Paulo Thadeu Gomes da Silva

A transmissão, pela mídia televisiva, da votação da admissibilidade do impedimento da Presidente da República, na Câmara dos Deputados, deu a conhecer, quando menos, a qualidade da atual representação política brasileira. De lado o fato de que a fé é a antítese da prova – o que serviria para desqualificar a fundamentação de muitos votos proferidos se de decisão judicial se tratasse –, a invocação da religião como razão de decidir dos parlamentares evidencia uma questão muito importante para a sociedade brasileira.
Se considerarmos adequada a tese de que a sociedade moderna, aí incluída a brasileira, é aquela diferenciada funcionalmente em sistemas, e sem que isso signifique um parti pris, essa forma de proceder dos integrantes do sistema político demonstra um problema de relação entre os sistemas aí envolvidos, quais sejam, o político e o religioso.
A política e a religião constituem sistemas diferentes, com códigos, programas, mediuns e funções distintas. O sistema político tem o código governo/oposição, os programas representados pelas ideias e ideologias políticas, o medium representado pela concorrência pelo poder e a função de produzir decisões coletivas vinculantes; já o sistema religioso tem o código imanência/transcendência, os programas representados pelos textos religiosos e rituais, o medium representado pela crença e a função de transformar a complexidade indeterminável em determinável.
Como podemos perceber, mesmo prima facie e aos olhos de um observador que não esteja familiarizado com essas distinções, estas se manifestam de forma bastante evidente, não deixando dúvidas ao intérprete de que se trata de coisas diferentes. Resta, então, descrever as relações possíveis entre esses dois sistemas.
A Constituição Federal, em seu artigo 19, I, ainda que de forma um pouco escondida e em linhas gerais, positiva o princípio da laicidade, mais comumente conhecido como a separação entre a religião e o Estado. Por esse princípio fica proibido à União, aos Estados, ao DF e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança. Essa vedação, conhecida como establishment clause, encontra sua fons et origo na Primeira Emenda à Constituição norte-americana.
Um sentido possível de ser extraído desse texto jurídico é aquele traduzido na imposição de neutralidade que deve nortear a ação do Estado, constituído pelos poderes e pela administração direta e indireta. Um exemplo forte dessa neutralidade pode ser encontrado na proibição de que um procurador da república denuncie alguém com base em sua crença religiosa e um juiz julgue fundamentado em mesmo motivo.
Com relação ao sistema jurídico não parece haver desconfiança de que assim deve se mover o mundo, contudo, quando se pensa no sistema político, a perplexidade parece tomar conta do observador, algo como se nesse sistema não houvesse a presença do mesmo impedimento, pois que ele também se difere do sistema jurídico, no qual vige, por exemplo, a tripla negativa representada pela proibição do non liquet.
Daí a produção de consequências de um voto proferido por um parlamentar com fundamento religioso. O problema ganha corpo quando se pensa em que esse tipo de conduta pode ser realizado no processo legislativo em geral aplicado à elaboração das espécies normativas positivadas no artigo 59, da Constituição Federal.
E aqui entra em cena um outro evento presente na sociedade mundial, que é a secularização. Em termos de um refinamento conceitual, ela, a secularização, se difere da laicidade, pois enquanto esta última se refere ao Estado, aquela se refere à sociedade. Para George Jacob Holyoake<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, a doutrina do secularismo era vinculada ao bem-estar humano por meios materiais e a uma certa ideia de progresso que promovia a educação, inclusive dos costumes e hábitos, das pessoas – era algo como se as pessoas não mais orientassem as suas vidas pelo valor-guia da religião –; já para Luhmann secularização significa o confisco de bens eclesiásticos, a abolição de privilégios clericais e o estabelecimento do matrimônio civil conforme a lei<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Em nível constitucional pode-se afirmar que a secularização vem positivada nos artigos 5, VI – liberdade de consciência –, 199, § 4º e 218-219, textos jurídicos dos quais há possibilidade de se extrair normas que contêm tanto a liberdade de não religião quanto do valor social da ciência e de seus métodos.
Portanto, há dois fenômenos a serem analisados quando se pensa na relação entre política e religião. A relação aqui tratada é tanto mais compreendida quanto mais se aprofunde a reflexão a respeito do grau de laicidade existente no Estado brasileiro e no grau de secularidade que se faz presente na sociedade brasileira.
Por uma observação geral parece ser plausível afirmar que o Estado brasileiro apresenta um grau acentuado de laicidade, enquanto que a sociedade brasileira apresenta um grau menor de secularização. A primeira afirmação decorre tanto da percepção geral que se tem da atuação do Poder Executivo quanto do Judiciário, especialmente da jurisdição constitucional, que tem servido de alternativa à concretização de direitos de igualdade das diferenças ou, sociologicamente, das lutas por reconhecimento.
A segunda afirmação bem pode ser representada, sem prejuízo de outros exemplos, pela atuação atual do Poder Legislativo, que sistematicamente tem bloqueado a formatação, por meio de elaboração de leis, daqueles mesmos direitos de igualdade em sua terceira dimensão, que é o reconhecimento – não mais apenas formal e material. Em geral, o que é comunicado à sociedade é que razões religiosas dominam o debate na esfera pública do Parlamento.
Essa forma de atuar ínsita à ideia de mandato eletivo outorgado pelo povo, a par de colocar e valorizar a jurisdição constitucional como última trincheira daquelas pessoas que não se sentem e não são de forma efetiva representadas por uma maioria ocasional, causa mais do que um simples ruído na comunicação entre os sistemas envolvidos, pois que um sistema, o religioso, acaba por determinar como um outro sistema, o político, deve se autorreproduzir, i.e., a comunicação religiosa prevalece sobre a comunicação política.
A mesma determinação estrutural de autorreprodução, emanada de um sistema a outro, produz o que se convenciona denominar de corrupção sistêmica, como que se o sistema político passasse a se autorreproduzir com base em estruturas do sistema religioso – invocar como fundamento de decisão Deus e a Bíblia são apenas alguns sintomas do diagnóstico –, não cumprindo mais sua função que é a de elaborar decisão coletiva vinculante, e por isso mesmo sendo vítima da desdiferenciação funcional.
O produto gerado, ao menos à luz do funcionamento dos mesmos sistemas em outras sociedades da sociedade mundial, demonstra uma disfunção sistêmica no Brasil, o que acaba por atingir o Estado Democrático de Direito, ainda que vá ao encontro de expectativas de uma maioria artificial expressa na atual legislatura, daí a necessidade de uma jurisdição constitucional forte e corretiva, preenchedora de lacunas que, em um contexto normal de temperatura e pressão de funcionamento sistêmico, por certo não far-se-ia necessário.
Luhmann mesmo chega a afirmar que há sistemas sociais que não se deixam subsumir claramente em um sistema social ou em outro, e dá como exemplos movimentos religiosos que são ao mesmo tempo políticos e vice-versa, v.g., o movimento sindical Solidariedade na Polônia, subvencionado por recursos religiosos e os movimentos a favor dos civil rights nos Estados Unidos<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Para o caso aqui tratado, acresça-se, há como que um véu da ignorância que não deixa ver os reais interesses que acabam por bloquear, em regra, o processo legislativo referente a determinadas reivindicações por direitos.
Do ponto de vista da tomada de medidas que objetivem impedir a desdiferenciação do sistema político pelo religioso, imunizando-o, tanto quanto possível, de tal prática, o Direito Eleitoral poderia criar a categoria do abuso de poder religioso<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, assim como já existem a do poder político, econômico e dos meios de comunicação social, o que deveria ser levado a efeito de acordo com a máxima da proporcionalidade, tendo em vista o direito fundamental de liberdade de crença.
No limite, seria o caso mesmo, diante de uma realidade disfuncional, de se declarar a Bíblia revogada pela Constituição ou a sua inconstitucionalidade frente ao texto jurídico.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> The principles of secularism ilustrated, London, Austin &amp; Co., 1871.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> La religión de la sociedad, Trotta, Madrid, 2007, p. 247.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> La religión de la sociedad, idem, p. 194.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Algum sinal, nesse sentido, já vem sendo dado: vide Recurso Eleitoral n. 49381, TRE-RJ, 24.6.2013 e entrevista do Ministro Dias Toffoli sobre o tema em <a href="http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/03/1748420-ha-projeto-de-captura-do-estado-por-segmentos-religiosos-diz-toffoli.shtml">http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/03/1748420-ha-projeto-de-captura-do-estado-por-segmentos-religiosos-diz-toffoli.shtml</a> .

camarareli

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