Matias Falcone

Sim, fraude racial é crime. Para inquietação de milhares de jovens que acabam de ingressar na universidade por cotas, no fim do ano passado o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a> decidiu que “a conduta de inserir informação que sabe ser falsa em autodeclaração de raça, para ingresso em universidade pública pelo regime de cotas, pode configurar a prática do crime do art. 299 do Código Penal” (HC no 205.474<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>).
Com essa tese, a ministra Cármen Lúcia afirmou pela primeira vez na história da corte a existência do crime de fraude racial. Paradoxalmente, ao fazê-lo, também inocentou o jovem acusado da mesma imputação, por entender não estar presente, no seu caso, “o dolo necessário à configuração da conduta investigada”.
Mas, se agora não houve crime, quando haveria? O STF não deixou claro como “a conduta de inserir informação que sabe ser falsa em autodeclaração de raça” pode vir a configurar fraude racial. De fato, a decisão se limitou a dizer que “é necessária a demonstração de que o agente teve o dolo de inserir declaração de raça que sabia ser falsa”. Contudo, se o candidato sabia ser falsa a sua declaração de raça e a inseriu mesmo assim, adotando uma perspectiva cognitivista de dolo (que pressupõe conhecimento<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> acerca da falsidade), haveria necessariamente dolo em sua conduta. No fim, parece que o STF deu uma volta para chegar ao mesmo lugar: haverá dolo de fraudar o sistema de cotas se houver dolo.
O número surpreendente de casos análogos<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> justificaria, sozinho, refletir um pouco mais do que o STF se dispôs a fazer. Mas o principal motivo para tentarmos esboçar contornos mais claros ao crime de fraude racial é que a autodeclaração é não só um método de identificação, mas também a realização prática de algo mais importante, fundamental: o direito à autodeterminação de identidade, ou o direito a ser reconhecido pelo Estado e por toda a sociedade a partir da concepção que cada um tem de si mesmo.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
A expressão “sabia ser falsa” é um bom ponto de partida. O dolo pressupõe saber ser falsa a identidade racial declarada em documento público. Mas como saber? Não é possível responder a essa pergunta senão por um critério que separe o falso do verdadeiro, o que depende, antes de mais nada, da concepção de identidade que assumimos ao falar de fraude racial.
A literatura tradicionalmente separa a identidade em duas: objetiva (identidade física) e subjetiva (identidade pessoal).<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Para a primeira forma de identidade, não importa o que penso sobre mim mesmo: a identidade física é um destino que não escolho, mas me escolhe. Meu corpo e os dados biológicos que o informam serão analisados, sob tal ótica, como a composição química de um rochedo.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Se a falsa identidade física for decisiva para o crime de fraude racial, uma primeira indagação hipotética seria: podemos afirmar que alguém é preto, pardo ou indígena a partir de parâmetros rigidamente objetivos, ou seja, que tenham no exame alheio, imparcial e científico seu método? Ou, para fins penais: podemos afirmar que comete fraude alguém que se declara racialmente diverso do que a realidade parece sugerir?
O primeiro problema com tal formulação é metodológico. Não existe apenas um parâmetro para definir raça. A raça é relativa e biologicamente sequer é possível separar a humanidade em raças<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Nos EUA, por exemplo, a árvore genealógica é um fator decisivo para a identificação racial. Mais do que no Brasil, país intensamente miscigenado e composto por maioria afrodescendente do ponto de vista genômico.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> Como explicou o sociólogo Oracy Nogueira, o racismo brasileiro é de marca (fenótipo) e não de origem (genótipo).<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Mas fosse apenas um simples problema de método, bastaria corrigi-lo. É mais que isso: a dificuldade em aproximar critérios técnico-objetivos do debate racial revela, a um só tempo, um trauma e um fato. Um trauma porque remete às obscuras práticas de catalogação morfológica de criminosos, os verdadeiros tribunais raciais do começo do século 20. E um fato porque o corpo pode até ser um elemento constitutivo, mas não é o único que determina a identidade racial. Raça é política, raça é cultura e, sobretudo, raça é uma experiência profundamente pessoal e humana que um olhar estritamente objetivo falha em captar<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
A fraude parece estar em outro lugar que não no campo da aparência física. Outra hipótese seria delegar ao indivíduo a definição de sua raça, usar a segunda forma de identidade – a pessoal – como critério de veracidade ou falsidade. Por essa alternativa, poderíamos dizer que o candidato é preto, pardo ou indígena se assim se autodeterminar, ou seja, se se concebe de tal modo. Do contrário, se não se vê como preto, pardo ou indígena, e ainda assim opta por declarar-se como se fosse, comete fraude racial.
A identidade racial assumiria, sob a primazia do eu, caráter profundamente individual. Isso significa que seu modo de ser seria o mesmo de um sentimento, ou uma convicção, na medida em que existe apenas se e como experimentada pelo indivíduo<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Ocorre que daí se abririam possibilidades de autodeterminação mais radicais do que alguns estariam dispostos a aceitar. Casos como o da americana Rachel Dolezal – que embora não tivesse nenhum ancestral preto e sempre fora reconhecida como branca, se declarou afro-americana – passariam impunes pelo crivo criminal-racial. E se assumirmos a mesma linha de interpretação para outras características humanas, seríamos obrigados a aceitar também que o holandês Emile Ratelband, para quem “idade é fluida como gênero”, possa se declarar 20 anos mais novo do que é no registro civil.
Além de serem casos estranhos, e a estranheza que nos despertam indicar algo que não está certo, seria impossível reconhecer e atribuir dolo aqui. Porque se a identidade racial for compreendida como uma via somente de mão única, cujo único sentido é de dentro do indivíduo para fora, “significa, em última análise, atribuir a quem atua a competência para decidir se há ou não dolo”.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a> E, como explica o professor Luís Greco, “não é o agente, e sim o direito quem tem que exercer essa competência”.<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>
Por essa ótica, caberia ao agente saber se procede ou não com dolo ao informar dado racial em documento público. A rigor, essa interpretação das palavras do STF faz imaginar um cenário em que todos os jovens que se inscrevem no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/enem">Enem</a> a cada ano possam pleitear cotas raciais. Sem dolo.
Além de prender-se a uma compreensão equivocada e autocentrada do fenômeno identidade (não só racial<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>), essa construção blinda o agente contra qualquer imputação subjetiva externa a ele. Como o direito pressupõe, por definição, não só o eu, mas também o outro, uma relação normativa a dois ou mais sujeitos não pode contentar-se com tal formulação. Afinal, se ninguém além do declarante reconhece a sua identidade, ainda é uma identidade? Parece que não.
É possível a alguém acreditar sinceramente que é preto, pardo ou indígena, e não ser reconhecido assim pelos outros, no caso, pela banca de verificação? Sim, mas o desacordo entre a percepção individual e a coletiva não significa que o candidato não pertença a uma minoria racial para todos os outros fins, apenas para os fins das cotas raciais, que visam beneficiar pessoas que podem ser racializadas, isto é, que podem ser alvos de racismo no curso de suas vidas.<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a> Por isso o foco do exame externo na imagem que o candidato projeta para o mundo, na sua aparência física, nos trejeitos, em traços fenotípicos como a tonalidade da pele, textura do cabelo, entre outras características que possam atrair visualmente racismo.<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>
Logo, mesmo que a banca diga ao candidato “não, você não vai entrar aqui por cotas raciais”, é preciso mais do que isso para que se instaure não só um procedimento administrativo de exclusão, mas também um penal.
É preciso que o candidato aja com dolo, e para tanto o que deve ser examinada não é a sua raça biológica, que sequer existe (primeira forma de identidade, física e objetiva), nem apenas a concepção íntima que tem de si mesmo (segunda forma de identidade, pessoal e subjetiva), mas sim a sua raça enquanto fenômeno dialógico (uma terceira forma de identidade, relacional e intersubjetiva<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>), que demanda reconhecimento recíproco e perpassa tanto características físicas do corpo quanto a psique do próprio sujeito, mas não se reduz a nenhuma delas.
Para a jurista e socióloga Camile Rich, que formulou o conceito de “raça eletiva”, um sujeito pode ter múltiplas raças.<a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a> Um possível desdobramento das ideias de Rich é que o candidato a cotas pode ser percebido como branco em casa, na relação com a família, mas não entre os amigos. No trabalho é pardo, porque tem pele mais escura do que alguns de seus colegas. Talvez tenha ancestrais indígenas, embora não conviva com as tradições do passado. Para todos os casos ambíguos, diante da multiplicidade do fenômeno racial, in dubio pro reo: se houver dúvida quanto à presença de animus falsandi – e a negativa da banca examinadora não encerra a dúvida, é antes um dos elementos que a suscita – não há investigação e muito menos processo penal que possa subsistir.
Cabe à acusação buscar na vida social do candidato e no diálogo que ele estabelece com as pessoas ao seu redor elementos a corroborar eventual fraude racial. A dinâmica probatória desses casos será naturalmente complexa, e deve ser mesmo, porque a dialética do reconhecimento racial também o é.
Podemos, com isso, ensaiar contornos mais claros ao crime de fraude racial. Para o STF, a autodeterminação é um direito fundamental mas, se ilimitado, pode colocar em risco a eficiência do sistema de cotas. A concepção que o sujeito tem de si mesmo importa, mas deve encontrar algum mínimo respaldo social.
Tendo por base o conceito dialógico de identidade, que demanda reconhecimento, poderíamos afirmar que comete crime de fraude racial quem não é reconhecido ou discriminado em nenhum âmbito da vida social como preto, pardo ou indígena, ou seja, que não dispõe de nenhuma referência intersubjetiva para afirmar-se enquanto tal, mas, ainda assim, opta por declarar-se como minoria racial com o fim de obter vantagem indevida.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Mais informações sobre o caso podem ser encontradas no link a seguir: <a href="http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6238663">http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6238663</a>.
Todas as citações foram retiradas do voto da ministra relatora Cármen Lúcia.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Segundo esse entendimento, o dolo teria um dúplice conteúdo psicológico, uma componente cognitiva e outra volitiva. A primeira delas significa que a cabeça do autor conteria algo como uma fotografia interna da realidade, uma espécie de imagem de como o mundo se encontra no momento da ação e de como ele se encontrará depois dela.” (GRECO, Luís. Dolo sem vontade, in: Silva Dias e outros (coords.), Liber Amicorum de José de Sousa e Brito, Coimbra, Almedina, 2009, p. 888).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Em artigo instigante sobre o mesmo tema, Felipe Maia Broeto e Fernando Cesar de Oliveira Faria citam alguns casos. (BROETO, Felipe Maia; FARIA, Fernando Cesar de Oliveira. Sistema de cotas e Direito Penal: reflexos que podem durar uma vida. CONJUR. 2021)
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Adotei a mesmo definição do direito à autodeterminação em outro trabalho,  ao qual faço referência: FALCONE, Matias. Ser ou não ser: os limites da autodeterminação de identidade e a dialética do reconhecimento. Trabalho de Conclusão de Curso - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. São Paulo. 2020. Disponível em:
<a href="https://hdl.handle.net/10438/29703">https://hdl.handle.net/10438/29703</a>. Tive o privilégio de ser orientado, na ocasião, pelo professor José Garcez Ghirardi.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> JÚNIOR, A. Almeida; JÚNIOR, J.B. de O. e Costa. Lições de Medicina Legal. 22. Ed. rev. e ampl. - São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1998. p. 21.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> SEARLE, John R. Mente, linguagem e sociedade. Filosofia no mundo real. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 47
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> SPINELLI, Kelly Cristina. Raças humanas não existem como entidades biológicas, diz geneticista. Entrevista do geneticista Sergio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, para a Folha de S. Paulo. Disponível em: <a href="https://www.uol.com.br/tilt/ultimas-noticias/redacao/2013/02/05/racas-humanas-nao-existem-como-entidades-biologicas-diz-geneticista.htm?cmpid=copiaecola">https://www.uol.com.br/tilt/ultimas-noticias/redacao/2013/02/05/racas-humanas-nao-existem-como-entidades-biologicas-diz-geneticista.htm?cmpid=copiaecola</a>
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> PENA, S. D. P.; BORTOLINI, M. C. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? Estudos Avançados, v. 18, n. 50, p. 31-50, 2004. p. 39
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> NOGUEIRA, Oracy. Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de Origem: sugestão de um quadro de referências para interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, revista de sociologia da USP. V.19, n.1. p 294.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Assim entendeu também o STF ao julgar a ADO 26 e o MI 4.733.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Op. Cit. SEARLE, 2000, p. 47.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Op. Cit. GRECO, 2009, p. 896.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Idem.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Faço referência novamente a Ser ou não ser: os limites da autodeterminação de identidade e a dialética do reconhecimento, p. 64, onde esta ideia é melhor desenvolvida.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> GUIMARÃES, A. S. F. 1999. Racismo e Anti-Racismo no Brasil, SP: Ed. 34
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> A lei reconhece a autonomia do candidato para declarar sua própria raça (parágrafo único, art. 1º, Estatuto da Igualdade Racial), mas também disciplina o funcionamento das bancas de verificação, que devem avaliar o candidato exclusivamente segundo o critério fenotípico (art. 9º e parágrafos, Portaria Normativa n. 4 de 2018). Sobre as chamadas “zonas cinzentas”, onde pairam dúvidas, prevalece a autodeterminação (art. 3º, § 2º, Portaria no 4), como entende também o STF em respeito à dignidade e autonomia dos declarantes (ver ADPF 186 e ADC 41).
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> MARKOVÁ, Ivana. Constitution of the self: Intersubjectivity and dialogicality. Culture &amp; Psychology, v. 9, n. 3, p. 249-259, 2003. Partindo do mesmo conceito dialógico de identidade, ver: TAYLOR, Charles et al. The politics of recognition. New contexts of Canadian criticism, v. 98, p. 25-73, 1997.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> Rich, Camille Gear, Elective Race: Recognizing Race Discrimination in the Era of Racial Self-Identification (March 6, 2013). Georgetown Law Journal, Vol. 102, 2014, USC Legal Studies Research Papers Series No. 14-41. Disponível em: <a href="https://ssrn.com/abstract=2506379">https://ssrn.com/abstract=2506379</a>

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JOTA

Os efeitos incertos do julgamento do HC 205.474 pelo Supremo Tribunal Federal

Fraude racial é crime?

A discussão sobre fraude racial e os efeitos incertos do julgamento do HC 205.474 pelo Supremo Tribunal Federal