Muito se diz que o setor do óleo e gás é marcado por uma concorrência internacional entre os países produtores: basicamente, o governo que deseja receber capital estrangeiro precisa apresentar alguma vantagem competitiva que o destaque na multidão.
Abstraído o fato de que alguns possuem vantagens naturais (quantidade provada de recursos ou localização geográfica, por exemplo), os fatores que cada governo consegue controlar geralmente passam pela ideia de conferir maior segurança jurídica à atividade econômica. A legislação aplicável, o marco regulatório, o design contratual e o funcionamento das instituições locais, por exemplo, são elementos não naturais que investidores levam em conta quando decidem onde aportar seus recursos.
A ideia não é diferente no mercado da arbitragem internacional: países que desejam se apresentar como sedes confiáveis precisam investir em instrumentos que tragam segurança jurídica. A adesão à Convenção de Nova York é, sem dúvida, a via mais fácil[1]. No outro extremo, aprimorar o funcionamento do Judiciário local talvez seja um dos fatores mais complicados. Situado no meio do caminho, a edição (e preservação) de uma boa Lei de Arbitragem parece ser uma variável muito mais alcançável. Mas será mesmo?
Com essa provocação, chega-se ao objeto desse breve artigo. Quando um país já possui uma Lei de Arbitragem razoavelmente testada e dotada de boa reputação entre os praticantes, como saber que é a hora de mudar? E como saber o que mudar?
Obviamente, não existem respostas prontas para essas perguntas. Por outro lado, a análise de projetos atuais de reforma discutidos na Inglaterra e no Brasil chama atenção pelas respostas quase opostas que ambos os países têm dado.
O fish and chips inglês
Para comemorar os 25 anos de vida do English Arbitration Act, a Law Commission inglesa submeteu à discussão pública algumas propostas para revisão da lei. Tais pontos estão compilados no documento “Review of the Arbitration Act 1996 – a consultation paper”[2].
O objetivo e a forma de trabalho da Law Commission já demonstram bem a ideia que fundamenta essa iniciativa. Quanto ao seu propósito, a revisão busca “assegurar que a lei siga representando o estado-da-arte, seja para arbitragens domésticas, seja para perpetuar Londres como a primeira escolha para arbitragens comerciais internacionais” (§1.3). Alinhado com esse objetivo, os autores do documento afirmam ter trabalhado de maneira próxima com os praticantes de arbitragem, que colaboraram com manifestações escritas e participação em reuniões (§1.33).
Essa visão mais colaborativa influenciou o tipo de solução que os autores estão sugerindo para questões extremamente relevantes. Duas delas merecem destaque.
O primeiro é sobre a confidencialidade do procedimento arbitral (chapter 2). O texto reconhece que esse atributo é considerado implícito ao sistema da arbitragem, embora a prática também comporte algumas exceções. Logo, a dúvida seria sobre a pertinência de incluir a regra geral de confidencialidade na English Arbitration Act, junto com a lista de situações em que esse regime não se aplicaria. Solução da Law Commission: como o tema é polêmico, melhor deixar para as partes acordarem ou para o Judiciário decidir de acordo com as particularidades de cada caso.
O segundo é sobre o dever de revelação dos árbitros (chapter 3). O texto explica que o English Arbitration Act não prevê expressamente esse dever, embora sua incidência seja reconhecida como decorrência do dever de imparcialidade (este, sim, previsto na lei). Com base nisso, a Law Commission propõe sua codificação como dever geral quando houver “dúvidas justificáveis” (justifiable doubts). Por outro lado, duas perguntas encaminhadas para consulta pública dizem respeito ao nível de pesquisa que os praticantes da arbitragem entendem que deva ser exigido do árbitro, para fins de observância ao dever de revelação[3].
Logo, a simplicidade, a autocontenção e a objetividade das soluções sugeridas pela Law Commission é um fruto não apenas da cultura institucional inglesa, mas também da forma colaborativa com a qual foi construída. “Simple is better”, pensavam seus autores enquanto devoravam um prato bom (mas sem surpresas) de fish and chips.
A jabuticaba brasileira
Pode-se dizer que a Lei de Arbitragem brasileira comemorou os mesmos 25 anos de idade em um estilo um pouco mais diferente – uns diriam até subversivo.
O PL 3293/2021, que propõe alterações relevantes e polêmicas para a lei brasileira, começou de trás para frente. Não há notícia de prévia consulta ou engajamento junto aos praticantes do setor. Pelo contrário, houve até apresentação de pedido parlamentar, em meados de 2022, para que a iniciativa legislativa fosse conduzida em regime de urgência. Após forte reação do setor[4], o projeto teve seu andamento um pouco desacelerado e foi deferida a realização de audiência pública, que deve ser realizada em breve[5].
Não é o objetivo tratar da íntegra do PL. Porém, uma boa comparação pode ser feita com as duas questões que tratamos acima.
Primeiro, o PL 3293/21 também provoca uma importante discussão sobre a transparência do sistema como um todo, mas passa do ponto com as exigências. Por exemplo, a proposta obriga às instituições arbitrais que divulguem dados sobre os procedimentos por elas conduzido e publiquem as sentenças, ainda que tarjadas as informações mais sensíveis[6]. Mesmo sendo iniciativas que algumas instituições nacionais e internacionais já tinham adotado voluntariamente, chama atenção o grau de intervenção estatal em um setor que, apesar de envolver questões de interesse público, não deixa de ser uma forma privada de resolução de conflitos.
Segundo, o PL parte da correta premissa de que o dever de revelação é um elemento essencial para a neutralidade do árbitro e, consequentemente, para a legitimidade do sistema como um todo. Contudo, mais uma vez se perde na solução, ao propor que o parâmetro legal já existente (“dúvida justificada”, que equivale ao critério utilizado pela Lei Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Comercial Internacional[7] e à inclusão proposta pelo English Arbitration Act) seja ampliado para que a revelação alcance qualquer “dúvida mínima”[8].
Em suma, o PL 3293/21 acerta em alguns diagnósticos, mas a sua origem verticalizada, sem prévia colaboração do setor, pode ajudar a explicar o motivo pelo qual as inovações ali propostas se afastam por completo da prática internacional. Da visão de túnel do legislador, brotaram verdadeiras jabuticabas brasileiras.
Conclusão
Apesar de tentarem solucionar problemas semelhantes, as duas reformas surgiram de contextos totalmente diferentes. Enquanto a revisão inglesa foi construída “por dentro” e tenta inserir mudanças já testadas na prática nacional, o PL 3293/2021 parece ser uma intervenção estatal ansiosa por inovar, mas sem pretensão de agradar ninguém – nem mesmo os usuários da arbitragem. Nesse contexto, não faria mal ao legislador brasileiro que desacelerasse um pouco e apreciasse a beleza que só pratos simples e ordinários possuem.
[1] A Convenção, que está vigente desde 1959 e foi ratificada por cerca de 170 países, uniformiza os critérios para reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras. Para demonstrar o sucesso dessa Convenção, basta ver que hoje é muito mais fácil obter o enforcement de uma sentença arbitral que de uma sentença judicial estrangeira.
[2] O documento pode ser consultado no site https://www.lawcom.gov.uk/project/review-of-the-arbitration-act-1996/.
[3] §§3.55 e 3.56. A primeira pergunta é se a lei deve especificar o nível de diligência exigido do árbitro; já a segunda diz respeito ao critério a ser eventualmente incluído na lei – isto é, se bastaria o “conhecimento atual do árbitro” ou se a lei poderia demandar a realização de “diligências razoáveis”.
[4] Vide, por todos, a Nota Técnica elaborada pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem-CBAr e encaminhada à relatora do PL (disponível em https://cbar.org.br/site/wp-content/uploads/2021/12/2021-10-05-nota-tecnica-pl3293.pdf).
[5] O trâmite do PL pode ser consultado em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2300144.
[6] Cf. arts. 5º-A e 5º-B.
[7] A minuta de lei elaborada pelo órgão da ONU tem por objetivo uniformizar os critérios e procedimentos que serão estabelecidos pelos países em suas respectivas leis de arbitragem. O dever de revelação é tratado no artigo 12(1) (acesso à versão em inglês, disponível em https://uncitral.un.org/sites/uncitral.un.org/files/media-documents/uncitral/en/06-54671_ebook.pdf).
[8] Cf. art. 14, §1º.