Raecler Baldresca

Em determinadas situações, em face da relevância do cargo que ocupam ou da função que certas pessoas desempenham, a lei afasta todos os critérios de competência existentes e determina que sejam julgadas por órgãos específicos do Poder Judiciário, distintos do foro comum previsto aos cidadãos em geral.
É a chamada prerrogativa de foro que deveria ter por finalidade a proteção do cargo público ou do mandato eletivo de determinado agente do cenário político-jurídico brasileiro.
Nos últimos quinze anos o Supremo Tribunal Federal imprimiu mudanças significativas na interpretação das regras referentes ao foro especial para autoridades públicas e os últimos acontecimentos sugerem que mais ainda está por vir.
Com efeito, até 1999 prevalecia o entendimento do STF de que o foro especial seria mantido ainda que cessado o mandato ou o cargo da autoridade processada criminalmente; vale dizer, os ex-ocupantes de cargos públicos manteriam o privilégio de foro mesmo após o encerramento de seu exercício. Essa situação foi alterada no julgamento do Inquérito 687-4 (SP) quando a Corte afastou o foro especial sob o argumento de que sua finalidade era proteger o cargo e não a pessoa que o ocupa, menos ainda quem deixou de ocupar ou não mais o exerce.
De lá pra cá, a Suprema Corte alterou diversas vezes seu entendimento sobre o tema, sempre buscando coibir manobras que buscavam usar o foro especial como proteção pessoal ou mesmo a fim de retardar o andamento do processo.
Isso ocorreu, por exemplo, quando em evidente reação legislativa à decisão da Corte foi editada a Lei 10.628/2002 que pretendia ampliar o foro especial para ex-ocupantes de cargo/mandato, além de incluir o foro por prerrogativa de função para as hipóteses de ação de improbidade administrativa. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal foi chamado para se manifestar sobre a questão e acabou por reconhecer a inconstitucionalidade daquela lei, afastando o foro especial pretendido.
Ocorre que esse entendimento permitiu que a autoridade que renunciasse ao cargo/mandato deslocasse o julgamento para o primeiro grau de jurisdição quando lhe conviesse. Foi o que ocorreu na Ação Penal 333/PB, em que o réu, Ronaldo José da Cunha Lima, havia renunciado ao mandato poucos dias antes do julgamento, depois que a inclusão do feito em pauta já havia sido publicada. Na ocasião, embora o Ministro Joaquim Barbosa tenha defendido que a conduta do réu constituiria abuso de direito com intenção de procrastinação do feito, sua tese restou vencida, tendo a maioria do Tribunal entendido que a renúncia era ato legítimo capaz de produzir efeitos no plano processual, o que implicou na declinação da competência para o primeiro grau de jurisdição.
No final de 2010, nova tentativa de manipulação das regras de competência ocorreu. Dessa vez, porém, o STF acabou por mudar seu entendimento para evitar abuso de direito de autoridade que, se valendo do instituto da renúncia do cargo, pretendia alterar a competência fixada, praticando evidente “fraude processual inaceitável” nas palavras da Ministra Cármen Lúcia, relatora da ação penal em que era réu Natan Donadon. Com efeito, na AP 396 a Ministra Relatora defendeu que, embora a renúncia do mandato fosse um ato legítimo, não se prestaria “a ser subterfúgio para deslocamento de competências constitucionalmente definidas, que não podem ser objeto de escolha pessoal.”
Na mesma linha restritiva adotada para tratar da renúncia, não tem o STF admitido a extensão do foro privilegiado a pessoas que não o detém só pelo fato de serem acusadas dos mesmos crimes, incluindo-se, por exemplo, parentes de autoridades públicas. O argumento de que estariam sendo processadas pelos mesmos crimes não tem sido suficiente para levar o julgamento ao foro especial. Mais uma vez, é a Suprema Corte definindo a regra do jogo e impedindo a utilização da prerrogativa como escolha pessoal.
O avanço da denominada Operação Lava Jato e seus inevitáveis desdobramentos políticos apontam que o trabalho da Suprema Corte está longe de terminar, mas a história recente sugere que contar com o privilégio da prerrogativa de foro para qualquer situação pode não ser uma boa estratégia.

Justice is blind ( … or maybe not )

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JOTA

História recente sugere que contar com o privilégio da prerrogativa de foro para qualquer situação pode não ser uma boa estratégia

Foro Privilegiado - A Regra do Jogo

História recente sugere que contar com o privilégio da prerrogativa de foro para qualquer situação pode não ser uma boa estratégia