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direito concorrencial

Faz sentido adotar regras específicas para mercados digitais?

Com avanços de experiências híbridas, modelos de negócios aplicados ao digital devem invadir mercado físico

Juan Ferres
29/03/2022|05:10
escolhas, codigo civil
Crédito Pixabay

Não há dúvidas de que a economia digital revolucionou os hábitos das pessoas e alterou a forma de consumir das sociedades modernas. Em média, globalmente, um usuário fica mais de quatro horas e meia diárias na frente de seu celular (sem contar o uso do desktop/notebook); no Brasil, esse número passa de cinco horas (2021). Nesse contexto, pareceria atualmente pré-histórico viver em um mundo sem Google, WhatsApp, Spotify, Uber, Facebook, Telegram, Netflix, Airbnb, Apple Store, Android, PayPal, Xbox, TikTok, AWS e várias outras plataformas que fazem parte do dia a dia de pessoas e empresas.

Esse simples aspecto mostra, ao mesmo tempo, a importância dessas plataformas para os hábitos atuais dos indivíduos e a sensibilidade social que alterações nesses mercados – inclusive em razão de aspectos concorrenciais – podem vir a ocasionar. Hoje, é muito provável que se gerem menos transtornos no Brasil no caso de indisponibilidade temporária de uma determinada operadora de telefonia – já que há usualmente outras opções para conexão à internet, dentro ou fora de casa – do que os criados por uma falha de continuidade no WhatsApp, por exemplo.

Essa relevância tem se traduzido em preocupações regulatórias e concorrenciais crescentes, algumas muito óbvias, outras bem pouco justificáveis. De repente, os Estados – com ênfase à Europa, de cultura estatal mais intervencionista – se viram sem dentes para atuar face a atividades super-relevantes (e de impacto crescente), conduzidas por empresas enormes, cujas decisões se baseiam largamente em um laissez faire empresarial típico de segmentos muito inovadores e de alto risco para seus investidores.

Mais que isso, perceberam que várias atividades super-reguladas, como comunicação, telefonia e pagamentos, ou não tão reguladas, como comércio, publicidade, restaurantes e hotelaria, estavam sofrendo competição direta de novos formatos de negócios vindos do mundo digital, sem qualquer arcabouço regulatório associado e, mais que isso, aparentemente sem a necessidade desse arcabouço institucional para que funcionassem de modo adequado.

Se fosse possível sintetizar as principais características dessas plataformas, chegaríamos a três grandes ativos: atenção dos consumidores; múltiplos lados para permitir a monetização dessa atenção; e dados como principal combustível a dar fluidez a essa operação. Esse tripé pode ser construído em escalas moderadas (dada externalidades de rede, não são modelos que possam funcionar de modo muito desconcentrado) ou em escalas monumentais – como ocorre com as big techs. E quando isto alcança bilhões de consumidores, ganha uma relevância única não apenas como negócio, mas como infraestrutura digital para outros negócios (para inovação) e para os próprios usuários.

A preocupação dos reguladores se observa em várias áreas, como diretos de uso (do consumidor), privacidade de dados, propriedade dos ativos (propriedade dos dados, de direitos de imagem, de copyright, etc) e outros. E apenas segue o padrão de novos mercados de tamanha relevância, como ocorreu historicamente nos setores de energia, de comunicações, bancário e outros.

No âmbito concorrencial, a escala monumental alcançada levou a uma preocupação sistêmica, de que algumas poucas empresas de fato dominem não um mercado ou grupo de mercados, mas o acesso a inovações e de novas empresas ao universo digital. Não por acaso, a legislação europeia (com a Alemanha como precursora) adotou a figura do “gatekeeper”, ao passo que o relatório da Fundação Furman (2019), no lado ocidental do Atlântico, propõe uma figura similar, de empresas que teriam “ability to exercise market power over a gateway or bottleneck in a digital market (over other digital firms)”. Na verdade, à parte os termos novos da moda, se estão definindo empresas que possuem características de essential facility no funcionamento dos mercados digitais.

Olhando-se para uma síntese da literatura sobre mercados digitais – cujo volume produzido nos últimos cinco anos é simplesmente impressionante – podemos citar uma série de frentes que estão em forte debate acadêmico e governamental no âmbito concorrencial:

  • critérios adequados para delimitações de mercado relevante;
  • controles de estruturas em contextos de espaços de inovação e aspectos crescentes de poder de conglomerado (e widespread leverage), incluindo discussões de killer acquisitions;
  • definição adequada de poder de mercado em plataformas de múltiplos lados;
  • a identificação de práticas que podem ser consideradas abuso de posição dominante/condutas anticompetitivas nesses mercados (com exemplos emergindo de tying, discrimination/self-preferences, imposição de cláusulas abusivas, MFN’s clauses, estratégias de lock in, leverage, margin squeeze, exclusionary practices/dificuldades de acesso e refuse to deal, para citar casos concorrenciais recentes);
  • a identificação de condutas colusivas a partir de características intrínsecas desses mercados (como colusão por algoritmos, disseminação de informação sensível, etc).

De fundo, podemos agrupar essa literatura concorrencial em dois grandes grupos:

  1. uma tentativa de “encaixar” as dinâmicas identificadas nos mercados digitais no arcabouço antitruste tradicional – com ênfase a maior importância das práticas de leverage (inúmeros exemplos) e de layers of attention (vide Google Shopping) na dinâmica competitiva das plataformas;
  2. um frenesi acadêmico e de reguladores por encontrar novas condutas “para chamar de sua”.

Os casos efetivamente aplicados até hoje, usualmente, não sugerem a necessidade de grandes adaptações na técnica tradicional – salvo uma boa capacidade de aplicação da regra da razão – para efetivamente segregar condutas anticompetitivas de condutas favoráveis à concorrência.

Mas uma série de aspectos importantes tem sido levantada na análise concorrencial. Longe de ser exaustivo, podemos mencionar a “falácia” do preço zero nessa indústria e a necessidade de “precificar” ativos importantes para o processo de monetização; a percepção de não neutralidade das plataformas, tenham elas integrações verticais ou não; o papel mais relevante de barreiras estratégicas à entrada nesses mercados; a crescente preocupação com acesso de novos players ao mercado; a possibilidade de segmentar o mercado de dados para análise concorrencial; e o incentivo à inovação vindo de fluxos de capitais de risco versus a dificuldade de competição de modelos tradicionais de negócios.

Apenas para exemplificar, ao monetizar ativos indiretos, como atenção e/ou dados, mercados digitais desafiam o conceito legalmente adotado no Brasil de bem-estar do consumidor (vis a vis bem-estar social). E a explosão no número de negócios digitais que não possuem perspectivas de retorno põe em xeque as legislações sobre predação.

Quando se olha em perspectiva, no entanto, vemos dois aspectos fundamentais.

Primeiro, que esse rompante regulatório não é inédito. É natural que, à medida em que os mercados vão ganhando relevância, surjam pressões por maior regulação – entendida aqui como mudanças nos direitos e deveres iniciais dos agentes, com expropriação de valor dos incumbentes. Trata-se de um processo político de socialização dos ganhos dessas indústrias. A redefinição da propriedade do dado acumulado, alterada pelas leis de proteção de dados aplicadas em todo o mundo, é um exemplo desse processo. E deve seguir, sempre sob o risco de limitar justamente o interesse e o capital de risco fluindo para essas atividades.

O exemplo do setor bancário, que evidentemente sofre hoje de over regulation no mundo todo, é um bom paradigma. Constituído como plataforma, com múltiplas interações e “verticalizações”, o setor foi alvo de tamanha regulação que sua capacidade de inovar e de ser eficiente foi sendo minada, tanto pela acomodação dos players protegidos por barreiras regulatórias enormes, como pela dificuldade de fazer algo diferente sob um arcabouço regulatório excessivo.

Segundo, o que estamos vivenciando atualmente é muito mais uma revolução nos modelos de negócios do que algo circunscrito ao mundo digital. E tudo indica que em breve não teremos mais essa dicotomia entre mundo físico e mundo digital. Tecnologias como o open finance (e seus padrões únicos de intercâmbio de dados entre empresas), pagamentos instantâneos (PIX - BR, CODI - México, WhatsApp Pay, etc), documentos e assinaturas digitais (CNH virtual, assinatura eletrônica), a disseminação da tecnologia de blockchain (e sua capacidade de descentralização de infraestruturas de dados) e o início da tecnologia 5G (e um novo padrão de velocidade de conexão) devem pavimentar o caminho para um mundo em que essa distinção entre mercados digitais e mercados físicos deixará de fazer sentido. E isso ocorre porque elas permitem digitalizar/desmaterializar aspectos das transações que hoje são manuais/físicos, como comunicação entre empresas, pagamentos e confirmações de identidade.

A coleta de dados não se dará necessariamente por uma interação direta com seu smartphone, mas sim por experiências híbridas, que passam tanto por dispositivos digitais como por dispositivos eletrônicos incorporados a produtos e locais (IOT). Logo, os mesmos modelos de negócios que hoje aplicam-se ao universo digital invadirão o mercado físico. E estamos falando de anos e não décadas para que esses processos comecem a ser vistos no dia a dia das pessoas.

Nesse contexto, a provocação que faço neste artigo é se faz sentido criar categorias segregadas para tratar da economia digital. Ou o que se está buscando é uma adaptação do antitruste aos novos modelos de negócios que surgiram com essa revolução e que serão seguramente a maior parte da economia nas próximas décadas. A construção de categorias especificas para plataformas digitais não caminha em consonância com essa visão de futuro. E pode criar mais problemas do que ajudar em um futuro próximo.logo-jota