Eduardo Mendonça

Ao analisar a constitucionalidade das doações de empresas a partidos políticos e candidatos, sob a relatoria do ministro Luiz Fux, o Supremo Tribunal Federal realizou um dos julgamentos mais importantes de sua história1. Sem haver participado do julgamento, o ministro Luiz Edson Fachin produziu uma de suas melhores sínteses: o STF contribuiu, com argumentos jurídicos de qualidade, para o debate público sobre um dos temas mais relevantes da estruturação concreta de qualquer Estado Democrático de Direito. Tal contribuição é mais importante do que a decisão pela invalidade do financiamento empresarial, que certamente não colocará um ponto final na discussão sobre o assunto no Brasil. E nem deveria.
Nos Estados Unidos, a decisão proferida pela Suprema Corte no recente caso Citizens United, derrubando certas restrições legislativas à participação de empresas nas campanhas, gerou uma intensa onda de reações públicas, majoritariamente críticas à posição do Tribunal2. Na colocação feliz dos professores Laurence Tribe e Joshua Matz, "foi como se as pessoas tivessem ficado genuinamente chocadas pela descoberta súbita de que interesses monetizados, incluindo os das empresas, influenciam poderosamente a política americana“3. A sociedade brasileira precisa, desesperadamente, de um fenômeno semelhante.
Por isso mesmo, a pior coisa que se pode fazer com o precedente histórico do STF é tentar degradar um tema central do constitucionalismo mundial – e um drama existencial do Estado brasileiro – em uma disputa político-partidária. O ministro Dias Toffoli enfatizou a importância da matéria com propriedade: o que se discute é o modelo de financiamento da democracia, nada menos. Não é crível que grandes corporações patrocinem eleições milionárias por altruísmo. É preciso, portanto, refletir sobre quais são os seus potenciais interesses legítimos e ilegítimos, de modo a preservar o primeiro grupo e exercer fiscalização sobre o segundo.
E nem sequer é necessário enveredar por maiores elucubrações teóricas: o sistema que se encontrava posto engendrou os escândalos investigados no mensalão e na operação lava-jato. Como destacou o ministro Marco Aurélio, não faz muito sentido tratar esse modelo como natural ou supor que a sua manutenção seja um mecanismo eficaz e, muito menos, o único mecanismo possível para coibir a corrupção em geral e o caixa-dois em particular. Ao contrário, é no mínimo plausível supor que reduzir o afluxo de dinheiro formalmente lícito tende a tornar mais perceptível a utilização de dinheiro sujo, além de aumentar os estímulos para a fiscalização recíproca dos partidos.
O julgamento do STF ofereceu uma plataforma privilegiada para dar visibilidade a essas disfunções, aos seus reflexos sobre a Constituição e a possíveis soluções. A resposta específica dada pelo Tribunal pode não ter sido a melhor do ponto de vista teórico – pessoalmente, não acho que seja –, mas o grande erro consistia em esperar que a resposta definitiva e a redenção das mazelas nacionais nessa matéria viessem da Corte. Quem se proponha a elogiar ou criticar a decisão com o olhar apenas sobre o resultado estará saltando uma etapa importante, que remete à seguinte pergunta: qual é o papel de um tribunal constitucional em uma democracia? Seria o de dizer o que é melhor para todos nós, como sociedade? Ou, mais forte ainda, o de nos dizer qual seria a única forma correta, inteligente e decente de organizar as instituições políticas e a vida em comum?
Com todo o respeito, penso que não. Os ministros do STF não são eleitos. As pessoas não os escolheram porque compartilham suas visões acerca do que seja o melhor para a sociedade. Eles não são, portanto, porta-vozes legítimos nem da esquerda e nem da direita, nem do governo e nem da oposição. Não é essa, simplesmente, a resposta que deles se espera. Podem falar o quanto queiram – e, podem, inclusive, falar coisas com as quais concordamos –, mas a autoridade peculiar à sua função não costuma aderir ao discurso político proferido no palco errado.
O papel da jurisdição constitucional, construído e cultivado nas principais democracias contemporâneas, é o de interpretar a Constituição e dela extrair as balizas da ação política. Tais balizas poderão ser mais estreitas – por exemplo, quando esteja em causa potencial violação a direitos fundamentais, sobretudo de minorias estigmatizadas – ou mais amplas, como nas discussões acerca da regulação de setores econômicos. Em qualquer caso, contudo, deve-se resistir à tentação de supor que a atividade política seria uma mera implementação de pautas constitucionais pré-definidas, passíveis de serem reveladas pelos detentores do conhecimento jurídico. Nem tudo que é bom decorre necessariamente da Constituição, nem tudo que é ruim pode ser considerado com ela incompatível.
É certo que a interpretação constitucional não é uma tarefa politicamente neutra, menos ainda quando se tenha uma Constituição rica em normas de conteúdo aberto. Por isso mesmo, a atividade deve ser desenvolvida em diálogo com os demais Poderes e com a sociedade, abrindo espaço para soluções construídas pela atuação coordenada de diferentes instâncias e, até mesmo, para a permanente possibilidade de revisão das decisões produzidas em cada esfera4.
Sempre foram essas as premissas teóricas em que baseei a minha própria reflexão sobre o financiamento de campanhas políticas e que me levaram a concluir, em estudo de 20115, que a Constituição não veda abstratamente as doações por empresas6. Sem prejuízo, naturalmente, de que se pudesse e devesse analisar a constitucionalidade da legislação existente, geradora de um círculo vicioso em que o principal fator de competitividade eleitoral passa a ser a capacidade de obter patrocionadores, que tendem a reclamar acessos privilegiados, e assim por diante. Isso para não falar nos casos de corrupção chapada.
Certamente é possível defender que o banimento absoluto das doações empresariais seria a melhor forma de minimizar esses riscos e organizar a disputa política, devendo-se bucar formas alternativas de financiamento que procurem maximizar a igualdade de chances sem desaguar em dirigismo estatal na alocação dos recursos. Mas isso não significa que seja esse o único sistema legítimo. A tentativa de equacionar os interesses e variáveis em jogo tem ocupado a generalidade dos países do mundo, gerando todo tipo de modelos imagináveis. Desde o financiamento exclusivamente público imposto por lei – vigente, por exemplo, na França e no Canadá – até a guinada jurisprudencial dos Estados Unidos, que limitou drasticamente o espaço de manobra do legislador para impor limites à participação empresarial.
Tanta variação institucional já constitui um argumento relevante a favor da visão de que o princípio democrático não seria incompatível, em tese, com a possibilidade de doação por empresas. Com todas as homenagens aos brilhantes votos proferidos no STF em sentido contrário, mantenho minha convicção nesse sentido. Ao vedar o abuso do poder econômico, o constituinte parece ter reconhecido a inevitabilidade do papel que ele desempenha na política. E aqui não se trata de supor que o ato de doar ou empregar dinheiro nas campanhas seja, em si mesmo, uma forma de exercício da liberdade de expressão ou dos direitos políticos. Cuida-se, isso sim, de uma condição material indispensável para estabelecer, em uma sociedade hipercomplexa, uma comunicação efetiva entre candidatos e eleitores7.
Mais do que inevitável – e esse ponto foi bem destacado no voto do ministro Celso de Mello – não constam da Constituição normas que proíbam as empresas de apoiarem correntes políticas alinhadas com seus interesses legítimos. Embora suas vontades e preferências resultem da atuação coordenada de seus gestores, pessoas jurídicas são parte da comunidade política: pagam tributos e são afetadas pela legislação, congregam pessoas e recursos para diferentes fins, definem a oferta de produtos e serviços disponíveis no mercado, manifestam posições institucionais sobre os mais diversos temas. Quando falam, amplificam e simbolizam ideias que, de outra forma, poderiam ficar dispersas. Em certos casos emblemáticos, ajudam a definir a cultura do seu tempo. Mesmo que disso não decorra um direito fundamental a doar para campanhas, parece igualmente excessivo supor que tal possibilidade, ainda quando admitida pelo legislador, seja necessariamente inconstitucional.
Esse conjunto de ideias não conduz ao extremo oposto de imaginar que as doações empresariais, como as doações em geral, devam ser insuscetíveis de regramento legislativo ou que qualquer regramento seja compatível com a Constituição. Esse é o ponto. A disciplina legal não apenas deve existir, mas representará, necessariamente, um conjunto de escolhas e avaliações políticas complexas: qual o peso que se quer dar aos grupos de interesse organizados? Qual o nível de espetacularização que se considera aceitável nas campanhas? E qual o nível indispensável para que elas tenham uma chance de alcançar as pessoas menos engajadas politicamente? Ou para que partidos menores tenham uma chance de disseminar suas propostas e conquistar adesões? Quais são as regras de formalização e transparência que realmente funcionam, em lugar de servirem como meros rituais que apenas reduzem os ônus argumentativos dos órgãos de controle?
O reconhecimento dessa complexidade técnica e valorativa, bem como da ilegitimidade do STF para dar a palavra final na matéria, está na raiz do voto proferido pelo ministro Teori Zavascki. Com base em uma argumentação focada na alocação de capacidades institucionais, S. Exa. concluiu pela impossibilidade de declarar a legislação inconstitucional, sem prejuízo de apontar algumas de suas falhas e limitações. Linha semelhante já havia sido inaugurada no voto do ministro Luís Roberto Barroso, com a diferença de que este último avançou para declarar a lei – essa lei – inconstitucional. Fez a ressalva expressa, porém, de que o legislador teria a prerrogativa de reintroduzir o financiamento empresarial, desde que acompanhado de critérios capazes de superar o estado de inconstitucionalidade causado pelo regime até então vigente. Nenhuma barreira intransponível, portanto.
Com efeito, o que havia de inconstitucional e até incoerente na legislação derrubada era a previsão de limites quase simbólicos para as doações empresariais, manifestamente inadequados à luz dos seus objetivos declarados. Pessoas jurídicas podiam doar até 2% do seu faturamento bruto apurado no ano anterior, muito mais do que as grandes empresas estariam dispostas a ceder. Podiam doar para todos os candidatos, o que equivale a comprar influência e acessos no atacado. Podiam doar para os futuros governantes com os quais celebrariam seus principais negócios, o que contribuía para a percepção difusa de que nenhuma licitação no Brasil é realmente confiável. Esse sistema – e não o conceito de doação por empresas – é que era inequivocamente incompatível com a Constituição.
Colocar em evidência essas implicações do inevitável enlace entre eleições e dinheiro8, assim como a necessidade de controles eficazes, pode ter sido muito mais importante do que a decisão concreta pela invalidade do financiamento empresarial. Concordando ou não com o entendimento adotado pelo STF, é difícil sustentar que o processo democrático fique pior quando a opinião pública passa a demandar maior acesso aos seus bastidores. Decisões judiciais são passíveis de revisão sob certas condições, mas a indução, ampliação e sofisticação do debate podem ser um legado permanente. O requisito para tanto é que a opinião pública se aproprie da perplexidade manifestada pelos ministros e passe a acompanhar mais de perto o financiamento eleitoral, cobrando menor contaminação e maior transparência.
O momento de se fazer isso é agora, já que o tema do financiamento eleitoral nem sequer tirou férias da agenda legislativa brasileira: antes mesmo de o julgamento terminar, no curso do intervalo produzido pelo pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, o Congresso Nacional aprovou projeto de lei que visa a reintroduzir a possibilidade de doações empresariais, sob novo regime9. A matéria encontra-se pendente de sanção ou veto. Em paralelo, a Câmara dos Deputados aprovou proposta de emenda com teor semelhante, pretendendo constitucionalizar o direito das empresas de efetuarem doações10. A proposta aguarda apreciação no Senado. Essa segunda medida, em particular, poderá confrontar o STF com a pergunta, teoricamente mais complexa, acerca da possibilidade ou não de se considerar cláusula pétrea a vedação de doações por empresas.
Coerente com as premissas teóricas que enunciei, não me parece que seja o caso11. Por preocupante que seja a iniciativa da emenda em si mesma e a postura com a qual tem sido conduzida, os limites materiais ao poder constituinte derivado representam a última camada de restrição à deliberação política e, como tal, exigem redobrada cautela na sua interpretação. Não devem ser inflados para impedir opções majoritárias que não sejam inequivocamente inconstitucionais, ainda quando pareçam de má inspiração aos olhos do intérprete. A Constituição não pode ser transformada em antídoto para a política ruim.
De qualquer forma, mesmo que a emenda venha e fique, o STF não terá falhado e nem perdido. O julgamento terá ajudado a empoderar a sociedade, fornecendo-lhe novos e relevantes argumentos para questionar as razões de tamanho empenho em preservar o financiamento empresarial a qualquer custo, nos moldes que sempre teve. Cabe aos parlamentares que pretendam perseguir esse objetivo, ladeira acima e com tanta urgência, responder às objeções que foram levantadas, em maior ou menor extensão, por todos os ministros do Supremo Tribunal Federal. Não deveria ser pouco, em um ambiente em que se queira levar a sério as limitações institucionais. E onde esse ambiente não exista, não serão onze magistrados que servirão de barreira eficaz contra a junção entre uma ampla e obstinada maioria parlamentar, o dinheiro grande e uma população indiferente.
No momento, a palavra está com os senhores senadores da República e deputados Federais. A sociedade é toda ouvidos.
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Notas
[1] STF, ADI 4650, Rel. Min. Luiz Fux.
2 Citizens United v. Federal Election Commission, 558 <a href="https://en.wikipedia.org/wiki/United_States_Reports">U.S.</a> <a href="https://supreme.justia.com/cases/federal/us/558/310/">310</a> (2010). Para comentários analíticos sobre a decisão, v. Mark Tushnet, In the balance – Law and Politics on the Roberts Court, 2013 e Laurence Tribe e Joshua Matz, Uncertain Justice – The Roberts Court and the Constitution, 2014, p. 91. Para uma comparação objetiva entre o precedente americano e a discussão posta perante o STF, v. Rafael Wowk, Discussão sobre financiamento eleitoral no STF difere da Citizen United nos EUA, CONJUR, publicação em 17.09.2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-17/rafael-wowk-discussao-stf-difere-citizen-united-eua.
3 Laurence Tribe e Joshua Matz, Uncertain Justice – The Roberts Court and the Constitution, 2014, p. 94.
4 Sobre a teoria dos diálogos institucionais, com fartas referências adicionais, v. Rodrigo Brandão, Supremacia judicial versus diálogos constitucionais – A quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição, 2012.
5 Parecer apresentado à Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, do Conselho Federal da OAB, da qual fazia parte como membro-consultor. O parecer foi aprovado de forma unânime pela Comissão.
6 Em sentido contrário, com argumentos jurídicos sólidos e admirável inspiração republicana, v. Carlos Ayres Britto, Empresa que financia campanha eleitoral comete abuso de poder econômico, CONJUR, publicação em 31.05.2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mai-31/ayres-britto-empresa-financia-campanha-comete-abuso-poder-economico
7 Mark Tushnet, In the balance – Law and Politics on the Roberts Court, 2013, p. 250-1.
8 Laurence Tribe e Joshua Matz, Uncertain Justice – The Roberts Court and the Constitution, 2014, p. 91.
9 Projeto de Lei n° 5.735/2013.
10 Proposta de Emenda à Constituição n° 182/2007.
11 Para uma excelente reflexão específica sobre o tema, v. Carlos Eduardo Frazão, A PEC do financiamento empresarial de campanhas eleitorais no divã: a legitimidade constitucional à luz da teoria dos diálogos institucionais, Revista Brasileira de Direito Eleitoral, setembro de 2015.

Plenário do Congresso

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Financiamento de campanhas: o dia seguinte

Decisão do STF é o ponto final?