Francisco Eduardo Carrilho Chaves

Depois de o STF, ao julgar o RE 636.886 (Tema 899 da Repercussão Geral), haver fixado a tese da prescritibilidade das ações de ressarcimento fundadas em decisões de tribunais de contas (TCs), vimos vários comentários sobre os impactos dessa deliberação, mas pouca discussão quanto às razões de decidir utilizadas.
A finalidade do artigo é identificar critérios sólidos para o decisum, dado que o mandamento de que todos julgamentos sejam fundamentados (art. 93, IX) é inafastável, limitando o princípio do livre convencimento do juiz. O julgado deve resultar, lógica e tecnicamente, de elementos presentes nos autos.
Preliminarmente, devemos demarcar a matéria em discussão. Por determinação constitucional, acórdão de TC que imputa débito a responsável (prejuízo quantificado causado pelo responsável – valor a ser ressarcido) ou impõe multa (sanção pecuniária) tem eficácia de título executivo (art. 71, § 3º). Caso o responsável não pague espontaneamente, procede-se à execução judicial.
Também por norma constitucional, apenas TC julga contas – nenhum outro órgão pode fazê-lo, nem mesmo judicial<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Esse julgamento não é simples análise fria de demonstrativos contábeis, números. Tal ideia é tanto anacrônica quanto tecnicamente equivocada. Ao julgar contas, o TC avalia gestão, que é resultado de um conjunto de atos juridicamente relevantes praticados pelo administrador (pessoa): os denominados atos de gestão. Prática de atos nada mais é do que conduta.
Assim, a Corte de Contas julga condutas típicas de gestão de administradores públicos, não documentos, e o órgão deve evidenciar o liame subjetivo entre o agir do gestor e o resultado antijurídico ao definir responsabilização, garantidos o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, como determina o inciso LV do art. 5º da Carta de 1988. A responsabilização no TC segue rito obsequioso a esse direito fundamental e sempre é subjetiva, nunca objetiva.
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Muitos atos ilegais de gestão podem caracterizar ilícitos em diferentes esferas de competência. Uma licitação fraudada na qual haja superfaturamento atrai a competência do TC, mas também pode revelar condutas condenadas, por exemplo, nos âmbitos administrativo-disciplinar, penal, civil (no que se enquadra a improbidade administrativa). Preserva-se, contudo, a independência de instâncias.
Feita a necessária introdução, conheçamos os pilares da deliberação: i) a regra da prescritibilidade somente é excepcionada por dicção constitucional expressa; ii) não se garantem perfeitos contraditório e ampla defesa em processo no TC, pois não é um feito judicial; iii) as teses fixadas nos Temas 666 e 897 da Repercussão Geral determinam que somente ações de ressarcimento por atos dolosos de improbidade administrativa são imprescritíveis; iv) TC não é órgão judicial e não julga improbidade administrativa.
Concordamos que a imprescritibilidade é excepcional, devendo ser indicada taxativamente na Constituição. Vamos além. A nosso sentir, deve ser prevista pelo constituinte originário.
Pois bem, o § 5º do art. 37 da CF diz o seguinte: “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”.
Ou seja, o constituinte primário estatuiu: no que é afeto a ilícitos causadores de prejuízo ao erário praticados por qualquer agente, a regra é a prescrição, que somente não corre contra correspondentes pretensões de ajuizar ações para obter os ressarcimentos pelos prejuízos causados.
Assim, exceto pela pretensão de agir para ressarcir os danos, todas as demais pretensões, inclusive a punitiva, serão afetadas pela ação do tempo, na forma da lei. Evidente, portanto, que a Constituição excepciona taxativamente as ações de ressarcimento do manto genérico da prescrição.
O segundo alicerce, data venia, nos parece mais uma ilação que não encontra abrigo na ordem jurídica: o contraditório e a ampla defesa em processo no TC não seriam plenamente exercidos, por se tratar de processo administrativo. Prevalecendo essa ideia, nenhuma decisão de tribunal de contas seria válida, estando apenas a esperar pela anulação.
Em todas as esferas da Federação, os ritos nos TCs são próprios e, óbvio, diferentes dos judiciais, mas são dos mais bem regulados no âmbito administrativo. Vemo-nos autorizados a retirar do voto a ideia de que, por não ser judicial, toda decisão em processo administrativo é sabida e naturalmente inconstitucional, por violar o inciso LV do art. 5º da CF, somente no aguardo de que a pecha seja formalmente declarada. Ainda que estejamos imbuídos do mais profundo respeito pela avaliação do STF, havemos de convir que isso é impensável.
<blockquote class="jota-article__eye">O terceiro sustentáculo da decisão é o de que as teses fixadas nos Temas 666 e 897 conduzem a que unicamente as ações de ressarcimento por atos dolosos de improbidade administrativa são imprescritíveis. Não é objeto deste artigo debater esses temas, razão pela qual apenas comentaremos o uso das teses neles construídas como fundamento para decidir no Tema 899.</blockquote>
O Tema 666 é este: “Imprescritibilidade das ações de ressarcimento por danos causados ao erário, ainda que o prejuízo não decorra de ato de improbidade administrativa”.
O STF fixou a seguinte tese: “É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”. Percebe-se claramente que buscar ressarcimento não é privilégio das ações de improbidade administrativa, e que a Corte limitou em muito a amplitude do que foi colocado em discussão, tão-somente estatuindo que é prescritível a pretensão da fazenda pública de cobrar danos a ela causados pela prática de ilícitos civis.
O Tribunal Constitucional não deliberou nem incluiu no enunciado reparações de danos derivados de outros ilícitos, tais como: penais, administrativos, tributários e trabalhistas. Portanto, não é possível dizer nada em relação a esses outros, em nenhum sentido.
Cumpre ressaltar que a relação de gestores de recursos públicos com a Administração – âmbito em que atua o TC – se dá com base em regras de Direito Administrativo, não de Direito Civil.
Na deliberação sobre o Tema 897, que tem o seguinte enunciado: “Prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário em face de agentes públicos por ato de improbidade administrativa”, restou fixado que “são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”.
Dessa maneira, podemos afirmar, categoricamente, que se extrai o seguinte das teses fixadas nos Temas 666 e 897:
1) a prescrição alcança a pretensão de cobrar prejuízo ao erário derivado de ilícito civil (o STF não proferiu nenhum decreto em relação a ilícitos de outras naturezas);
2) no que tange à pretensão de cobrar ressarcimento por danos causados por atos de improbidade administrativa tipificados na LIA, a imprescritibilidade se aplica apenas às ações de ressarcimento de prejuízos derivados de atos dolosos.
Qualquer outra conclusão diferente tida como embasada nessas teses destoa do que efetivamente foi decidido. Todavia, o ministro Alexandre de Moraes afirmou no voto condutor do julgamento do RE 636.886 e da fixação da tese no Tema 899 que:
Analisando detalhadamente o tema da “prescritibilidade de ações de ressarcimento”, este SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL concluiu que, somente são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/1992 (TEMA 897). Em relação a todos os demais atos ilícitos, inclusive àqueles atentatórios à probidade da administração não dolosos e aos anteriores à edição da Lei 8.429/1992, aplica-se o TEMA 666, sendo prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública.
Imbuídos do mais profundo respeito pelo Colendo Excelso, podemos afirmar, com inabalável convicção, que as afirmações não correspondem à realidade.
O derradeiro esteio do voto é a afirmativa de que o TC não é órgão judicial e não julga improbidade administrativa, que se associa à já comentada ideia de que nesse órgão não são garantidos plenos contraditório e ampla defesa. Afirmou-se: “(a) a Corte de Contas, em momento algum, analisa a existência ou não de ato doloso de improbidade administrativa; (b) não há decisão judicial caracterizando a existência de ato ilícito doloso, inexistindo contraditório e ampla defesa plenos, pois não é possível ao imputado defender-se no sentido da ausência de elemento subjetivo”.
De fato, o TC não pertence ao Poder Judiciário e não julga qualquer ato com base na LIA, competência que é daquele Poder. Ainda que sejam verídicas, as afirmações não servem de base para as conclusões a que se chegou.
Os Temas 666 e 897 não têm nenhuma relação com as cortes de contas, que não julgam ilícitos de natureza civil (atos de improbidade administrativa, p.e.). O TC, dentro do seu mister constitucional, julga contas, podendo atribuir responsabilidade por prejuízo ao erário a pessoas que tenham praticado atos de gestão contrários ao Direito.
Por todo o exposto, extrai-se da Constituição e dos Temas 666 e 897 que não somente ações de improbidade administrativa visam ao ressarcimento por danos causados à fazenda pública, assim como, em momento algum, o STF afirmou que exclusivamente as ações de ressarcimento por atos de dolosos de improbidade administrativa estão resguardados da prescrição. Bem assim, que é, no mínimo, incongruente afirmar que o respeito ao contraditório e à ampla defesa seja imperfeito em processos administrativos.
Assim, não discutimos a posição do STF de intérprete último da Constituição, mas entendemos que a tese deliberada no Tema 899 não dialoga com os fundamentos empregados, revelando um enunciado tecnicamente frágil.
O tema é tratado pelo autor com maior detalhamento no Texto para Discussão 277 do Núcleo de Estudos Legislativos da Consultoria Legislativa do Senado Federal, acessível <a href="https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td277/view" target="_blank" rel="noopener noreferrer">por este link</a>.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> É pacífico na doutrina e na jurisprudência que o Judiciário pode anular deliberações de TCs com base em nulidade formal ou ilegalidade manifesta. Todavia, é defeso ao Judiciário rever o juízo de mérito exercido pelo TC sobre as contas, modificando-o. Quem afasta a jurisdição de contas do Poder Judiciário é a Constituição, não a lei.

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JOTA

Prescritibilidade de ressarcimentos com base em decisões de Tribunais de Contas

Fundamentos empregados pelo STF no julgamento do Tema 899

Prescritibilidade de ressarcimentos com base em decisões de Tribunais de Contas