Andreu Wilson

Daniel Becker

Paulo Samico

O americano Ronald Dworkin<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> entendia que a ética está intimamente relacionada com a moral (no conceito de "vida boa<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>"). De forma simples, <a href="https://fadisp.com.br/revista/ojs/index.php/pensamentojuridico/article/download/152/190" target="_blank" rel="noopener noreferrer">a ética orientaria a forma sob a qual nós vivemos e os padrões da moral determinam como devemos tratar os outros</a>. O filósofo e jurista dedicou mais de quarenta anos<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> de vida profissional ativa, tendo desenvolvido uma teoria sobre como viver bem, como tratar o outro e como ter uma vida boa. Portanto, foi consenso entre os autores que não iríamos esgotar o conceito de ética e moralidade em poucas linhas de um artigo.
Uma série de cataclismos políticos nos últimos anos transformou ética num ponto crucial para a sociedade brasileira. Diferentemente do acadêmico Dworkin, os debates sobre ética e moralidade aqui começaram de forma contundente nas mesas de bar, nos elevadores e nos almoços de família. A pauta se iniciava no combate à corrupção e entrava em institutos jurídicos como o foro por prerrogativa de função (o popular “foro privilegiado”), a delação premiada (“quem dedura quem?”) e nos vazamentos de conversas privadas em grampos não autorizados (a intercepção telefônica) . O povo começou a conhecer seus ministros dos tribunais superiores e os impactos dos escândalos nas instituições e na economia. O diálogo sobre o que é legal e moral viralizou.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O recrudescimento da pandemia trouxe novos desafios relativos ao campo ético, havendo críticas à resposta ao desafio sanitário tanto por parte do governo federal quanto de estados e municípios, com profundas controvérsias sobre a prioridade a ser dada a uma estratégia ampla de vacinação da população e de restrição da circulação de pessoas, contraposta a uma proposta de uso de medicamentos para o denominado tratamento precoce e parcas limitações à circulação de pessoas.
Este cenário controvertido é objeto de investigação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que visa apurar as responsabilidades em torno do cronograma de compra de vacinas e de sua aplicação, bem como a correção das estratégias adotadas para evitar um cenário com centenas de milhares de brasileiros perdidos para uma doença para a qual há uma pletora de vacinas eficazes.
<blockquote class="jota-article__eye">O Brasil se dissocia do seu passado recente em que era reconhecido internacionalmente pela expertise de um programa de vacinação renomado e agora lida com a escolha trágica de, num ambiente de profunda desconfiança de parcela da população sobre a segurança e eficácia das vacinas, hierarquizar artificialmente as prioridades de vacinação em razão da insuficiência de doses para a cobertura vacinal adequada.</blockquote>
Desde o início da pandemia, a chefia do Ministério da Saúde foi ocupada por quatro ministros diferentes. Na América Latina<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, só perdemos para o Equador e Peru, ambos com cinco trocas. A desorganização provocada pela crise política levou à elaboração de um tardio Plano Nacional de Imunização (PNI). A polarização política e ideológica foi criticada por inúmeros especialistas, quebrando a tradição histórica de um país que, como dito, foi referência<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> no passado para vacinação de outras enfermidades. <a href="https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2020/12/13/especialistas-apontam-lacunas-no-plano-nacional-de-vacinacao-contra-covid-19-veja-a-repercussao.ghtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">A comunidade científica e técnica criticou as lacunas do PNI</a>. <a href="http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=458804&amp;ori=1" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Chegamos ao ponto do ministro Ricardo Lewandowski do Supremo Tribunal Federal intimar o então ministro da saúde a atualizar informações sobre o plano</a>.
A falta de vacinas somada à execução tardia do PNI foram importantes fatores para restringir os primeiros grupos de vacinados. Os chamados “critérios de priorização da vida” focavam na proteção daqueles que tinham maiores chances de desenvolver casos graves da doença, os maiores de 60 anos. Para evitar aglomerações, a prefeitura do Rio de Janeiro ainda dividiu a aplicação do imunizante em dias específicos para homens e mulheres. Após os idosos, o funil carioca utilizado diante à falta de vacinas estipulou que os próximos grupos seriam: <a href="https://prefeitura.rio/noticias/nova-fase-da-vacinacao-contra-a-covid-19-comeca-nesta-quarta-feira/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">os profissionais da saúde</a>, <a href="https://coronavirus.rio/wp-content/uploads/2021/04/Covid_ListaComorbidades_v3.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">portadores de comorbidades</a>, trabalhadores da educação e de limpeza urbana, forças policiais, pessoas com deficiência, <a href="https://prefeitura.rio/cidade/gravidas-podem-se-vacinar-contra-covid-19-em-um-dos-postos-do-municipio/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">grávidas com comorbidade</a>, motoristas de ônibus, guardas municipais, trabalhadores portuários e do transporte aéreo.
Exemplo do parágrafo anterior, a cidade do Rio de Janeiro demonstrou que, em abril, os idosos moradores de Instituições de Longa Permanência (ILP) já não faziam parte dos infectados pelo Coronavírus, <a href="https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,rio-vacina-94-1-dos-idosos-e-ve-cair-a-zero-surtos-de-covid-em-instituicoes-de-longa-permanencia,70003692230" target="_blank" rel="noopener noreferrer">reduzindo a 0% o número de idosos mortos</a> sem qualquer novo surto provocado pela doença. Apesar do Rio servir como referência, o ministro Ricardo Lewandowski, suspendeu decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que permitia alterações no calendário de vacinações em relação aos grupos prioritários. Segundo o ministro, a ordem de vacinação deve levar em consideração as evidências científicas e as análises estratégicas em saúde. Assim, o Decreto estadual 47.547/2021 que priorizava a imunização de profissionais de segurança, salvamento e forças armadas e profissionais da educação foi novamente suspenso.
Na Reclamação (RCL) 46.965, a Defensoria Pública Estadual do Rio de Janeiro argumentava que os entes federativos deveriam exercer suas discricionariedades administrativas com base em critérios técnico-científicos. O Decreto autorizava os municípios a descumprir e burlar a sequência epidemiológica e o ordenamento dos grupos prioritários presente no PNI. Embora reconheçam a situação dramática, noticiava-se o início de vacinação dos profissionais de segurança, da educação, motoristas de ônibus e profissionais de limpeza urbana “sem que se tenha sequer começado” a vacinação de pessoas com comorbidade ou deficiência, até antes de se concluir a vacinação dos idoso.
Em sua <a href="http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Rcl46965MC.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">decisão</a>, o ministro Lewandowski a despeito de reforçar a importância das forças de segurança, ressaltou que esses profissionais estão enquadrados entre os grupos prioritários depois dos integrantes dos serviços de saúde, indivíduos com maior risco de óbito ou de desenvolvimento de formas graves da doença. E deveriam esperar sua vez, já que a forma escalonada do PNI foi desenvolvida por conta de não dispormos de doses imediatas de imunizantes para todos os grupos em etapa única.
Esse contexto normativo confuso, com poucas doses de vacinas disponíveis e uma população assustada com uma doença fatal resultou na criação de uma nova figura presente nas redes sociais, o fiscal de comorbidade. Os fiscais de comorbidade são pessoas que questionam se realmente aqueles que postam suas fotos sendo vacinados possuem as doenças que poderiam agravar o coronavírus. Diante da criação desta nova “ocupação”, muitas pessoas se sentem culpadas por fazerem jus ao elixir da sobrevivência em detrimento de muitos outros que aguardam sua vez de vacinar.
As redes sociais estão descobrindo que é possível ser jovem e ter doenças cardiovasculares, anemias, diabetes e outras doenças que potencializam a Covid-19. Ao fiscal de comorbidade que usa o tribunal da internet para acusar, julgar e cancelar aqueles que têm uma condição de saúde elegível para a imunização, convidamos que faça uma reflexão. Será que realmente estaríamos nessa situação se as autoridades competentes tivessem comprado o antivírus em tempo hábil, no lugar de investir tempo e dinheiro público em medicamentos comprovadamente não eficazes?
Feito este questionamento, ainda restam algumas dúvidas sobre aqueles que tem usado a atividade profissional não exercida como pretexto para vacinação. A mídia tem divulgado com uma certa recorrência matérias sobre aqueles que tem usado o diploma e o comprovante de inscrição no órgão de classe para se vacinar. Psicólogos em cargos administrativos que não atendem a pacientes presencialmente e não se expõem à contaminação fariam jus ao direito de imunização antecipada? Se está previsto no PNI, é direito. É legalmente permitido. Mas seria moralmente questionável?
E sobre a essencialidade das profissões? Seria justo não contemplar o feirante que toda semana monta sua barraca de verduras na feira de rua ou o caixa do supermercado que diariamente ajuda o consumidor a ensacar suas compras? E o que dizer do motorista do aplicativo, o condutor do metrô e até mesmo do motorista de ônibus que teve sua categoria profissional removida do plano de vacinação carioca após a decisão do Supremo? O que seria essencial?
Enquanto discutimos sobre quem deveria se imunizar primeiro de acordo com a importância de suas atividades, todos os funcionários de instituição de ensino foram convidados a se imunizar ao lado dos professores. <a href="https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/06/17/estagiarios-de-faculdades-relatam-dificuldades-para-se-vacinar-contra-covid-no-rio-profissionais-da-educacao-terao-repescagem-no-dia-23.ghtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Embora a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do Rio de Janeiro tenha confirmado essa informação</a>, <a href="https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-05/covid-19-profissionais-de-educacao-podem-se-vacinar-no-rio-de-janeiro" target="_blank" rel="noopener noreferrer">enfatizando que se enquadram na categoria de ensino com direito à imunização absolutamente todos os funcionários que nas unidades de ensino</a> (incluindo seguranças, merendeiras e todos os demais terceirizados), o fiscal de comorbidade certamente perguntaria se faz sentido tal fato já que muitas escolas não retornaram às atividades presenciais. Novamente: o que seria essencial?
E quanto ao jovem com comorbidade e que aglomerava em festas, agindo de forma irresponsável e se aproveitando de sua doença para se vacinar agora. Qual seria a posição do fiscal? Ora, certamente recriminaria. Afinal, segundo o fiscal, somente deveria se vacinar quem se cuidou e quem não se cuidou deveria perder o direito à imunização. Essa mesma lógica certamente se aplica ao diabético que come doce e, segundo o fiscal, deve perder o direito de acesso à insulina, já que ele não merece se cuidar em razão de sua imprudência. Deveria alguém que agisse assim ser vacinado? Claro que não. Essa pessoa não é essencial.
Vivemos uma epidemia de ignorância e estamos aos nervos da pele em um barco sem comando. À deriva e aos surtos, brigamos com os poucos amigos que restam em razão dos escassos suprimentos que restaram. Mulheres e crianças em primeiro lugar? Não, isso só funciona nos filmes. Diante de um vírus fatal, não nos importamos de furar a fila e entrar no bote para salvarmos nossa própria vida. Membros do poder público que o digam: <a href="https://www.conjur.com.br/2021-mai-29/justica-estadual-julga-fura-fila-vacina-covid-manaus" target="_blank" rel="noopener noreferrer">em Manaus, autoridades são acusadas de utilizarem seus cargos para justificar o furo de fila da vacinação.</a>
Resgatando Dworkin, existiria um modo predefinido de viver bem e, consequentemente, ter uma vida boa? Enfaticamente, dizemos que não. Precisamos nos esforçar para fazer jus à responsabilidade de viver, mas sem esquecer que a reflexão e a construção do caminho cabem a cada um de nós. Somos os verdadeiros responsáveis por resgatar a verdadeira concepção de dignidade humana. Temos o dever de fazer a conformidade entre valores morais e éticos, ajudar uns aos outros em meio a este mar revolto e torcer para que os verdadeiros responsáveis por estarmos nesta situação sejam severamente punidos com o rigor da lei.
<div id="sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>

<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. 1º ed. Coimbra: Almedina, 2012, 515p.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> DWORKIN, Ronald. O que é uma vida boa? Revista Direito GV. Trad. Emilio Peluso Neder Mayer e Alonso Reis Freire. nº 14. Jul/Dez 2011, p. 609
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Aos 81 anos, Ronald Myles Dworkin faleceu em 14/02/2013, em decorrência de complicações provocadas por uma leucemia.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> https://girolatino.substack.com/p/america-latina-43-ministros-da-saude
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Segundo a Fiocruz em vídeo de 2019, o país era referência mundial em campanhas de conscientização para vacinação. Vej mais em <a href="https://portal.fiocruz.br/en/node/74687" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://portal.fiocruz.br/en/node/74687</a>. Acessado em 27/06/2021.

imunização

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Até quando falaremos sobre a ética, mas sem aplicá-la na prática?

Fiscal de comorbidade, Plano Nacional de Imunização e um novo dilema para a ética

Até quando falaremos sobre a ética, mas sem aplicá-la na prática?