Mariana Saragoça

Julia Barker

Dentre os esforços trazidos pelo Novo Marco do Saneamento (Lei 14.026/2020) para garantir a universalização dos serviços, estão as inovações relativas às modalidades de prestação regionalizada. De forma geral, a Lei estabelece que os serviços podem ser prestados de forma direta pelo titular (por meio de autarquias ou empesas municipais/intermunicipais) ou por meio da delegação dos serviços em suas formas de prestação regionalizada (região metropolitana,unidade regional de saneamento básico e bloco de referência, conforme art. 3º. VI, a, b e c<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>).
O debate acerca da titularidade dos serviços de saneamento, assentado após a ADI nº 1.842/RJ<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, voltou à mesa recentemente. Não obstante o Novo Marco dispor que a titularidade dos serviços é exercida pelos municípios no caso de interesse local e pelo Estado, em conjunto com os municípios, quando houver interesse comum (i.e. regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões), não foram expressamente detalhadas e exauridas todas as associações de titularidade dos serviços, em especial no que tange às unidades regionais e blocos regionais.
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É com fulcro nas supostas lacunas do Novo Marco, que parte das CESBs vêm procurando alternativas para afastar o dever de licitar, de forma diametralmente oposta ao que dispôs a Lei quando estabeleceu expressamente que a prestação dos serviços de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular dos serviços requer a celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação.
Nos parece, portanto, que a defesa da tese de que a titularidade compartilhada garantiria à empresa estadual o direito de prestar os serviços sem processo competitivos e afasta do que pretende o Novo Marco.
Ainda, os modelos em estudo que exigem uma ginástica societária para burlar as diretrizes estabelecidas também não merecem prosperar. Seja por meio da venda de um determinado percentual (muitas vezes, ínfimo e, por si só, insuficiente para garantir direitos de voto e veto em matérias relevantes) de ações das CESBs aos municípios integrantes de unidades regionais, seja a criação de empresas municipais/intermunicipais(nas quais a cadeia societária inclua as CESBs)para garantir a gestão dos serviços, fato é que a vedação aos contratos de programa objetivou assegurar modelos competitivos para a escolha dos operadores, fomentando investimentos privados, estimulando a livre concorrência e a sustentabilidade econômica dos serviços.
<blockquote class="jota-article__eye">Resta claro que a singularidade do setor de saneamento básico – em especial após a promulgação do Novo Marco – está em seu arranjo pluri ou interfederativo e na necessidade de harmonização dos interesses dos titulares e agentes envolvidos.</blockquote>
Apesar de ser facultativa a adesão às estruturas de prestação regionalizada, quando houver interesse local, os estímulos foram criados justamente para incentivar a associação voluntária dos municípios às formas de prestação regionalizada, modelo que requer envidar esforços de governança e fortalecer as bases do federalismo cooperativo.
Ainda que estejamos tratando de conceitos jurídicos indeterminados (e.g. interesses local, intermunicipal, comum etc.), deve-se buscar sua interpretação a partir da viabilidade econômico-financeira, das externalidades positivas, dentro outros critérios fundamentais para a persecução do objetivo final: a universalização dos serviços de saneamento e esgotamento sanitário.
O diagnóstico do setor é dramático em termos de evolução dos indicadores de cobertura e escassez de investimentos públicos nos últimos anos. Conforme estudo recente<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, entre 2015 e 2019houve regressão no índice de atendimento de água em áreas urbanas, que atingia 93,08% em 2015 e caiu para 92,95% em 2019, bem como tímida melhora  no  índice  de  esgoto.
O estudo apresenta, também, que apesar de estarem presentes em apenas 7% dos municípios, as concessões privadas de saneamento já alcançam 33% do total investido pelas companhias do setor (em 2019, do investimento total de R$ 14,8 bilhões, foram aplicados R$ 4,8 bilhões pelas operadoras privadas). É preciso dar vez aolegítimo interesse público e buscar as desejadas externalidades positivas alçadas pelo Novo Marco, finalizando um ciclo de ineficiência na execução dos serviços.
Para além da grande possibilidade de judicialização dos modelos alternativos estudados por algumas CESBs, os questionamentos de caráter econômico tambémdevem ser levados em consideração. De que maneira os gestores públicos, ao tomarem decisões para garantir a manutenção da prestação direta e/ou evitar processos licitatórios, irão comprovar a capacidade econômico-financeira das companhias?
Cabe destacar que arigorosa metodologia estabelecida pelo Decreto nº 10.710/2021 é restrita aos prestadores com contratos em vigor, uma vez que novos contratos deverão ser celebrados mediante prévia licitação (momento no qual será comprovada a capacidade econômico-financeira dos players). Desse modo, não é possível anteverde que forma ocorreria o exame de viabilidade das companhias estaduais/intermunicipais/municipais e como seria comprovada a capacidade de investimento desses operadores (e.g. índices referenciais mínimos, estudos de viabilidade, indicadores financeiros etc.).
Resta claro que o Novo Marco do Saneamento objetivou ampliar a competência dos Estados na formulação de políticas públicas do setor, delineando um papel de protagonismo nos empenhos da universalização do saneamento básico, mas isso não significou a transferência da titularidade do serviço ao Estado, de forma exclusiva.
É, portanto, essencial que os Estados, os municípios e os diversos atores envolvidos nas discussões ponderem as diversas modelagens possíveis, sem que haja uma leitura descolada da finalidade do texto da Lei para, a qualquer custo, permitir decisões lesivas aos usuários ou no intuito de mascarar a obrigação de licitar. O preço a pagar pela manutenção do status quo vigente pode ser ainda mais caro.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “VI - prestação regionalizada: modalidade de prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território abranja mais de um Município, podendo ser estruturada em: a) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião: unidade instituída pelos Estados mediante lei complementar, de acordo com o § 3º do art. 25 da Constituição Federal, composta de agrupamento de Municípios limítrofes e instituída nos termos da Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole);  b) unidade regional de saneamento básico: unidade instituída pelos Estados mediante lei ordinária, constituída pelo agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos Municípios menos favorecidos; c) bloco de referência: agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes, estabelecido pela União nos termos do § 3º do art. 52 desta Lei e formalmente criado por meio de gestão associada voluntária dos titulares.”
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A ADI estabeleceu o entendimento de que a adesão dos municípios à estrutura de governança regionalizada deve ser compulsória, bem como fixou a titularidade como sendo da região, região metropolitana, aglomeração urbana e microrregião, no caso de interesse comum (i.e. Estado e municípios limítrofes).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Panorama da Participação Privada no Saneamento – 2021 (ABCON/SINDCON)&lt;<a href="https://www.abconsindcon.com.br/panoramas/">https://www.abconsindcon.com.br/panoramas/</a>&gt;.

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JOTA

É retrocesso tentativa de utilizar supostas lacunas do marco para afastar o dever de licitar

Federalismo e titularidade: freios para avanços do Novo Marco do Saneamento?

Tentativa de utilizar supostas lacunas da Lei nº 10.026 como malabarismo interpretativo para afastar o dever de licitar é retrocesso