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Garantias reais na recuperação judicial e o que podemos aprender com Rei Salomão

E se o devedor e o credor com garantia real simplesmente não chegarem a nenhuma solução amigável?

Crédito: Pixabay

Admitimos, o título deste artigo causa certa perplexidade. Afinal de contas, o que o famoso Rei Salomão, icônico personagem bíblico que liderou Israel durante seu apogeu imperial perto do século VIII a.C., poderia ter a ver com a disciplina jurídica das garantias reais em um processo de recuperação judicial de empresas no Brasil do século XXI d.C.?

Vamos explicar adiante. Por ora, basta dizer que o tema é importante, e que o legislador brasileiro teria muito a aprender com a história mais famosa do Rei Salomão. Podemos começar então com a parte mais técnica da nossa metáfora, analisando a disciplina das garantias reais no campo da recuperação judicial de empresas.

  1. As garantias reais na insolvência do devedor

Antes de qualquer coisa, vale relembrar, rapidamente, o que é uma garantia real. Sem pretensão de apresentar aqui uma definição técnica e exauriente, basta dizer que os chamados direitos reais de garantia representam a vinculação de um determinado bem do devedor para garantir a satisfação do crédito do credor. Com o estabelecimento dessa garantia cria-se um vínculo real1 entre o credor e a própria coisa dada em garantia, que é independente do vínculo obrigacional existente entre credor e devedor. Não paga a dívida, tem o credor o direito de perseguir a coisa onde quer que se encontre e utilizá-la para pagamento de seu crédito, ainda que ela, por exemplo, já nem se encontre mais sob a posse ou propriedade do devedor.

Ou, ao menos, é assim que a garantia real funciona enquanto o devedor não é insolvente. Havendo recuperação judicial ou falência do devedor, o credor com garantia real passa a não poder mais perseguir a coisa e utilizá-la para o pagamento de sua dívida. E isto ocorre porque, nos termos dos artigos 41, II, e 83, II, da Lei 11.101/2005, o credor com garantia real é sujeito aos procedimentos de insolvência do devedor, tanto à recuperação judicial quanto à falência.

Isso significa que o credor com garantia real, assim como qualquer outro credor sujeito à recuperação judicial ou falência do devedor, não pode tentar receber o seu crédito de forma independente dos demais credores. Uma das principais funções dos procedimentos de insolvência é assegurar que, não havendo bens suficientes para fazer frente a todas as dívidas, cada credor receba pelo menos um pouco daquilo que lhe é devido, repartindo proporcionalmente os bens que há – respeitada, porém, eventual ordem de prioridades estabelecida pela própria lei.

Dirá então o credor: “Ora, mas eu exigi a garantia real exatamente para a hipótese de a minha dívida não vir a ser paga! E justamente agora, quando o devedor não tem dinheiro para me pagar, eu não posso utilizá-la?”. Basicamente, não. Nesse cenário, entendeu o legislador que não seria justo permitir que um credor (mesmo com garantia real) se utilize de um dos únicos bens que o devedor tem para receber o seu crédito, enquanto os demais credores, mesmo aqueles que dependem mais do recebimento de seus créditos (como os trabalhistas e demais créditos de natureza alimentar), ficariam a ver navios.

Poderíamos dizer, então, que o credor perde o seu direito real de garantia diante de um cenário de insolvência do devedor? Não exatamente. O credor perde, na realidade, o direito de executar a sua garantia real (que fica como que “suspensa”), mas sua qualificação como credor com garantia real continua. No lugar desse direito que lhe foi suprimido ele ganha outros direitos, que de certa forma buscam “compensá-lo” por essa perda e colocá-lo numa situação um pouco melhor do que a dos demais credores que não têm nenhuma garantia.

Esses novos direitos, porém, variam a depender de o devedor estar falido ou em recuperação judicial.

  1. As garantias reais na falência

A falência é, basicamente, um procedimento de liquidação de ativos e distribuição do resultado entre os credores, seguindo-se uma ordem rígida e pré-estabelecida de prioridades entre as diferentes classes. Na falência, como compensação pelo fato de o credor com garantia real não poder executar sua garantia, ele é colocado em uma classe própria, que possui um maior grau de prioridade no recebimento de seus créditos. Em outras palavras, o credor com garantia real ganha um “melhor lugar na fila” em relação aos demais credores sem garantia.

Assim, numa falência, o bem dado em garantia real será vendido juntamente com todos os demais bens do devedor. O valor arrecadado será utilizado para pagar (i) primeiro, os créditos trabalhistas2, e (ii) logo depois, os credores com garantia real. Os demais credores sem garantia apenas passam a receber alguma coisa depois que os credores com garantia real tiverem recebido todo o seu crédito, e ainda assim após uma longa fila de espera, que inclui créditos tributários e créditos com determinados privilégios gerais e especiais definidos em lei.

  1. As garantias reais na recuperação judicial

Na recuperação judicial, o tratamento dado às garantias reais é de certa forma semelhante ao que ocorre na falência – mas seus resultados são fundamentalmente diferentes. Assim como na falência, também na recuperação judicial o credor com garantia real é posicionado em uma classe própria.

Na recuperação judicial, porém, não há ordem de pagamento, o que significa que o devedor não está necessariamente obrigado a garantir que os credores com garantia real recebam antes ou em melhores condições do que os demais credores sem garantia. Não há, na recuperação judicial brasileira, qualquer regra que se destine a estabelecer prioridades ou mecanismos de proteção entre as diferentes classes de credores. A forma e o tempo em que cada classe será paga serão determinados pelo que constar no plano de recuperação judicial que venha a ser aprovado pelos credores.

Mas qual é, então, o benefício concedido ao credor com garantia real numa recuperação judicial? A resposta a essa pergunta é encontrada quando analisamos a estrutura da recuperação judicial e, especialmente, da Assembleia Geral de Credores. A Assembleia Geral de Credores tem por principal função aprovar ou rejeitar o plano de recuperação judicial do devedor, e é composta atualmente por quatro classes de credores, dentre as quais se encontra a classe de credores com garantia real. Para que o plano de recuperação judicial seja considerado aprovado pelos credores, as quatro classes precisam aprovar o Plano separadamente3.

Nesse cenário, portanto, fazer com que os credores com garantia real integre uma classe separada dos demais credores sem garantia implica em conceder a esses credores um maior “poder de barganha” na negociação das condições de pagamento de seus créditos. Em geral, uma recuperação judicial contém apenas alguns poucos credores com garantia real, ao mesmo tempo em que pode conter centenas ou milhares de outros credores sem garantia. Posicionar esses poucos credores com garantia real em uma classe separada, que deverá aprovar o plano independentemente das demais classes, significa dar a esses poucos credores com garantia real um grau de influência muito maior do que o dos demais credores, o que – supõe o legislador – fará com que os credores com garantia real obtenham condições mais favoráveis para o recebimento de seus créditos.

  1. Mas o que acontece com o bem dado em garantia?

A Lei 11.101/2005 contém apenas duas regras destinadas a disciplinar a situação do bem dado em garantia real durante a recuperação judicial do devedor. A primeira encontra-se repetida nos artigos 50, § 1º, e 163, § 4º, e estabelece que a garantia real não pode ser extinta ou substituída sem a concordância expressa do credor titular da garantia. A segunda encontra-se no artigo 49, § 5º, e estabelece que, se a garantia real recair sobre créditos ou aplicações financeiras (ou seja, quando recai sobre dinheiro a receber) o valor deve ser depositado em conta judicial vinculada à recuperação judicial, até que a garantia real venha a ser substituída ou renovada – o que, nos termos da regra anterior, só pode ocorrer mediante expressa anuência do credor.

Gostaríamos de chamar especial atenção a essa última hipótese, relativa aos ativos financeiros dados em garantia real (no caso, penhor). Geralmente, o penhor sobre créditos funciona da seguinte forma: o devedor notifica os seus devedores para que passem a pagar esses créditos em uma determinada conta vinculada, e, então, entrega tanto a conta vinculada quanto os créditos em penhor ao seu credor, que vai se utilizando desses valores para quitar toda ou parte da parcela mensal. Trata-se de uma garantia real que, por sua própria natureza, acaba servindo ao mesmo tempo como garantia e como forma de pagamento.

O raciocínio adotado pelo legislador para esses ativos é o seguinte: enquanto a situação da garantia real não for definida consensualmente entre credor e devedor, “ninguém toca em nada”. A garantia real estabelecida permanece vigente (ainda que não possa ser executada), mas os recursos financeiros não irão nem para o credor e nem para o devedor. Deverão, em vez disso, ser mantidos em conta vinculada ao Juízo, até que, consensualmente, as partes cheguem a um acordo sobre o que fazer com eles.

E é precisamente aqui que o Rei Salomão poderia ter algo a ensinar ao nosso legislador.

  1. O que podemos aprender com o Rei Salomão

A história mais famosa do Rei Salomão é bastante conhecida, e não é necessário relembrá-la em detalhes. Trata-se da história em que o Rei Salomão ordenou que um bebê fosse morto diante de duas mulheres que disputavam sua maternidade, apenas para que a verdadeira mãe fosse revelada – ao propor que o bebê fosse entregue à outra mulher, contanto que mantido vivo e saudável.

Traduzindo a bela história do Rei Salomão em frios termos econômicos, podemos dizer que é uma história que trata sobre a criação e destruição de valor. A figura do bebê, na história, corresponde à figura do bem dotado de valor econômico – para os fins da nossa metáfora, o bem dado em garantia real. Já as duas pretensas mães podem ser equiparadas aos sujeitos que têm interesse em ficar com o bem – no nosso caso, credor e devedor. O Rei Salomão, por fim, é a autoridade destinada a estabelecer qual dos dois sujeitos deve ter direito a ficar com o bem – em outras palavras, o Estado.

Da história do Rei Salomão é possível concluir que, nada obstante tenha sido essa a sua ordem, ele jamais teve a intenção de efetivamente pôr fim à vida do bebê. Ao comunicar sua decisão, sua intenção foi apenas a de revelar qual das mulheres tinha real amor pela vida do bebê – a qual, é de se supor, seria a verdadeira mãe. Caso nenhuma das mulheres tivesse falado nada, podemos assumir com segurança que o Rei Salomão não teria levado a cabo a sua ordem, mas que teria pensado em alguma outra solução para o dilema.

O legislador brasileiro se viu diante de dilema semelhante, mutatis mutandis, quando estabeleceu o tratamento dos ativos financeiros dados em garantia real na recuperação judicial. Da mesma forma, há dois agentes econômicos (credor e devedor) em disputa por um mesmo ativo (o bem dado em garantia). Nesse cenário, poderia o legislador decidir por entregar tais ativos ao credor, permitindo que ele execute sua garantia, ou por entregá-los ao devedor, permitindo que ele os utilize na manutenção de sua atividade. Em ambos os casos, independentemente de ser justa ou injusta a solução, haveria conservação de valor econômico e geração de riqueza – seja nas mãos do credor, seja nas mãos do devedor.

No entanto, ao contrário do Rei Salomão, o legislador brasileiro optou por aquele que seja talvez o único caminho em que há efetiva destruição de valor econômico: não entregar o bem a nenhum dos dois. De acordo com a solução adotada pela Lei 11.101/2005, nem o credor pode executar sua garantia e receber os ativos financeiros objeto da garantia real, nem o devedor pode utilizar tais ativos da forma que melhor beneficie suas atividades. Tais ativos devem permanecer bloqueados, inacessíveis a ambos, em poder do próprio Juízo, até que credor e devedor, consensualmente, decidam sobre o que deverá ser feito deles.

A pergunta que fica é: e se não houver consenso? E se o devedor e o credor com garantia real simplesmente não chegarem a nenhuma solução amigável? Será a garantia considerada válida (indo os recursos para o credor), extinta (indo os recursos para o devedor), ou permanecerá “eternamente suspensa”? A Lei 11.101/2005 nada diz a esse respeito – o que revela a incompletude da sistemática escolhida pelo legislador.

Seja como for, nossa preocupação maior nem sequer é com o destino dos bens após a recuperação judicial – mas sim durante esse procedimento. A experiência mostra que quando uma empresa pede recuperação judicial ela já está enfrentando severas restrições de caixa, com dificuldades até mesmo para manter o pagamento de seus fornecedores essenciais. A empresa, no início de sua recuperação judicial, estará necessitando de dinheiro em um contexto em que ninguém lhe emprestará a juros razoáveis (em razão do risco de crédito) nem comprará qualquer de seus bens a valor razoável (por receio de sucessão de passivos).

Nesse cenário, poderia o legislador ter estabelecido que os recursos financeiros objeto de garantia real – que passam a não mais entregues ao credor – fossem devolvidos ao devedor, ao menos em parte, na medida do que seja necessário para a manutenção de suas atividades. Os recursos objeto da garantia real, nesse cenário, poderiam ser fonte valiosíssima de recursos ao devedor, auxiliando na preservação de sua atividade especialmente nessa fase mais sensível, podendo ser o fator determinante entre o sucesso ou o fracasso da recuperação judicial.

Ou, em vez disso, poderia o legislador ter optado por caminho diverso, privilegiando o interesse do credor em oposição ao do devedor. Poderia ter determinado que os ativos dados em garantia real – que já não beneficiavam o devedor de qualquer forma – continuassem sendo destinados ao credor. Essa solução privilegiaria o direito do credor, fortaleceria a confiança dos investidores e do mercado de crédito, e, em paralelo, até mesmo reduziria o passivo do próprio devedor.

Qualquer das duas soluções teria os seus próprios méritos e seu próprio senso de justiça, tanto de um ponto de vista individual quanto coletivo. Da leitura, certamente há quem se alinhe por um e por outro caminho. Poder-se-ia invocar o princípio da preservação da empresa como justificativa para a escolha em prol do devedor, ou o fato de que tal princípio não é absoluto como justificativa para a escolha em prol do credor. Há boas razões e bons fundamentos para ambos os caminhos.

O único caminho que não parece fazer nenhum sentido foi justamente aquele escolhido pelo legislador – que é o de, durante a recuperação judicial, não entregar esses recursos financeiros nem ao credor nem ao devedor. Justamente durante a recuperação judicial, quando tais recursos financeiros adquirem maior importância, opta o legislador por não os entregar a ninguém, acabando com qualquer eventual benefício econômico que possam gerar. Saem prejudicados o credor, o devedor, e a economia como um todo. É, efetivamente, destruir valor econômico.

Tivesse o Rei Salomão tido a oportunidade de conversar com o nosso legislador, certamente teria explicado a ele que sua ameaça àquelas duas mulheres não foi real. Que nunca vale a pena pôr fim a algo que tem valor, e que, na solução de impasses cuja justiça não é evidente, deve-se sempre privilegiar uma solução que traga uma maior quantidade de benefícios aos envolvidos, tanto de um ponto de vista individual quanto de um ponto de vista social. Em outras palavras, se o legislador está em dúvida sobre quem é a mãe do bebê, que o entregue a qualquer uma das duas – contanto que o mantenha vivo, saudável e seguro.

Há, atualmente, diversas frentes e grupos de trabalho atuando para propor uma necessária e profunda reforma em diversos aspectos da Lei 11.101/2005. A expectativa corrente é de que um projeto de lei seja apresentado em breve pela Casa Civil, incorporando elementos desses grupos de trabalho. Meu desejo é que o legislador de 2018 não siga o exemplo do legislador de 2005, e que as novas regras relativas ao tratamento das garantias reais na recuperação judicial apenas sejam decididas após um longo e produtivo bate-papo com o Rei Salomão.

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1 O termo “real” nesse caso é derivado do latim res, que significa “coisa”. Garantia real significa, portanto, “garantia sobre a coisa”.

2 Cabendo ressaltar que há outras despesas administrativas e créditos extraconcursais que a massa falida deve pagar antes mesmo de iniciar o pagamento de seus credores trabalhistas, mas essa análise detalhada foge ao escopo do presente artigo.

3 Cabendo ressaltar que é possível que o plano de recuperação judicial seja concedido pelo juiz mesmo que não aprovado por todas as classes de credores, por meio do mecanismo denominado cram down, o qual, porém, não precisamos detalhar para os fins deste artigo.