Felipe Herdem Lima

Como muito bem observado por Juliana Bonacorsi Palma, o princípio da supremacia consiste no principal fator de legitimação das prerrogativas públicas, "sendo emblemático ao direito administrativo brasileiro, cuja construção teórica hoje mais difundida toma-o como princípio estruturante do sistema jurídico administrativo".<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
O princípio da supremacia foi introduzido ao direito administrativo brasileiro, mediante as obras de Pimenta Bueno e Themístocles Brandão Cavalcanti, logo no início do século XX.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Celso Antônio Bandeira de Mello, por sua vez, construiu a sua teoria do direito administrativo com base em dois pilares mestres, sendo esses os da supremacia e da indisponibilidade do interesse público. Em seu curso de direito administrativo, o tema é tratado em seu capítulo inaugural.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Tratando-se de atuação administrativa consensual, parcela da doutrina entende que em virtude da supremacia e indisponibilidade do interesse público, a Administração não poderia realizar acordos administrativos, já que, ela deixaria de atuar com base no interesse público para adotar soluções negociadas que podem contemplar interesses privados.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Mais uma vez, como aponta Juliana Bonocorsi, "é a lógica do consenso que dita relações horizontalizadas entre a Administração Pública e administrado, própria do direito privado, que se oporia ao princípio da supremacia."<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Ponto central para um possível desenvolvimento do tema aqui tratado é realizar uma reflexão sobre os princípios da supremacia e indisponibilidade do interesse público. Diante desta premissa, o núcleo central a ser flexibilizado é a construção destes princípios ao longo da construção do direito administrativo (muito influenciado pela escola da puissance publique).
Portanto, a flexibilização e reflexão sobre tais princípios pode ser o caminho de entrada para a consensualidade e o debate da administração pública com os administrados. Neste sentido, merece destaque o ensinamento de Juliana Bonacorsi Palma:
Pretende-se, portanto, realizar uma reflexão sobre o dogma repetido pela literatura<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> de que a supremacia do interesse público possui a capacidade de legitimar a autoridade estatal, já que, segundo este entendimento, a supremacia possui o condão de justificar restrições estatais e legitimar, consequentemente, as prerrogativas exorbitantes do Estado.
Conforme aponta Gustavo Binenbojm, questiona-se a validade do critério ditado pelo princípio da supremacia em estabelecer aprioristicamente o interesse a prevalecer em todos os casos concretos, desconsiderando outros interesses legítimos que podem se apresentar (interesses privados) e que, por meio da ponderação de interesses, poderiam prevalecer no caso concreto.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Tratando sobre o assunto, observa Floriano de Azevedo Marques, que em uma sociedade fragmentada não é possível extrair um interesse unívoco, definível previamente à situação concreta, para prevalecer em abstrato sobre qualquer conflito administrativo que possa ser verificado.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> Assim, todos os interesses envolvidos no caso concreto devem ser analisados e ponderados, de modo que, a Administração escolha (sempre de forma motivada) o interesse que deverá prevalecer.
Como lembra Juliana Bonacorsi Palma "a prevalência a priori do interesse estatal, de acordo com o princípio da supremacia, deve-se assinalar sua total incapacidade com a atuação administrativa consensual. Se assim fosse reconhecido, haveria um impedimento originário de celebração de acordos administrativos pela Administração, pois invariavelmente o interesse exarado pelo Poder Público prevaleceria, e, assim, impossibilitaria qualquer forma de negociação em torno do exercício das prerrogativas públicas".<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, lembra que "o conceito de interesse público passa de obstáculo a aspecto essencial da administração pública por consenso".<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> Para fins de compatibilização entre a definição do interesse público e o exercício da administração consensualizada, o autor traz à doutrina alemã da teoria do duplo grau, "que parte da distinção entre categorias ou níveis de exercício de poder: a categoria primária (primãre Stufe) e a categoria secundária (sekundäre Stufe), cabendo à esfera do público, a decisão primária de poder que se compreende em sua competência de agir, e à esfera do privado, a decisão secundária de poder, perfeitamente negociável, de escolher a melhor solução para atuar."<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Lembra ainda que, a solução alemã prosperou na Itália com a denominação de teoria  del doppio grado, e conclui que a teoria "é a que hoje mais se afeiçoa à visão subsidiária e pluralista do Estado, uma vez que distingue o nível de manifestação de vontade administrativa dotada de um poder estatal primário e, por isso, absoluto, inegociável e inflexível de dar-se a execução de um determinado interesse público concreto, situada no plano supra-ordinado das decisões vinculadas, do nível de manifestação de vontade administrativa dotada de um poder estatal secundário e, por isso, relativo, negociável e flexível, situado em plano subordinado das decisões discricionárias."<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>
Portanto, a admissibilidade do consenso administrativo em decisões puramente reservadas às decisões de império, só é possível através da redefinição do conceito de interesse público e "a diferenciação entre os tipos de atuação sujeitas à imperatividade administrativa e as sujeitas à autonomia administrativa".<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
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O Sem Precedentes desta semana analisa <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/marco-aurelio-votara-para-autorizar-depoimento-de-jair-bolsonaro-por-escrito-24092020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">o voto antecipado do ministro Marco Aurélio Mello</a>, do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>, que reconhece a possibilidade de o presidente Jair Bolsonaro prestar depoimento por escrito à Polícia Federal no âmbito do inquérito que apura possível interferência do presidente na PF. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=b5DJpYU79EE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> PALMA, Juliana Bonacorsi. PALMA, Juliana Bonacorsi. Sanção e Acordo na Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2015. 166.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BUENO, Pimenta e CAVALCANTI, Themístocles Brandão apud LIMA, Gabriel de Araújo. Teoria da supremacia do interesse público: crises, contradições e incompatibilidade de seus fundamentos com a Constituição Federal.  Revista de Direito Administrativo e Constitucional abril-junho/2009, Belo Horizonte: Fórum, p. 124.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Neste sentido ver MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 55 e ss.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> PALMA, Juliana Bonacorsi. PALMA, Juliana Bonacorsi. Sanção e Acordo na Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2015p. 167.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Neste sentido merece destaque o posicionamento de Hely Lopes Meirelles: "Com efeito, enquanto o direito privado repousa sobre a igualdade das partes na relação jurídica, o direito público assenta em princípio inverso, qual seja, o da supremacia do Poder Público sobre os cidadãos, dada a prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais. Dessa desigualdade originária entre a Administração e os particulares resultam inegáveis privilégios e prerrogativas para o Poder Público, privilégios e prerrogativas que não podem ser desconhecidos nem desconsiderados pelo intérprete ou aplicador das regras e princípios desse ramo do Direito. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 39ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 50.
No mesmo sentido, escreveu Diógenes Gasparini: "Administração Pública e administrado não estão no mesmo pé de igualdade ou no mesmo nível. Dessa desigualdade ou supremacia da Administração Pública decorrem privilégios que devem ser levados em conta por ocasião de qualquer exegese. Sempre que conflitarem os interesses públicos e os particulares, estes cederão àqueles. A vontade do Estado ou o interesse público prevalecente sempre que contraposto ao querer do particular ou ao interesse público, respeitados, por certo, os direitos que o ordenamento lhe assegura".  GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 12ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 26.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 96 e ss.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Regulação Estatal e Interesses Públicos. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 74.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> PALMA, Juliana Bonacorsi. Op. cit. p. 171.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Para o autor é necessário uma redefinição da teoria do interesse público, já que, a teoria inibe a possibilidade de controle do mérito administrativo, bem como, constitui um obstáculo de negociação entre o Poder público e os particulares. Neste sentido ver MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Op. cit. p. 324-325.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Ibid. p.325.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Id.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Ibid. p.326.

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Flexibilização da supremacia e indisponibilidade do interesse público

Óbices para a consensualidade