Fabio Silva Alves

Complexo, ninguém duvida de que o sistema tributário brasileiro tenha se tornado. Aliás, verdade seja dita, praticamente desde a sua concepção, nos anos 1950, e efetiva implementação, no fim da década de 1960, que esse hoje senhor é motivo de debates. Tanto que falar de reforma tributária virou tão lugar-comum que há tempos já mereceria cadeira à parte nas faculdades de Direito.
No entanto, se vamos começar com verdades, apresentemos mais uma: “bases de cálculo por dentro”, “fatos geradores presumidos”, “créditos físicos”, “diferimentos”, “essencialidades”, “obrigações de dar vs de fazer”... O rol de subjetivismos e obscuridades é tão amplo que mais que justificam esse mito da eterna reforma. Transparência a nós, cidadãos, de como, quanto, quando, o que e por que pagamos tributo nunca foi um forte do nosso sistema.
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Seja como for, a vida ensina que sujeira não se acumula sozinha debaixo do tapete. Então, se mesmo diante desse senso coletivo de necessidade de ajustes estruturantes não avançamos no caminho da simplicidade, da racionalidade e da clareza, é porque alguém (ou alguns) controla a vassoura.
Assim, fica a primeira pergunta: a quem interessa manter a sujeira tributária debaixo do tapete?
Confuso, talvez nenhum regime de tributação seja mais do que o do mercado de combustíveis, verdadeiro extremo dessa peculiar complexidade do sistema brasileiro. “Na moda”, graças aos R$ 7/litro da gasolina, escancara-se como exemplo da elevada carga que sempre soubemos existir, mas que nunca enxergamos com clareza. Até porque – mais uma verdade –, para a composição dessa mesma carga, tantas são as “ferramentas” aplicadas que quase nunca conseguimos bem entendê-la e, muito menos, de fato mensurá-la.
De toda forma, para enxergarmos melhor o que se esconde nessa carga, respiremos fundo e levantemos um pouco o tapete tributário do segmento de combustíveis. Vamos lá:
Se tratamos apenas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), ao mesmo tempo em que se tem uma primeira regra de aplicação de substituição tributária para frente (elo inicial da cadeia econômica), tem-se também uma segunda, de incidência no estado onde ocorre o consumo (elo final dessa cadeia). E é esse ente que fará jus a todo o produto da arrecadação (regra constitucional extraordinária). Bom, caso tudo se passe no mesmo estado (operação interna), menos mal: basta aplicar a terceira regra, de presunção de base de cálculo (PMPF – preço médio ponderado final), migrar as informações da pelo sistema SCANC e enviar o valor do imposto a quem de direito (ou seja, estado de destino/consumo).
Porém, se durante essa cadeia – produtor, distribuidor, posto revendedor, consumidor final – ocorrer alguma venda interestadual, aquele que a fizer terá que assumir um dos seguintes ônus: ou complementar o valor do imposto ou pedir restituição ao estado onde não se deu o consumo (mas presumira-se que se daria). Tudo por conta da regra de incidência acima, bem como da diferença de cargas estaduais (alíquotas vs PMPFs). E isso, ainda que seja substituído tributário (distribuidor, em geral).
Pausa para respiração: baixemos rapidamente o tapete e lembremos que o foco está na exemplificação da complexidade do sistema e na demonstração da obscuridade da carga tributária que sustenta aqueles R$ 7/litro da gasolina.
Mais uma inspiração e... o levantemos de novo.
Todo o anterior vale para combustíveis derivados de petróleo (gasolina e diesel, por exemplo). Porém, em relação aos biocombustíveis (álcool e biodiesel), na hipótese de operações interestaduais, aplica-se a regra constitucional ordinária de repartição de receitas: parte no estado de origem/produção, parte no de destino/consumo.
Assim, se o produto for o etanol da bomba (álcool hidratado), é feita a divisão de imediato. No entanto, se o biocombustível (álcool anidro ou biodiesel B100) for um dos que se mistura fisicamente aos derivados para compor os produtos que chegam aos postos revendedores (gasolina C – aquela dos R$ 7 – e diesel), terão que ser observadas as regras de incidência e repartição de receitas anteriores para cada parcela desse combustível final: parte derivado, parte não derivado de petróleo...
Pronto, podemos soltar o ar. Exemplo dado (pouparemos o do PIS/Cofins e o da CIDE).
Acontece que os R$ 7 transbordaram do tapete. A atual discussão sobre a carga do ICMS dos combustíveis trouxe à luz a complexidade tributária, há tanto presente na composição dos preços dos combustíveis – e de muitos outros bens e produtos. No entanto, esse tapete ficou curto para esconder também a inflação, o desemprego e a evidente dificuldade de retomada sustentável das atividades empresariais brasileiras nesse período pós-pandemia. A realidade se impõe, afetando em cheio a vida de todos nós, dependentes desses itens ainda tão essenciais à nossa economia.
Nova pergunta: como simplificar e racionalizar esse regime que, há décadas, se vale da complexidade e que joga para debaixo do tapete carga tributária equivalente a cerca de 40% daqueles R$ 7/litro da gasolina?
Simplista costuma ser o rol de soluções que foca nos fins, mas se esquece dos meios para alcançá-los. Às vezes, até cheias de boa intenção, sonhadoras do sol forte e da praia paradisíaca. Mas, não sendo conhecedores da estrada de areia, terra e lama, ficam pelo caminho. No sol sim, só que na espera pelo reboque ao seu carro 1.0 (com ou sem gasolina no tanque). Azaradas, não, despreparadas.
A Medida Provisória 63/2021 tem um suposto propósito nobre: reduzir o preço dos combustíveis. Para isso, estabelece a venda de etanol do produtor diretamente ao posto revendedor, sem a necessária intermediação de distribuidores. Com essa maior liberdade aos agentes, entende ser factível a diminuição, sobretudo diante do eventual ajuste do PMPF – aquela base de cálculo do ICMS, que, como vimos, representa quase 30% do preço final desse combustível (os outros 10% da carga tributária embutida no preço é composta por PIS/Cofins e CIDE). Aliás, tamanha é essa crença que logo em seguida foi editada a MP 69/2021, alterando a nº 63 e tornando imediata a vigência aos agentes que “abrissem mão” da regra da noventena – decorrente do aumento do valor PIS/Cofins pago pelos produtores que desde já optem pela venda direta e, portanto, deixem de dividir a carga com os distribuidores.
Notemos o óbvio: trata-se de MPs que, por evidente, podem apenas regulamentar os tributos federais, diante da competência concorrente dos entes para legislar sobre matéria tributária (artigo 24, I, da Constituição). No entanto, como seguir à praia paradisíaca – ainda mais de imediato! – sem o mínimo debate, a mínima reflexão, o mínimo ajuste no regime daquele tributo que é o mais complexo e mais relevante na composição dos R$ 7? Reboque à vista...
Portanto, sem tapete mágico, e sem qualquer oposição ao propósito de “redução de preço” e, muito menos, à liberdade, surge mais uma pergunta: e o ICMS?
Errada, já dizia H. L. Mencken, é a solução simples e elegante (?!) aplicada para todo problema complexo. Reflexão na medida certa para a questão aqui posta, imposta a mercado relevante e complexo, no qual impera extrema competição, alto faturamento e baixas margens aos agentes (que atuam honestamente). Aliás, parênteses importantes, pois, os que assim não o fazem, valem-se daquela complexidade de debaixo do tapete. Obscuro campo fértil para a sonegação e para o carnaval dos devedores contumazes.
Nova pausa para lembrança. Esses "contribuintes" – que competem de maneira desleal com os bons pagadores de tributos e privam o Estado, sistemática e deliberadamente, de recursos essenciais para o implemento de ações sociais e econômicas – podem ser os maiores beneficiados de soluções atropeladas e pouco estudadas. Estas, super "bem intencionadas", mas simplesmente erradas, passam por cima do debate sobre a forma de incidência e cobrança do principal tributo exigido na cadeia de combustíveis. Assim, estendem tapete vermelho para o pessoal da festa da obscuridade, que mantém seus “planejamentos” em brechas, incentivos fiscais, liminares e boas intenções alheias...
Aliás, quem paga essa festa são os bons contribuintes, que arcam com carga que é cada vez mais elevada também para compensar a prosperidade dos contumazes (os R$ 7 não deixam dúvidas disso).
Então, pergunta da vez: até quando nos serão vendidos tapetes mágicos?
Simples é o fim a se buscar. Porém, não significa que o caminho o será. Ainda que haja areia, terra e lama nessa estrada, é possível que, apenas com a simplificação e a racionalização do sistema, diminua-se a festa dos foliões tributários, aumente-se a arrecadação e tragam-se mais luz e transparência à composição da carga. E, com isso, fortaleça-se a cidadania fiscal, fundamental protagonista na reflexão coletiva quanto à realidade de como, quanto, quando, o que e por que pagamos tributos.
Nos combustíveis, para limparmos aquele tapete dos R$ 7/litro da gasolina, temos o caminho (i) da cobrança monofásica e (ii) da aplicação de alíquotas únicas, por produto, em todo o território, incidentes sobre (iii) uma base de cálculo fixa. Três regras simples, previsíveis e transparentes. Sustentáveis a longo prazo. Sem tapete mágico. Com estudo, trabalho e expressa previsão constitucional (artigo 155, § 4º, IV, “a” e “b”). Com projetos de lei em curso (<a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2237876">PLP 11/2020</a> e <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2270292">PLP 16/2021</a>), desde que sem “soluções” frágeis e efêmeras: se ainda não é possível o debate efetivo sobre alíquotas nacionais e únicas, que sejam ao menos fixas, sim, mas também necessariamente de incidência monofásica. Aplicação conjunta. É o que determina a Carta. É o que se sustenta jurídica e logicamente. É do que precisam nosso mercado e nossa economia.
Repita-se: sem tapete mágico; com simplicidade, previsibilidade e transparência, acompanhados da pergunta óbvia: os R$ 7 não são motivo suficiente para, enfim, avançarmos, sem criarmos novas discussões?
Tapete é para debaixo de onde, nos desenhos animados, aquele personagem malandro costumava empurrar e esconder toda a sujeira acumulada e que não deveria ser vista. Como apresentamos – derradeiras verdades –, não à toa é onde há tempos impera o faz-de-conta da restituição de valores recolhidos a maior, tornando o ICMS verdadeiro “Imposto Cumulativo sobre Mercadorias e Serviços”. É onde reinam os devedores contumazes, que escolhem não pagar seus impostos, cientes do carnaval da impunidade ou da zona franca da prosperidade. É para onde vai tudo que vira custo, seja da empresa boa pagadora de tributos não restituídos, seja dos contribuintes pessoas físicas, que com eles cada vez mais arcam na boca do caixa do supermercado, na bomba do posto de combustíveis ou na fila do desemprego. É onde nosso sistema esconde carga tributária obscura e antidemocrática.
Última pergunta: vamos, juntos, levantar esse tapete e voltamos a sonhar em encher o tanque?
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ICMS gasolina

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JOTA

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