Carlos Goettenauer
Mestre e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestrando na London School of Economics. Assessor da Diretoria Jurídica do Banco do Brasil.
Na metade da década passada, o termo fintech ganhou popularidade e entrou na pauta de discussão tanto dos agentes de mercado quanto dos reguladores ao redor do mundo[1]. A expressão, formada pela contração das palavras inglesas financial e technology, é objeto, desde então, de grande polissemia.
Como qualquer conceito cuja definição é disputada entre vários atores sociais, o sentido da palavra fintech pode oscilar conforme os interesses implícitos nos discursos dos agentes. Ao passo que as novas empresas buscam associar as fintechs à noção de inovação e disrupção (por si só outro termo de sentido impreciso), instituições financeiras tradicionais e até reguladores buscam, por vezes, ampliar o escopo da palavra para alcançar qualquer inovação tecnológica realizada nas atividades financeiras. Diante dessa amplitude de significados, deve-se questionar se há lugar para uma definição jurídica para o termo.
Em geral, reduzir polissemias é uma necessidade dentro do direito. A segurança jurídica e a previsibilidade do sistema normativo dependem do estabelecimento de significados prévios e consensuais para as expressões. Portanto, ao menos em tese, uma definição jurídica de fintech viria atender a uma demanda quase natural na tentativa de trabalhar juridicamente no conceito.
No entanto, na tarefa de propor essa definição, duas perguntas emergem.
A primeira seria a própria relevância de uma definição jurídica, passados já mais de cinco anos desde que o termo fintech ganhou o mundo. Em mercado que testemunha mudanças aceleradas nos modelos de negócios, buscar uma definição estática da expressão pode parecer um exercício fútil.
Por outro lado, em 2020, a regulação do sistema financeiro será significativamente modificada pela implementação do sistema de Open Banking regulatório, que abrirá o mercado bancário para o compartilhamento de dados e serviços, e a criação do PIX, um sistema de pagamento instantâneo.
Nesse cenário de transformação, a presença de uma definição jurídica estável de fintechs poderia contribuir para a formulação de propostas regulatórias capazes de enquadrar modelos de negócios financeiros mais recentes.
O reconhecimento da conveniência de uma definição jurídica de fintech nos leva, todavia, a uma segunda pergunta. Seria essa definição sequer possível? Não rara é a afirmação de que as normas jurídicas sempre caminham atrás das mudanças sociais. Sem querer adentrar, ao menos por ora, na própria discussão sobre a validade dessa proposição, a ideia é que talvez as fintechs, exatamente por proporem inovações ao mercado, sempre estejam para além de uma definição jurídica.
Diante dessa dificuldade conceitual, não se pode dizer que nunca se tentou definir juridicamente o termo fintech. No contexto brasileiro, o próprio Banco Central já fez seus esforços e descreveu no seu site fintechs como “empresas que introduzem inovações nos mercados financeiros por uso intenso de tecnologia, com potencial para criar novos modelos de negócios”[2].
Embora a definição não tenha sentido jurídico, deve-se observar que o regulador brasileiro reconhece as fintechs como empresas que atuam em várias áreas do sistema financeiro. Além disso, ele coloca as instituições de crédito criadas pela Resolução nº 4.656/2018 como as únicas espécies de fintechs alcançadas pela regulação.
É correto indicar que o termo fintech pode ser utilizado para se referir a empresas inovadoras que introduzem mudanças no sistema financeiro a partir de novas tecnologias. Todavia, essa não é a única abordagem possível.
Diferentemente do Banco Central brasileiro, que identifica fintech como “empresas” inovadoras, o Parlamento Europeu publicou relatório no qual dispõe que a expressão serve para definir “uma atividade financeira viabilizada ou fornecida através de novas tecnologias”[3].
Mais do que isso, a autoridade legislativa europeia reconhece que qualquer empresa pode ser um operador de fintechs. Nesse entendimento, mesmo as mais tradicionais instituições financeiras poderiam ser identificadas como fintechs, à medida que apresentem novas tecnologias com repercussões no setor financeiro.
Ademais, a onda de inovação tecnológica atravessa transversalmente várias atividades da indústria financeira. O próprio Parlamento Europeu indica que as fintechs podem atuar em financiamentos, investimentos, operações financeiras, administração de risco de crédito, pagamentos, infraestrutura, proteção de dados e canais de contato com o consumidor. Essa diluição de atividades torna ainda mais complexa a concretização de uma eventual definição jurídica sólida e unificante.
A partir dessas múltiplas abordagens, é possível identificar o entrave conceitual em torno das fintechs. Superá-lo depende da identificação de uma convergência de sentido. Para tanto, é necessário, antes, recuperar como funciona a própria definição jurídica de atividade financeira.
A Lei 4.595/64 consolida, no Brasil, a definição de atividades financeiras a partir de duas perspectivas. A primeira, de cunho funcional, descrita no artigo 17 da citada lei, identifica como financeiras aquelas atividades desenvolvidas por agentes que cumprem atividades de coleta, intermediação e aplicação de recursos financeiros. Em seguida, já no artigo 18, há a definição institucional, que reconhece como financeiras as atividades desenvolvidas por instituições classificadas como pertencentes ao sistema financeiro.
Dessa forma, sobre o prisma jurídico, a moldura normativa brasileira adotou um critério híbrido, que reconhece a natureza financeira das instituições que atuam no sistema financeiro e, concomitantemente, utiliza o desempenho de funções financeiras como uma característica para inclusão compulsória do agente no alcance da regulação setorial.
Nesse esquema normativo, uma possível proposta para definir as fintechs, sob o prisma jurídico, seria reconhecer essas atividades como responsáveis por uma espécie de disrupção regulatória, que surgiria quando um agente passasse a desenvolver atividades definidas, sob o aspecto funcional, como financeiras, mas permanecesse afastado do sistema financeiro, sob o aspecto institucional. Existiria, nessa hipótese, uma dissonância entre o arcabouço institucional e os modelos de negócio em utilização no mercado.
Nessa proposta de definição, os novos modelos de negócio apresentados pelas fintechs seriam aqueles relacionados, de alguma forma, a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros, mas ainda não recebidos de forma institucional pela autoridade reguladora.
Reconhecer essa dissonância entre uma definição funcional e uma definição institucional não significa afirmar que a realidade social ultrapassou o direito, mas sim que ainda não houve a absorção das novas atividades apresentadas pelas instituições responsáveis por regular juridicamente o mercado.
Apresentar o problema da introdução de novas tecnologias sob essa perspectiva implica em reconhecer que as fintechs são relevantes conforme levem à reconfiguração do sistema financeiro, para que as novas atividades, funcionalmente financeiras, sejam incluídas dentro do arranjo institucional.
Essas adaptações do arranjo institucional do sistema financeiro em razão da introdução de novas tecnologias acontecem desde 2013, quando foi criada a figura das instituições de pagamento pela Lei 12.865/2013. E, certamente, elas não cessarão enquanto não houver consonância entre as definições jurídicas funcionais e institucionais. Se um dia houver.
Essa proposta de definição de fintechs, portanto, vale-se do direito para reconhecer a potência transformadora que possuem as inovações introduzidas no sistema financeiro. Por outro lado, não pode ser ela considerada, até pela sua natureza continuamente transitória, como um conceito jurídico capaz de pacificar o sentido do termo. Ao contrário, nesse caso, o direito deve reconhecer que a polissemia e a incerteza podem até ser oportunas.
[1] O termo fintech, todavia, surgiu no início dos anos de 1990, como relatam Paul Langley e Andrew Leyshon.The Platform Political Economy of FinTech: Reintermediation, Consolidation and Capitalisation. New Political Economy, p. 1-13, 2020. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13563467.2020.1766432>. Acesso em: 20 de agosto de 2020.
[2] BANCO CENTRAL DO BRASIL. Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/fintechs>. Acesso em: 20 de agosto de 2020.
[3] PARLAMENTO EUROPEU. Fintech: Influência da tecnologia no futuro do setor financeiro. Parlamento Europeu. Bruxelas. 2016. Disponível em: <https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/A-8-2017-0176_PT.html?redirect>. Acesso em: 20 de agosto de 2020.