benefício.
Contudo, dado que a redação do artigo estabelece que o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, surgiram vozes no sentido de ser a proposta uma faculdade do órgão ministerial. Para os defensores dessa corrente - que inclui o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> – o Parquet não estaria vinculado ao oferecimento da proposta de acordo, ainda que preenchidos os requisitos objetivos, pois o acordo de não persecução penal se trata de um poder-dever do Ministério Público e não de um direito subjetivo do réu.
Segundo tal entendimento, o Ministério Público estaria legitimado a deixar de propor o acordo de não persecução penal, desde que fundamentasse suficientemente seu agir. Caberia à acusação a análise sobre a <a href="http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Orientacao%20Conjunta%20ANPP%20Revisada%20e%20Ampliada.pdf.pdf.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">conveniência e oportunidade do instituto</a>, selecionando quem faria jus ao benefício, ou seja, aqueles que seriam mais iguais do que os outros, tal como preconizado por Orwell.
Em contrapartida, parte da doutrina (encabeçada por combativos advogados de defesa) passou a enxergar o instituto como um direito subjetivo do investigado, seguindo o mesmo raciocínio utilizado para a interpretação de outros dispositivos legais no qual se utiliza o verbo “poder”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, tal como o art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> e art. 155, § 2º do Código Penal<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Assim, todos seriam iguais e ponto.
Isso porque o artigo 28-A traz requisitos pré-estabelecidos a serem preenchidos. Considerar-se a propositura do acordo de não persecução penal como uma faculdade do Ministério Público (ainda que sob a denominação de “poder-dever”) é negar-se aos investigados o exercício de um direito previsto em lei (cuja previsão se deu justamente no intuito de promover uma despenalização) e atribuir ao órgão acusador um poder de discricionariedade desproporcional e infundado.
Além disso, corre-se o risco de casos idênticos obterem tratamento diverso, a depender unicamente do arbítrio do órgão ministerial envolvido no caso, em clara ofensa ao princípio da isonomia, previsto na Constituição Federal<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Ou seja, é conceder-lhes o poder de determinar quem é mais igual que quem.
Considerando que o artigo 28-A do Código de Processo Penal já confere à acusação (fundamentadamente, supõe-se) a determinação do quanto será pago a título de prestação pecuniária; a carga-horária total a ser cumprida a título de prestação de serviço à comunidade (observadas as balizas legais, obviamente); a indicação dos bens e direitos aos quais deve o investigado renunciar como produto ou proveito do crime e a determinação de cumprimento, por prazo determinado, de qualquer outra condição, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada, o legislador já estabeleceu, de antemão, suficiente carga de discricionariedade ao Ministério Público na elaboração dos termos do acordo de não persecução penal.
Dessa feita, é irrazoável também conceder à acusação a decisão quanto à sua propositura, devendo a expressão “desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” ser interpretada como com relação ao teor do acordo e não quanto ao seu oferecimento. Com isso, a propositura do acordo de não persecução penal seria ato vinculado do Ministério Público, mas as condições da proposta seriam discricionárias.
Tal se dá pelo fato de que, ao ponderar sobre a necessidade e a suficiência para a reprovação e prevenção do crime, pode o órgão acusador impor as cláusulas que entender adequadas (desde que proporcionais), justamente a fim de efetivar o comando legal de necessidade e suficiência para a reprovação do crime.
Permitir-se que o a propositura do acordo seja obstada, ainda que preenchidos os requisitos legais, sob o argumento de não ser necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime é utilizar-se de um conceito abstrato e aberto, cabível a qualquer situação ou motivo de foro íntimo, tornando inócua a alteração legislativa e esvaziando por completo o instituto.
Até porque, ao menos enquanto vigente a atual Constituição, ninguém é mais igual que ninguém perante a lei.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Nesse sentido se manifestou recentemente o STF nos autos do HC: 195327 PR 0110540-31.2020.1.00.0000, relator: ALEXANDRE DE MORAES, data de julgamento: 24/02/2021, data de publicação: 26/02/2021 e HC: 195327 PR 0110540-31.2020.1.00.0000, relator: ALEXANDRE DE MORAES, data de Julgamento: 24/02/2021, data de publicação: 26/02/2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A título de exemplo, tem-se os julgados STJ - AgRg no HC: 612401 SP 2020/0235716-3, relator: ministro NEFI CORDEIRO, data de julgamento: 09/02/2021, T6 - SEXTA TURMA. Data de publicação: DJe 17/02/2021 e STJ - AgRg no HC: 568662 MS 2020/0074468-4, relator: ministro RIBEIRO DANTAS, data de julgamento: 19/05/2020, T5 - QUINTA TURMA, data de publicação: DJe 28/05/2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “(…) § 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.”
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “(...)§ 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.”
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (…)

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JOTA

Todos investigados são iguais, mas alguns são mais iguais que outros

George Orwell e o acordo de não persecução penal

Todos investigados são iguais, mas alguns são mais iguais que outros