Thobias Prado Moura

Dentro da política digital global, o conceito de fair share vem ganhando protagonismo. Endossado na Coreia do Sul e agora debatido na União Europeia, o fair share passou a ser discutido no Brasil a partir da Tomada de Subsídio 13/2023, aberta pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/Anatel">Anatel</a> em março de 2023<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Não há como negar o papel central que a internet possui dentro na sociedade atual. Metaverso, streaming, realidade ampliada, Internet das Coisas (IoT) e outras tecnologias emergentes alimentam um crescimento exponencial de tráfego de dados. Isso acabou por gerar um debate sobre quem deve arcar com os custos de manutenção e atualização da sua infraestrutura, hoje suportados majoritariamente pelas empresas de telecomunicações. Então, quem deve arcar com esses custos?
Para responder a essa pergunta, precisamos entender o funcionamento básico da internet. A internet opera por meio de um protocolo comum, o TCP/IP, e é estruturada em camadas de blocos de construção interoperáveis<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Essa organização em camadas facilita a inovação.
Além disso, ela está interconectada por meio de acordos voluntários, os quais são conduzidos por motivações tanto comerciais quanto colaborativas. Esse sistema permite que se estabeleça conexões umas com as outras, promovendo a operação de forma integrada<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
As duas formas principais de interconexão são o trânsito e o peering. Trânsito é um acordo no qual uma rede fornece total conectividade à internet para outra, enquanto peering é um acordo em que redes concordam em trocar tráfego, sem necessariamente usar as conexões de trânsito uma da outra. Esses acordos podem ser regidos por contratos comerciais e, muitas vezes, são vistos como mutuamente benéficos, não envolvendo trocas monetárias<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
De fato, nem todas as relações de peering são simétricas. Elas podem envolver obrigações assimétricas, seja se uma rede concorda em fornecer acesso aos seus clientes se determinadas condições forem cumpridas e/ou quando uma rede paga à outra pelo acesso aos seus clientes<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Essas práticas são fundamentais para o funcionamento da internet, criando um ambiente aberto e flexível que suporta inovação e troca de informações.
Nesse ponto, a discussão sobre o fair share ganha contorno. Ele pode ser conceituado como um modelo que sugere que as empresas que geram grande volume de tráfego devem contribuir de forma mais significativa para os custos de manutenção e atualização da infraestrutura da rede<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Ainda que pareça justa em um primeiro olhar, a ideia do fair share é complexa e suas implicações são profundas. Em uma sociedade cada vez mais globalizada, qualquer mudança na governança da internet tem o potencial de impactar a economia, a tecnologia, a democracia, os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Nesse contexto, as suas implicações devem ser sopesadas para garantir que seus riscos não sejam maiores do que seus “potenciais” benefícios.
Nesse contexto, a aplicação do fair share contraria os princípios que “regem” a internet, conforme estabelecido em documentos como a Princípios para a Governança e Uso da Internet no Brasil”. Este documento ressalta a importância da acessibilidade universal, da inclusão digital, da interoperatibilidade, funcionalidade, estabilidade e segurança, da abertura, da defesa dos direitos humanos e da liberdade de expressão<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
A adoção desse modelo tem o potencial de contrariar esses princípios, introduzindo barreiras à entrada, limitando a autonomia das redes e ameaçando a universalidade da internet.
Nesse sentido, a discussão não se limita apenas à custos de infraestrutura, mas também sobre a manutenção dos princípios que têm permitido à internet florescer como um instrumento de inovação, inclusão e liberdade.
Existem três preocupações principais relacionadas ao fair share. Primeiro, a política cria barreiras de entrada para novos participantes. Segundo, interfere na autonomia das redes, restringindo a flexibilidade e o caráter voluntário do modelo da internet. E, por último, ameaça a própria ideia de uma rede global e abrangente, podendo resultar em uma fragmentação da internet.
O caso da Coreia do Sul é um exemplo dos possíveis problemas de políticas de "remetente paga", paralelas à proposta do fair share. Este modelo, ao alterar a maneira como os custos de interconexão são compartilhados, criou barreiras à entrada de novos participantes, interferiu na autonomia das redes e ameaçou os fundamentos de redundância e neutralidade da rede<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Atualmente, a internet é construída para ser resiliente, com múltiplas rotas e nós que garantem que os dados possam ser roteados de forma eficiente e contínua, mesmo em face de falhas ou interrupções. A redundância, essencial para a resiliência da internet, pode ser prejudicada pela limitação das rotas alternativas de tráfego em um cenário de fragmentação<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Se as rotas alternativas de tráfego forem limitadas ou eliminadas, a capacidade da internet de se adaptar a falhas, ataques ou interrupções poderia ser gravemente comprometida. O resultado seria uma internet menos resiliente, com a potencialidade de falhas em cascata e interrupções mais significativas e duradouras para os usuários finais.
A neutralidade da rede – um princípio que sustenta que todos os dados na internet devem ser tratados igualmente – também pode ser seriamente comprometida. Isso poderia levar à diminuição na qualidade dos serviços e à priorização de alguns tipos de conteúdo em detrimento de outros<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Por fim, o fair share ameaça a própria ideia de uma rede global e abrangente, podendo resultar em uma fragmentação da internet.
O cerne da internet é sua natureza interconectada e global, permitindo que usuários de todo o mundo acessem informações e serviços independentemente de fronteiras físicas. A fragmentação, no entanto, poderia alterar essa estrutura fundamental. Se os provedores de serviços de internet começarem a limitar o acesso com base em arranjos comerciais ou em quem pode pagar pelo tráfego, acabaremos com "ilhas" de acesso à internet, onde a experiência do usuário será determinada não pelo conteúdo disponível globalmente, mas pelo que é financeiramente viável para o seu provedor de serviços de internet.
Essas implicações têm o potencial de afetar negativamente a liberdade e abertura que têm sido fundamentais para a inovação e o crescimento da internet.
Em um ambiente onde o acesso é determinado por arranjos comerciais, é fácil imaginar cenários onde certos tipos de conteúdo possam ser favorecidos em detrimento de outros. Isso poderia resultar em uma concentração de poder e controle sobre o fluxo de informações, contrariando a ideia de uma internet livre e aberta.
A fragmentação da internet também ameaça a inovação, à medida que limita a capacidade dos novos entrantes de alcançar o público global. Assim, a fragmentação da internet não é apenas um risco técnico, mas também uma ameaça aos valores do Estado democrático de Direito, à inclusão digital e à defesa dos direitos humanos.
Diante disso, é essencial que se busque como solução um projeto que pode efetivamente destruir a internet como conhecemos. As escolhas que fazemos hoje desenharão o futuro da internet e, consequentemente, o tipo de sociedade em que vivemos. Portanto, reguladores, empresas de tecnologia, provedores de serviços de internet e cidadãos devem trabalhar juntos para garantir a preservação do que torna a internet um recurso livre, aberto e acessível para todos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-abre-tomada-de-subsidios-sobre-regulamentacao-de-deveres-dos-usuarios">https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-abre-tomada-de-subsidios-sobre-regulamentacao-de-deveres-dos-usuarios</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.techtarget.com/searchnetworking/definition/TCP-IP">https://www.techtarget.com/searchnetworking/definition/TCP-IP</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.vox.com/2014/6/16/18076282/the-internet">https://www.vox.com/2014/6/16/18076282/the-internet</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="https://www.informatique-mania.com/pt/linternet/connexions-internet-peering-et-transitslug/">https://www.informatique-mania.com/pt/linternet/connexions-internet-peering-et-transitslug/</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="https://www.analysysmason.com/consulting-redirect/reports/ip-interconnection-korea-white-paper/">https://www.analysysmason.com/consulting-redirect/reports/ip-interconnection-korea-white-paper/</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="https://www.reuters.com/business/media-telecom/eus-vestager-assessing-if-tech-giants-should-share-telecoms-network-costs-2022-05-02/">https://www.reuters.com/business/media-telecom/eus-vestager-assessing-if-tech-giants-should-share-telecoms-network-costs-2022-05-02/</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> <a href="https://principios.cgi.br/sobre">https://principios.cgi.br/sobre</a>
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> <a href="https://www.internetsociety.org/wp-content/uploads/2022/05/IIB-South-Korea-Interconnection-Rules-2022.pdf">https://www.internetsociety.org/wp-content/uploads/2022/05/IIB-South-Korea-Interconnection-Rules-2022.pdf</a>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> <a href="https://pulse.internetsociety.org/resilience">https://pulse.internetsociety.org/resilience</a>
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> <a href="https://www.internetsociety.org/resources/doc/2019/net-neutrality-legislation-a-framework-for-consensus/">https://www.internetsociety.org/resources/doc/2019/net-neutrality-legislation-a-framework-for-consensus/</a>

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É preciso garantir a preservação daquilo que torna a internet um recurso livre, aberto e acessível para todos

Fair share: necessidade ou ameaça à internet?

Trabalho em conjunto é fundamental para garantir a preservação do que torna a internet um recurso livre, aberto e acessível para todos