Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__citation">
<blockquote class="jota-article__quote"><p>“Quem quer que comande os mares, comanda o comércio; quem quer que comande o comércio do mundo, comanda as riquezas do mundo, e consequentemente o próprio mundo.”</p>
<footer class="jota-article__quote-cite"><strong>- Sir Walter Raleigh (1552-1618)</strong></footer>
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<p>A tradição de pensamento político no Ocidente é repleta de figuras explicativas que, por analogia, ilustram e clarificam fenômenos que, de outra forma, seriam parcamente apreendidos. Uma das mais antigas dessas figuras é a metáfora da nação como um organismo vivo, um corpo antropomórfico que, apesar de coletivo, sofre crises físicas e psicológicas como se um indivíduo humano fosse. Nações nascem, crescem e morrem. Algumas até mesmo de Covid-19.</p>
<p>As coletividades, tal qual os indivíduos, têm hábitos, personalidades e identidades, que inexoravelmente se transformam nos destinos das nações. A geopolítica ocidental clássica, principalmente a partir da obra de Alfred Thayer Mahan (1840-1914), desenvolveu dois tipos ideais de personalidades coletivas: as potências terrestres e as potências marítimas. As primeiras seriam nações voltadas para os seus negócios internos, com tendência à hierarquização das suas relações sociais e foco na autossuficiência das suas economias. Já as segundas seriam voltadas para os mercados externos, para o comércio internacional e teriam suas organizações políticas baseadas no modelo de democracia liberal, mais horizontal e heterogêneo. Esparta, Roma, França e Alemanha seriam exemplos de potências terrestres. Atenas, Cartago, Veneza e Grã-Bretanha, exemplos de potências marítimas.</p>
<p><a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A definição deste tipo ideal não poderia ser acidental. Impostas pela geografia, pela história e pela cultura de um povo, a identidade terrestre ou marítima teria impacto em todas as esferas da vida de uma nação. Desde a sua arquitetura, artes, culinária, etc. até às suas instituições jurídico-políticas e estruturas sócio-econômicas. A identidade e a vocação de um povo seriam, até certo ponto, imposições do destino. Ainda que tributárias de uma escolha política concreta, a identidade essencial de uma nação não pode ser alterada por decreto. Jacob Burckhardt (1818-1897) dizia mesmo que o Estado é uma obra de arte. Obra esta manifesta na construção de uma identidade coletiva que, apesar de fluida e dinâmica, esteja em harmonia com o destino histórico-geográfico de um povo singular em determinado território.</p>
<h3>Potências continentais</h3>
<p>A essa divisão binária, entre potências terrestres e marítimas, acredito que se deva acrescentar uma terceira categoria, a das potencias continentais, que seriam países de imensa extensão territorial, com ampla exposição aos mares e cuja identidade se constituiria, necessariamente, a partir de um equilíbrio dinâmico de características tanto terrestres quanto marítimas. Seriam, na verdade, poucas nações que potencialmente se enquadrariam nesse conceito: Brasil, Rússia, Austrália, China e EUA (BRACE). Os países do grupo BRACE, em seu conjunto, seriam todos grandes produtores de <em>commodities</em>, com mercados internos pujantes, mas, ao mesmo tempo, por suas dimensões continentais, fortemente engajados no comércio internacional, com parceiros e interesses em todos os cantos do globo. Esses cinco países não teriam, assim, de escolher uma força privilegiada, se o exército ou a marinha, mas sim procurariam manter um equilíbrio dinâmico de alta capacidade em ambas as forças.</p>
<h3>Logística</h3>
<p>Entre os BRACEs, o Brasil ocupa uma posição singular. É o único país do grupo a ser 100% cargo, ou seja, é o único deles que não tem uma frota mercante de longo curso capaz de transportar os elementos estratégicos para o seu desenvolvimento e para a sua defesa. Atualmente, o Brasil está totalmente dependente de armadores estrangeiros para operar o seu comércio exterior, o que lhe deixa inteiramente à mercê das oscilações dos fretes internacionais que vem atingindo altas históricas, com o Freightos Baltic Index tendo triplicado em relação ao mesmo período do ano passado e algumas rotas, mesmo, tendo aumentado quase 10 vezes no período de 12 meses. A situação está se tornando crítica, com quebras de contratos, que vem estrangulando exportadores e gerando gargalos no comércio exterior nacional.</p>
<p>Para melhor se compreender a situação atual é necessário retornar um pouco no tempo, para meados do século XX. O Brasil herdou a vocação marítima de Portugal, que havia sido uma das maiores potências navais da história. A ocupação populacional do território brasileiro, fortemente concentrada no litoral e com ligações marítimas diretas com a Europa era a prova cabal de sermos uma potência marítima. O país, também, já teve a segunda maior frota mercante do mundo, o Lloyd Brasileiro, empresa estatal extinta em 1997. O Rio de Janeiro era a capital símbolo dessa identidade, cuja cultura, humor, musicalidade e arquitetura eram todas de inspiração marítima. É doce morrer no mar.</p>
<p>A partir dos anos 1960, com a mudança da capital para Brasília, iniciou-se um processo geopolítico de ocupação das áreas interiores do país, transmutando a personalidade marítima do Brasil em uma nova identidade de potência terrestre. A ocupação do Cerrado, a interconexão interna do território e a edificação da pujança do agronegócio brasileiro são frutos positivos dessa decisão geopolítica. Uma nova elite, uma nova cultura e uma nova forma de inserir-se no mundo tornaram-se a identidade e a força mesma do Brasil potência. A cidade marítima turvou, contudo, e nosso Rio de amor se perdeu.</p>
<blockquote class="jota-article__eye"><p>A identidade de uma nação é, até certo ponto, uma imposição do destino. O Brasil hoje vê-se confrontado com as consequências de ter-se tornado uma potência terrestre e abandonado a sua história e tradição marítimas. A uma potência continental, contudo, não são possíveis escolhas binárias.</p></blockquote>
<p>Não é possível uma volta pura e simples a um passado marítimo. O país precisa, assim, assumir sua vocação continental e promover um equilíbrio dialético de suas forças terrestres e marítimas. Deixar de ser um país 100% cargo e, tal qual seus outros pares do BRACE, ocupar a posição que lhe é de direito nos mares globais. O Brasil precisa, em suma, de uma Marinha Guerra e de uma Marinha Mercante condizentes com seu tamanho, com a pujança do seu agronegócio, com a força do seu Exército e com a realização do seu destino histórico no mundo.</p>
<p>John Ruskin (1819-1900) identificava a origem da decadência de Veneza na mudança do estilo arquitetônico gótico-eclético para o barroco germânico, em voga na época, o que simbolizava o abandono fatal da sua cultura marítima. O Brasil também transmutou o estilo eclético do Rio de Janeiro no modernismo sazonal de Brasília. Para evitar a decadência, tal qual a sofrida pela outra Sereníssima República, é preciso, pois, resgatar nossa tradição marítima para, em nova síntese com a cultura terrestre que o país contruiu nos últimos 60 anos, erigir uma nova identidade de potência continental. Como diz a canção, “esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal.”</p>
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Marinha Brasileira

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JOTA

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