Rafael Fernandes Maciel

Quem milita há mais tempo com o direito digital está acostumado a discussões relacionadas à competência territorial e às implementações técnicas de ordens judiciais no ambiente da web. O mercado autoral foi um dos primeiros a se insurgir contra os novos mecanismos de consumo de conteúdo audiovisual e que, após longas e tensas discussões, renderam-se às novas tecnologias adotando novos modelos de negócio, como o streaming.
Não foi o único setor, claro. No entanto, esse foi um dos mais evidentes, dada a sua força de atuação no âmbito judicial e legislativo. A partir daí, advieram decisões, paradigmas, propostas e leis, sendo algumas com vieses extremamente autoritários, que se justificariam — segundo seus defensores, na maioria, poderosos do audiovisual — pela dificuldade na defesa de seus direitos autorais, dado o caráter supranacional da web.
De fato, a internet sempre proporcionou tais entraves, que, se por um lado representam um encosto para cumprimento das leis existentes em determinado país — o infrator pode ofertar o serviço a partir um outro Estado-Nação, o qual nem sempre possui tratado ou vontade de cooperação —, por outro, é justamente essa capilaridade que proporcionou maior acesso à informação e, por conseguinte, favoreceu a liberdade de expressão. Sem falar nas incríveis facilidades a partir de serviços disruptivos à realidade negocial daquela época.
Do direito autoral às fake news. Agora, como diria o capitão Nascimento, "o inimigo é outro”. Para enfrentar as ameaças das notícias falsas, o poder público depara-se com dificuldades operacionais ainda maiores, haja vista que a produção do conteúdo ilegal está descentralizada e disseminada por inúmeros outros canais de comunicação. Não por acaso que, para fazer frente a essa ameaça ao sistema democrático, os poderes instituídos têm tentado buscar apoio no “back-end” para que grandes provedores ajustem seus algoritmos para imporem medidas de bloqueio ou desincentivo à desinformação.
Mesmo com esse suporte outrora inusitado (a raposa destinada a cuidar do galinheiro), obviamente que o Estado ainda precisa contar com as tradicionais medidas de coerção para cumprimento de suas legislações, como sanções civis e criminais para “motivar” o provedor a colaborar. Problema é quando o provedor não se mostra solícito, seja por imputar-se paladino da liberdade de expressão e dos seus usuários — argumento comum nas defesas judiciais de Facebook e Google —, seja por estar em território estrangeiro sem tratado de cooperação.
O Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>) enfrentou recentemente esse imbróglio ao ver suas ordens judiciais não sendo cumpridas pelo Telegram, como também o Tribunal Superior Eleitoral (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tse">TSE</a>), que tentou canal de comunicação para criar uma força-tarefa de combate à desinformação nas <a href="https://www.jota.info/eleicoes">eleições 2022</a> e sequer foi atendido. O Telegram somente cumpriu ordem judicial do ministro Alexandre de Moraes no âmbito do inquérito das fake news após <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/alexandre-de-moraes-determina-o-bloqueio-do-telegram-no-brasil-18032022">ameaça de bloqueio em solo nacional</a>, mas mantém-se inerte em relação às súplicas republicanas do TSE. Bloqueio este que o próprio STF já havia dito ser inconstitucional no “leading case” do WhatsApp, em 2016<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. O Telegram nos tirou a oportunidade de ver esse debate em plenário. Pelo menos por enquanto.
Com a guerra na Ucrânia, a Rússia passou a controlar ainda mais seus meios de comunicação ao derrubar e proibir acesso a sites contrários à guerra ou ao governo Putin, na medida em que as sanções econômicas ocidentais ficavam ainda mais severas, como a exclusão de algumas instituições financeiras russas da rede Swift, que operacionaliza as transferências financeiras entre países<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Movidos pelo mesmo conflito armado, outros chegaram a propor à Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN) o bloqueio de domínios da internet russos<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, o que, verdade seja dita, prejudicaria mais o cidadão comum do que o governo belicoso.
Tais medidas sancionatórias em ambiente interconectado, seja rede Swift ou internet, não são de fácil execução e sempre guardam um revés igual ou mais prejudicial ao carrasco. Uma exclusão total das empresas russas do Swift prejudicará o recebimento por organizações que possuem negócios e valores a receber de empresas russas e, por sua vez, um bloqueio de domínios russos poderia impedir a liberdade de expressão de cidadãos russos que usassem domínios “.ru” em seus emails, a título de ilustração.
Soma-se a tal conta agora a ainda mais descentralizada Web 3.0, que, valendo-se da rede blockchain, pode tornar tais medidas totalmente ineficazes, seja por permitir transações via moedas digitais fora do sistema financeiro tradicional ou mesmo por permitir resolução de domínios fora do DNS<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Na Web 3.0 é impossível impedir transações via blockchain ou bloquear sites, já que não há intermediários que poderão receber e muito menos cumprir as ordens.
Nem a busca por acordos de cooperação internacionais terá grande valia na web descentralizada. Sem um intermediário, na Web 3.0 será ainda mais difícil controlar conteúdo ou transações, o que, se por um lado é ótimo para impedir atuação de Estados ditatoriais, dando mais força ao usuário, por outro trará gigantescos desafios jurídicos.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Em maio de 2016, uma decisão da Vara Criminal de Lagarto (SE) determinou aos provedores de conexão o bloqueio do WhatsApp por 72 horas, em sanção pelo descumprimento reiterado de ordens judiciais para fornecimento de conteúdo de conversas que subsidiariam uma investigação criminal. A empresa justificou-se no fato de que as mensagens eram criptografadas. Entretanto, é fato que antes desse caso, os atuantes na área já se deparavam como uma extrema dificuldade em fazer valer as mais diversas decisões judiciais, mesmo em casos envolvendo direitos de menores ou pornografia – casos que, a princípio, não deveriam gerar celeuma.  E, pasmem, mesmo antes da alegada criptografia de ponta a ponta. Até a conclusão deste texto não havia decisão final do STF, mas este tende – pelo menos até agora – a trilhar pela interpretação conforme a constituição do inciso III, do art. 12 da Lei 12.965/14, dizendo ser inconstitucional o bloqueio de aplicativo de mensageria.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.istoedinheiro.com.br/ue-exclui-7-bancos-2/">https://www.istoedinheiro.com.br/ue-exclui-7-bancos-2/</a>. Acessado em 14.03.2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.cnbc.com/2022/03/01/ukraine-asked-icann-to-revoke-russian-domains-shut-dns-servers.html">https://www.cnbc.com/2022/03/01/ukraine-asked-icann-to-revoke-russian-domains-shut-dns-servers.html</a>. Acessado em 14.03.2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="https://blog.nameshield.com/blog/2020/04/08/dns-on-blockchain-the-next-evolution-of-domain-names/">https://blog.nameshield.com/blog/2020/04/08/dns-on-blockchain-the-next-evolution-of-domain-names/</a>. Acessado em 14.03.2022.

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O infindável debate sobre a dificuldade de cumprir ordens judiciais na web e os riscos às liberdades individuais

Fake news, TSE, Telegram, guerra na Ucrânia e Web 3.0

Telegram, fake news e Web 3.0: O debate sobre a dificuldade de cumprir ordens judiciais na web e os riscos às liberdades individuais