Janaína Penalva

A substância química fosfoetanolamina tornou-se palavra corrente após ser apresentada por pesquisadores do Instituto de Química da USP de São Carlos como uma alternativa terapêutica para diversos tipos de câncer. A mídia noticiou um súbito crescimento de decisões judiciais deferindo o fornecimento da substância no estado de São Paulo.
Há algumas semanas, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, deferiu pedido de suspensão de tutela antecipada que determinara o fornecimento da fosfoetanolamina sintética para paciente com câncer, sustentando que a substância não é inscrita como medicamento e, portanto, seu fornecimento implica em risco de dano grave à ordem e à economia públicas. Acertou des. Nalini.
Um pedido de suspensão da dessa decisão chegou ao STF e o ministro Luiz Edson Fachin concedeu medida cautelar para suspendê-la. O ministro usou o reconhecimento de repercussão geral no RE 657.718/MG, em que se discute o fornecimento de medicamentos ainda não registrados na Anvisa, como fundamento da sua decisão. Concedeu a medida cautelar porque “a presença de repercussão geral (tema 500) empresta plausibilidade jurídica à tese suscitada pela recorrente”. Errou ministro Fachin. Os casos não são iguais.
A fosfoetanolamina sintética é substância nova, mas a questão jurídica que suscita não. Trata-se de mais um caso que pode ser compreendido a partir do fenômeno da judicialização das políticas de saúde, especificamente, no que tange à interrogação sobre a adequação científica e jurídica do fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa pelo poder público. Embora a decisão do ministro Fachin esclareça pouco em termos de direitos, tomar experimentos como tratamentos repercute muito na vida das pessoas e na saúde pública do país.
O caso mencionado, o RE 657.718/MG com repercussão geral, é a quintessência da judicialização da saúde, o STF vai discutir se as decisões da Agência Nacional de Vigilância Sanitária são imprescindíveis à vigilância sanitária. Sim, é exatamente isso. Vigilância sanitária significa controle e fiscalização de serviços, produtos e substâncias de interesse para a saúde. Nos termos da Lei nº 8.080/1990 e da Lei nº 9.782/1999, indagar se a vigilância sanitária é pressuposto para o fornecimento de medicamentos é indagar se as ações de eliminação, diminuição e prevenção à saúde são dimensões do próprio direito à saúde.
Analisar segurança, qualidade e fixar o preço do produto são tarefas imprescindíveis à garantia do direito à saúde. Os problemas de execução dessa política pela Anvisa, algo que envolve a apreciação dos pedidos de registro em tempo razoável e da forma devida, são questões importantes a serem enfrentadas, mas insuficientes para se substituir seu juízo pelo dos magistrados. De toda sorte, esse é o debate a ser enfrentado pelo STF no julgamento da repercussão geral reconhecida no RE 657.718/MG.
O caso da fosfoetanolamina é outro, a situação é ainda mais crítica, pois não há um medicamento.
A confusão entre tratamento e experimento é o que explica a decisão do ministro Fachin e a de inúmeros outros juízes que concederam a fosfoetanolamina para o tratamento do câncer. Experimentos não valem como tratamentos e não há um direito a que investigações se tornem pesquisas clínicas, tampouco um dever do sistema público de saúde em arcar com os custos de determinado experimento e com as consequências dos mesmos para a saúde dos participantes.
A USP publicou nota esclarecendo que a fosfoetanolamina “não é remédio. Ela foi estudada na USP como um produto químico e não existe demonstração cabal de que tenha ação efetiva contra a doença: a USP não desenvolveu estudos sobre a ação do produto nos seres vivos, muito menos estudos clínicos controlados em humanos. Não há registro e autorização de uso dessa substância pela Anvisa e, portanto, ela não pode ser classificada como medicamento, tanto que não tem bula.”
Fiocruz também veio a público e disse: “para determinar se a substância é ou não uma alternativa terapêutica para o combate a neoplasias ou qualquer doença, são necessários, primeiramente, estudos precedidos de aprovação do Comitê de Ética (Conep), com protocolo de pesquisa clínica aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Portanto, ainda não é possível levantar considerações ou garantias, sem uma série de estudos pré-clínicos e clínicos, sobre a eficácia e a segurança terapêutica do uso clínico de cápsulas com sal de etanolamina no combate ao câncer.
Não há um direito a ser parte de experimentos científicos. As condições para ser participante em pesquisa não passam pelos direitos e sim pelas condições de investigação definidas pela própria ciência e reguladas pelas diretrizes da ética em pesquisa. Assim, o papel do juiz deve ser, no máximo, assegurar que tratamentos não se confundam com experimentos, que indivíduos possam ser participantes de estudos clínicos desde que consintam de forma informada e esclarecida e que tais estudos se desenrolem sob os princípios da ética em pesquisa e dos direitos humanos.
Atendidas essas condições, os indivíduos saberão os riscos e benefícios potenciais de sua participação, com clareza de que não são pacientes em tratamento. A certeza quanto a essa diferença é essencial não apenas à saúde e integridade das pessoas, mas à gestão ética do sistema de saúde e de seus recursos.
No caso da fosfoetanolamina, pelos termos citados da nota pública da USP e da Fiocruz, vemos que não há sequer estudos pré-clínicos, ou seja, informação obtida por pesquisas em modelos celulares e animais, fase importante e que deve preceder à experimentação em humanos. A substância está em estudo como um produto químico e não como um possível tratamento em saúde.
No percurso até a disponibilização pública de um produto, vale mencionar que a Anvisa também conta com a autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa-Conep, do Conselho Nacional de Saúde. Após as etapas de demonstração de eficácia e segurança, há de se observar a probabilidade de reprodutibilidade dos resultados (eficácia, segurança e efetividade) na utilização em populações fora do contexto controlado da pesquisa, o que a Lei nº 12.401/2011 faculta à Comissão Nacional de Avaliação de Tecnologias em Saúde-Conitec (assim como os Decretos n. 7.646/2011 e 7.508/2011).
Ao voltar nossas análises aos juízes, não podemos, todavia, negligenciar a responsabilidade ética dos médicos prescritores da substância e a eventual participação dos pesquisadores envolvidos. Os pedidos judiciais de fornecimento da substância são instruídos por laudos médicos que indicam o uso da fosfoetanolamina como tratamento no caso concreto. Da mesma forma, o passo entre as pesquisas realizadas na USP e o uso da substância como terapia também merece investigação.
Na década de 1990, ganhou notoriedade o caso da distrofia muscular de Duchene, uma doença hereditária que provoca a falência respiratória pela degeneração progressiva dos músculos. Um médico chinês radicado nos EUA conseguiu que médicos brasileiros indicassem seu experimento como alternativa ao tratamento da doença. O experimento já contava com rejeição pública de associações internacionais e nacionais da doença. Todavia, a partir de indicações médicas e decisões judiciais que determinavam ao poder público o pagamento do experimento, que custava algo em torno de 200 mil dólares, muitas crianças brasileiras foram submetidas ao experimento que, além de extremamente dolorido, fora completamente ineficaz. Muitas foram a óbito, em seguida aos procedimentos.
Judicialização da saúde não é um tema só. O caso do uso da fosfoetanolamina sintética no tratamento do câncer e a repercussão geral reconhecida no RE 657.718/MG referem-se a apenas um dos pontos envolvidos na judicialização das políticas de saúde: o fornecimento de medicamentos ou tratamentos experimentais não autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Mas há outros importantes desafios envolvidos no tema, um deles é a adequada intervenção judicial no caso de omissão do poder público no fornecimento de bens e na prestação de serviços de saúde regulados e incorporados à política de saúde pública. Nessas situações, embora haja controvérsia, o ponto não é a correção da intervenção judicial em assuntos de política pública, e sim a correta identificação dos direitos envolvidos no caso concreto. Afinal, se há direitos ameaçados ou violados, a prestação jurisdicional é inafastável.
As principais questões que envolvem a judicialização da saúde foram debatidas pelo STF em 2009 em uma audiência pública que talvez seja a mais genuína audiência pública que o STF já realizou, por diversos fatores, mas principalmente porque em nenhum outro caso a corte estava tão precariamente informada e as ações tão pobremente instruídas. Além disso, embora não tenha sido sucedida por decisões judiciais que encerrassem os conflitos postos, essa audiência teve consequências singulares como a instituição de uma rede nacional formada pelos atores do sistema de justiça e de saúde em nível regional e nacional, coordenada pelo CNJ. O Fórum Nacional da Saúde atua em parceria com o Ministério da Saúde e já realizou duas Jornadas do Direito à Saúde em que foram aprovados enunciados interpretativos, sem efeito vinculante, que apoiam os juízes na decisão de casos que envolvam a saúde pública e suplementar.
Não há mais tempo para insegurança, já estamos suficientemente maduros para decidir. Completamos duas décadas de estudos sobre os temas envolvidos na judicialização das políticas de saúde, há uma ampla literatura nacional e internacional sobre o tema, tribunais já encontraram formas criativas de lidar com temas para os quais os juristas não foram treinados. O que falta agora são decisões. É preciso que o STF abandone de vez a obscuridade e não apenas decida os casos que aguardam julgamento há anos, mas que os decida de forma correta, garantindo o direito à saúde sob o marco da ciência.

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JOTA

STF deve garantir o direito à saúde, mas sob o marco da ciência.

Fosfoetanolamina: a quintessência da judicialização

STF deve garantir o direito à saúde, mas sob o marco da ciência.