Ao longo dos últimos anos foram propostos muitos Projetos de Lei para tratar de fake news. O PL 2630/2020 (PL das Fake News), que era a principal aposta sobre o tema, não foi aprovado a tempo das eleições de 2022, e, com isso, chegamos ao período eleitoral sem um marco legislativo abrangente voltado para regulá-lo. Mas isso não significa que não existam normas que possam ser mobilizadas para combater a desinformação. Na realidade, esse fenômeno compreende uma série de práticas sociais abordadas pela legislação vigente – mesmo que essa legislação não tenha sido criada tendo fake news em mente.
Desde o início do ganho de relevância da desinformação como fenômeno social, em torno do ano de 2017, os tribunais brasileiros vêm analisando demandas relacionadas à divulgação de fake news tendo como base esses direitos. Os contextos são os mais diversos: variam desde situações corriqueiras, como a divulgação de notícias falsas por pessoas comuns no Facebook ou em grupos de WhatsApp, até ilícitos de grande impacto e projeção, como associações criminosas especializadas na criação e disseminação de desinformação visando a atingir pessoas públicas.
De que forma os tribunais vêm se comportando? Que tipo de impacto essa nova realidade de desinformação tem tido sobre a aplicação do direito vigente? Buscamos enfrentar essas perguntas em parte do livro “Estratégias contra Fake News – Dados empíricos do combate travado por legisladores e juízes”, que acaba de ser lançado pela Editora FGV Direito Rio. Foram analisadas 1.021 decisões de diversos Tribunais que tratam das fake news, desde o Supremo Tribunal Federal até os 27 Tribunais de Justiça, passando pelos Tribunais Regionais Eleitorais, de 2017 até 2022.
Identificamos na base decisões judiciais que ilustravam duas formas de atuação distintas. A primeira, que denominamos atuação reiterativa, é marcada pelo fato de que características das fake news, enquanto elementos do conjunto de fatos a serem analisados nas decisões, não alteraram o raciocínio jurídico ou a conclusão adotada. O objetivo, na construção dessa categoria, foi principalmente mapear as normas do direito vigente que vêm sendo mobilizadas nas demandas e utilizadas pelos magistrados no momento de decidir casos que envolvem fake news.
Uma tendência que ilustra essa categoria é a jurisprudência da Justiça Eleitoral que equipara fake news à categoria de fato sabidamente inverídico. O direito eleitoral já prevê uma série de sanções à divulgação de “fatos que se sabe inverídicos” (art. 323 do Código Eleitoral) ou “conceito, imagem ou afirmação (…) sabidamente inverídica” (art. 58 da Lei nº 9.504/1997). Ao se deparar com casos em que se alega a difusão de fake news, tal como um suposto encontro entre o ex-presidente Michel Temer e o chefe da máfia chinesa em São Paulo (TRE-SP, Representação nº 060089028, Fernandópolis/SP), a Justiça Eleitoral, em geral, aplica o direito de forma que o novo fenômeno, de fake news, é compreendido como equivalente, do ponto de vista jurídico, a aquelas categorias normativas tradicionais, com os mesmos parâmetros e consequências.
A segunda forma de atuação, que chamamos de atuação inovadora, ocorreu em casos nos quais pelo menos uma das características associadas às fake news teve impacto sobre o processo de aplicação do direito, de uma forma que não era plenamente determinada pelas normas ou parâmetros jurídicos preexistentes. Com essa categoria, buscou-se chamar atenção para as formas como as fake news, enquanto fenômeno novo a ser considerado pelos tribunais, contribuem para a indeterminação da solução baseada nas normas preexistentes, exigindo algum tipo de inovação judicial.
Um conjunto de casos que ilustra essa categoria é o que trata da possibilidade de responsabilização do indivíduo que meramente compartilha (mas não é o autor de) informação falsa na internet. Como o fenômeno da desinformação é atualmente bastante associado à comunicação nas redes sociais, que potencializam a capacidade de cada indivíduo ampliar o alcance de uma notícia falsa por meio do compartilhamento, ele fez surgir um debate sobre o tipo de ato que pode ser considerado violador, por exemplo, do direito à honra na esfera cível. O texto do art. 12 do Código Civil, que prevê o direito à indenização por perdas e danos diante de “ameaça, ou (…) lesão, a direito da personalidade”, não esclarece essa extensão de aplicação.
Diante dessa indeterminação, trazida à tona pelas fake news enquanto fatos a serem analisados pelo Judiciário, foram identificadas decisões conflitantes. Em certo caso, em um grupo de WhatsApp de moradores de um condomínio, foram compartilhados prints de mensagens que afirmavam que o síndico se beneficiava indevidamente de empresas de internet que ali atuavam. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal entendeu que o remetente da mensagem tinha o dever de checar a veracidade antes de compartilhá-la – e, como isso não havia sido feito, era devida a indenização em favor do síndico (TJDF. Recurso Inominado Cível nº 0709244-30.2020.8.07.0004, DF).
Em outro caso, analisado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a decisão foi em sentido oposto. A requerente afirmava que tinha sido acusada de diversos crimes em vídeo compartilhado nas redes sociais, além de ter sido identificada como amante de um pastor (que também era deputado federal). A ré, por sua vez, alegou que tinha apenas tomado conhecimento do vídeo e o compartilhado nas redes sociais. Para o tribunal, diante da ausência de prova de dolo da ré ao compartilhar e do conhecimento sobre a inveracidade do conteúdo, ela não poderia ser responsabilizada (TJ-SP, Apelação Cível nº 1003608-67.2020.8.26.0008, São Paulo/SP).
Esses casos chamam atenção para o fato de que a falta de avanço do Legislativo na aprovação de um marco voltado à regulação de fake news não implica ausência de atuação estatal frente ao problema. Já existem normas no nosso ordenamento que incidem sobre a prática e que vêm sendo aplicadas pelo Judiciário.
Mas a implicação da falta de tratamento legislativo específico é que novas controvérsias acerca da extensão e do limite da atuação estatal para o combate às fake news — como, por exemplo, a possibilidade de responsabilização pelo seu mero compartilhamento — serão solucionadas pelo Judiciário, não pelo Legislativo. Nesse contexto, há margem para que decisões relevantes sobre a forma e a intensidade do enfrentamento sejam tomadas diversamente do que seria a vontade política. Como afirmou o relator do PL das Fake News, o deputado Orlando Silva, “depois não adianta reclamar do ativismo judicial”[1].
[1] NUNES, Vinicius. Orlando Silva: STF não pode ser o único contra fake News. Poder 360, 2022. Disponível em https://www.poder360.com.br/congresso/orlando-silva-stf-nao-pode-ser-o-unico-contra-fake-news/. Acesso em: 31 ago. 2022.