Bruno Torrano

Há uma lição do pragmatismo filosófico americano que, não raro, convém lembrar em terras brasileiras: antes de embrenhar-se no mérito de um debate acadêmico, a prudência exige que se escrutine se “não é preciso questionar os termos em que (os) problemas são colocados”<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>: será que essa discussão realmente faz sentido?; para onde estamos indo?; alguma das partes está disposta a ceder?; há novas descrições e novos vocabulários possíveis?; não estamos em uma bolha ideológica?; haverá alguma diferença prática?; etc.
Essas, todavia, são algumas das perguntas que parecem não estar no raio de preocupações dos juristas que, aqui, se propõem a discutir as viabilidades teórico-interpretativas do garantismo penal. Compreensível, pois, a esterilidade, regada a paixões políticas, a que chegou tal debate.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
De um lado, os que defendem o denominado “Garantismo Penal Integral” (GPI)<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a> afirmam ser o “Garantismo Ortodoxo” (ou “Hiperbólico Monocular”) uma deturpação inaceitável do pensamento de Luigi Ferrajoli, por ignorar que a dinâmica teoria do autor italiano passou a admitir, ao lado das garantias negativas individuais, as chamadas “garantias processuais penais positivas”.
De outro, os que sustentam o “Garantismo Ortodoxo” retrucam na mesma moeda: o “Garantismo Penal Integral” é uma deturpação das ideias de Ferrajoli <a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>, pois, sob qualquer aspecto, delas não se podem extrair, legitimamente, obrigações processuais penais positivas e raciocínios direcionados a justificar a ampliação da jurisdição penal.
A omissão pragmática – ouso afirmar – advém, sobretudo, dos autores vinculados ao Garantismo Penal Integral. Não que eles estejam “errados” na concepção de fundo que defendem. Muito pelo contrário: reconheço a imensurável qualidade e relevância dos escritos de Douglas Fischer, Frederico Valdez, Selma Pereira de Santana, Vlamir Costa Magalhães e Luiz Eduardo Sant’Anna Pinheiro e estou de pleno acordo com a ideia de obrigações processuais penais positivas e com a proposição de que os direitos da sociedade, das vítimas e de seus familiares – e não apenas dos investigados ou réus – também compõem o rol de bens constitucionais dignos de ativa tutela penal.
A questão que proponho, de outra natureza, tangencia aquilo que Stanley Fish, em seu livro Doing What Comes Naturally, chama de “mundo retórico”: os seguidores do GPI parecem ter-se deixado levar pelo “patrulhamento ideológico” que tomou o debate sobre garantismo.
<blockquote class="jota-article__eye">A prática funciona em termos de apropriação retórico-simbólica: se um jurista não é garantista, ele não está apenas errado na teoria. Ele está ora contra a pesquisa acadêmica séria, ora contra a democracia.</blockquote>
Como uma forma de adaptação e de autodefesa contra esse patrulhamento, a insistência no termo “garantismo” tem-se prestado mais a evitar o desconforto psicológico e o arranho reputacional advindo de ataques sofísticos do tipo “você não é garantista” ou “você é punitivista” do que a consolidar, em dogmática e – muito importante – a partir de novas redescrições independentes do vocabulário ferrajoliano, uma visão coerente e consistente de obrigações penais positivas à luz da Constituição da República e da jurisprudência internacional da Corte IDH e do TEDH.
Esse não seria um problema tão tormentoso se o propósito declarado dos autores fosse, apenas, o de denunciar aqueles que não compreenderam a evolução da teoria de Ferrajoli. Mas os adeptos do GPI, não raro – como veremos –, sujeitam-se voluntariamente a erguer a tese das garantias penais positivas sobre uma “concordância quase total” com os escritos do professor italiano, inclusive Direito e Razão.
Assim sendo, a crítica ganha força. Se for verdade, como ensina famoso adágio de Wittgenstein, que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”, então parece ser correto afirmar que, hoje, os limites do mundo dos Garantistas Penais Integrais são os limites linguísticos traçados e impostos por seus próprios adversários teóricos – os Garantistas Ortodoxos. E quem impõe o enquadramento do “possível de ser dito” controla não apenas as regras do discurso, como também as próprias ações e movimentos dos oponentes.
A solidez do debate entre garantismo ortodoxo e garantismo integral também desvanece quando se percebe, por parte dos adeptos do GPI, uma incontornável violação à regra analítico-científica de que termos linguísticos distintos devem ser encorajados apenas quando se está diante de referentes distintos – em alguma medida, pode-se dizer que, aqui, há também ofensa à navalha de Ockham.
Isso porque, no debate em análise, os próprios adeptos do garantismo penal integral elucidam que a leitura por eles propiciada propõe exatamente a mesma coisa – repito: a mesma coisa – que o Constitucionalismo contemporâneo: “Quando se defende que sejam aplicados na íntegra e de forma concatenada os postulados constitucionais está se procurando demonstrar que o garantismo nada mais é do que a visão atual do constitucionalismo (exatamente como reconhece Ferrajoli)”<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>.
Mas ora. Se garantismo integral é exatamente a mesma coisa que constitucionalismo contemporâneo, qual o sentido de se insistir no termo “garantismo integral” e dar prosseguimento ao debate estéril sobre se Ferrajoli concordaria ou não com essa visão?
Se existem tantos outros autores que propõem exatamente a mesma visão do “garantismo penal integral”, por que devemos desenvolver uma teoria binocular da tutela dos direitos fundamentais tendo como enfoque e protagonista, exatamente, o autor que, bem ou mal, antes ou agora, foi um dos mais radicais defensores do individualismo penal? Não há alternativas? Não há livros melhores para fazê-lo do que Direito e Razão? Por que e para que essa fissura no autor italiano?
Para que fique clara a minha posição: o “garantismo penal integral” pode até estar, eventualmente, correto sobre a viabilidade de se deduzirem obrigações penais positivas da obra de Ferrajoli. Mas a veracidade ou não da tese, no fim das contas, além de irrelevante para fins de defesa da dupla face protetiva do constitucionalismo, presta-se apenas a alimentar bolhas de abstração e a agitar polêmicas vazias.
De duas, uma: (a) se o GPI estiver correto em propor que Ferrajoli aceitaria ou aceitou uma leitura “binocular” de seu garantismo penal, melhor seria falar, apenas, em constitucionalismo contemporâneo (e não no desnecessariamente controverso neologismo “Garantismo Penal Integral”), quiçá fazendo-se acompanhar de autores imunes ao histórico radicalmente individualista de Ferrajoli; ou (b) se o GPI estiver incorreto e, conforme propõem os Garantistas Ortodoxos, nenhuma interpretação defensável de Ferrajoli permitir o reconhecimento, em sua doutrina, de obrigações penais positivas, melhor seria, sem medo ou remorso, simplesmente reconhecer o reduzido papel explicativo da teoria de Ferrajoli, de modo a desinflar a sua área de influência, usando-a no estreito limite em que se adeque às previsões normativas. Afinal, o direito é o que se deduz de fontes normativas, e não de livros do Ferrajoli.
Enfim: em um ambiente permeado por mandamentos constitucionais de criminalização, pelo princípio da proibição de proteção insuficiente e por julgados internacionais que reconhecem a dupla face protetiva do constitucionalismo, não precisamos concordar “em quase tudo que é dito pelo mestre italiano”<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>, em sucessivas e infrutíferas tentativas de justificar-se perante ataques de patrulheiros ideológicos.
Definitivamente, não é necessário participar de um prolongado jogo acadêmico em terreno demasiadamente confortável ao adversário intelectual. Basta bradar que a Constituição da República é incompatível com qualquer modalidade de garantismo radical. Opor-se a polarizações liberal-individualistas é um dever de todo constitucionalista. Esteja ou não Ferrajoli de acordo com isso.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> RORTY, Richard. A contingência dos problemas filosóficos: Michael Ayers sobre Locke. In: RORTY, Richard. Verdade e Progresso. Barueri: Manole, 2005, p. 340. Sobre o assunto, em visão mais abrangente, cf. ainda RORTY, Richard. Contingency, Irony, and Solidarity. New York: Cambridge University Press, 1989. Tratei da guilhotina pragmática no capítulo 1 de TORRANO, Bruno. Democracia e Respeito à Lei: entre Positivismo Jurídico, Pós-Positivismo e Pragmatismo. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Juristas adeptos do garantismo penal integral (GPI) sustentam a dinamicidade da teoria do garantismo penal proposta pelo professor italiano e acusam a doutrina atual de ter deturpado a proposta garantista. É bem verdade, diz Fischer, que Ferrajoli tinha uma visão individualista ao tempo em que lançou sua opus magna, Direito e Razão, em 1989. No entanto, com o passar do tempo, o próprio Ferrajoli veio a reconhecer que garantias negativas, relativas a direitos de defesa exercitados pelos indivíduos contra o Estado, são apenas uma das faces da moeda do garantismo penal. Com elas, coexistem garantias positivas, ligadas com a segunda e terceira dimensões dos direitos fundamentais e amplamente reconhecidas pelas Cortes Internacionais – em especial, pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – como um prolongamento da própria ideia de direitos humanos. Na seara penal, tais garantias prestam-se a estabelecer obrigações penais positivas e a exigir efetividade dos instrumentos de persecução penal, à luz do direito à segurança pública e dos princípios da eficiência e da proporcionalidade (no sentido de proibição de proteção insuficiente). Têm como propósito, portanto, em matéria criminal, contrabalancear o individualismo da faceta negativa e tutelar, em igual medida, o direito de a coletividade, a vítima e seus familiares esclarecerem fatos delituosos e verem seus responsáveis punidos em prazo razoável.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> Juristas adeptos do Garantismo Ortodoxo, como Aury Lopes Jr., Beatriz Vargas Ramos, Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves, Alfredo Copetti Neto e Ana Cláudia Pinho, apontam que, em verdade, os deturpadores do garantismo de Luigi Ferrajoli foram os propositores do garantismo penal integral. Segundo essa vertente, Ferrajoli fala de garantias positivas com o intuito de enaltecer o dever estatal de prestação de políticas públicas, e não de amparar a ampliação da jurisdição penal ou o desenvolvimento de interpretações jurídicas baseadas no princípio da proteção da proteção insuficiente ou em ponderações entre direito individual e segurança pública. Cf., por todos, RAMOS, Beatriz Vargas; CHAVES, Álvaro Guilherme de Oliveira. O Garantismo Penal Integral e suas contradições com o Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli. In: Direito.Unb. Janeiro-Abril, 2020, v. 04, n. 1, pp. 102-126.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> FISCHER, Douglas; PEREIRA, Frederico Valdez. As obrigações processuais penais positivas: segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. 2. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 190.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> FISCHER, Douglas; PEREIRA, Frederico Valdez. Ob. cit. p. 25.

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JOTA

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