Lei de Propriedade Industrial

A extensão do prazo de patentes e o combate à Covid-19

A infeliz interseção entre uma crise aguda e uma estrutura desequilibrada

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Crédito: Pixabay

Depois de meses de pandemia, já não há qualquer dúvida de que a Covid-19 pode ser considerada a maior crise sanitária do último século. Mesmo com todos os problemas de subnotificação, mundialmente, já existem mais de 38 milhões de casos confirmados e mais de 1 milhão de mortes registradas.

Apesar de a Covid-19 estar sendo um intenso desafio global, já é possível observar algumas diferenças importantes em como os países têm enfrentado essa crise e, consequentemente, como têm sofrido seus efeitos. Por possuírem mais recursos econômicos, um sistema de saúde mais bem estruturado ou já terem enfrentado crises sanitárias análogas, algumas nações parecem estar lidando melhor com essa trágica situação. Por outro lado, países mais empobrecidos ou com governos que negam a gravidade da doença têm enfrentado um quadro ainda mais severo.

Neste contexto, infelizmente, o Brasil tem se consolidado como um dos piores lugares para se viver durante essa crise. Por aqui, apesar da falta de testes e da notória subnotificação, já é possível contar mais de 5 milhões de casos confirmados e mais de 150 mil mortes.

Além de ser um país em desenvolvimento e ter adotado uma das piores respostas para esta pandemia, o Brasil não lidou com as barreiras impostas por patentes farmacêuticas. E, como se não fosse o suficiente, a própria legislação brasileira possui uma singularidade que nos coloca em uma situação ainda pior: a possibilidade de extensão da vigência das patentes, prevista no parágrafo único do artigo 40 da Lei da Propriedade Industrial (LPI).

De acordo com esse dispositivo, nenhuma patente de invenção terá vigência menor do que 10 anos contados desde a data de sua concessão. Na prática, isso significa dizer que, sempre que o INPI demorar mais de 10 anos para conceder uma patente, o Estado brasileiro está obrigado a ampliar o período regular de 20 anos de monopólio sobre determinada invenção. Sem qualquer tipo de limitação, para cada dia de atraso do INPI, acrescenta-se um dia de vigência à patente.

Em meio aos vários argumentos que apontam a flagrante inconstitucionalidade deste dispositivo, faz-se necessário destacar algumas das infelizes interseções entre o parágrafo único do artigo 40 e a pandemia de Covid-19, as quais colocam o Brasil em uma situação ainda mais difícil em relação a esta crise e ameaçam a concretização do direito fundamental à saúde. Elaboramos, a seguir, cinco desses pontos de interseção.

Em primeiro lugar, embora ainda existam poucas tecnologias de saúde relacionadas ao combate da Covid-19, já é possível notar que o parágrafo único do artigo 40 da LPI exerce influência sobre algumas das mais notórias. Uma dessas tecnologias é o antiviral rendesivir, da farmacêutica estadunidense Gilead Sciences, que tem sido testado contra a Covid-19 em diversos ensaios clínicos. Em agosto deste ano, o Food and Drug Administration, agência norte-americana análoga à Anvisa, autorizou em caráter emergencial o seu uso em pacientes hospitalizados com a doença.

No Brasil, 2 dos 6 pedidos de patente relacionados a este medicamento já estão em tramitação há mais de 10 anos no INPI. Isso significa dizer que, independentemente de qualquer tipo de tramitação prioritária, caso esses pedidos venham a ser deferidos e suas respectivas patentes concedidas, o tempo de duração do monopólio patentário sobre este medicamento será maior no Brasil do que no resto do mundo.

Nesse mesmo sentido, caso os outros 4 pedidos relacionados ao rendesivir também venham a ultrapassar a marca dos 10 anos de tramitação, também serão afetados pela regra do parágrafo único do artigo 40 da LPI. Longe de ser uma possibilidade remota, em julho de 2021, já é possível que um terceiro pedido também alcance este marco limite e entre na situação de extensão do monopólio.

Outro exemplo paradigmático é representado pelo caso do favipiravir. Enquanto este medicamento está em domínio público em diversos países desde 2019, graças ao parágrafo único do artigo 40 da LPI, ele teve o prazo de vigência de uma de suas patentes ampliado até 2023 no Brasil.

Além disso, assim como no caso do rendesivir, 2 dos 3 pedidos de patente diretamente relacionados ao favipiravir já se encontram em tramitação por mais de 10 anos — e o terceiro poderá atingir essa marca em novembro do ano que vem. Mais uma vez, nenhum tipo de tramitação prioritária desses processos poderia afastar a ampliação do prazo do monopólio patentário sobre este medicamento no Brasil.

O exemplo destes dois medicamentos é indicativo do problema de fundo, mais amplo e de longa data, da indeterminação gerada pelo dispositivo contestado. Apesar de, agora, dada a emergência da pandemia, estes casos se destacarem, na essência, o desequilíbrio gerado é uma ameaça perene à realização de diversos princípios e direitos.

Ao ampliar a vigência dos monopólios patentários por um tempo indeterminado, a regra prevista no parágrafo único do artigo 40 da LPI gera uma grande insegurança jurídica para a indústria nacional e retarda ainda mais a entrada de concorrentes no mercado. Consequentemente, durante o período de extensão, este dispositivo impede que o Estado e as famílias brasileiras tenham acesso a versões genéricas de importantes tecnologias de saúde que venham a ser úteis no combate à Covid-19. Justamente em um momento em que o tempo é um fator crucial para se salvar vidas, não é possível tolerar esse tipo de atraso.

Em segundo lugar, ao ampliar o período em que as grandes empresas farmacêuticas transnacionais podem cobrar preços monopolísticos, o parágrafo único do artigo 40 da LPI é um elemento responsável por enfraquecer o orçamento do Estado e das famílias brasileiras.

Para se ter uma ideia da dimensão do problema, um estudo do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) indicou que, entre os anos 2014 e 2018, caso as patentes de apenas 9 medicamentos não tivessem sido estendidas, o poder público poderia ter economizado entre R$ 1,1 bilhão e R$ 3,8 bilhões nos gastos do Sistema Único de Saúde (SUS).

Nesse mesmo sentido, a partir de uma metodologia assumidamente conservadora e de uma amostra restrita a compras centralizadas de apenas 11 medicamentos, o Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que a mera limitação do período de exclusividade aos 20 anos previstos no caput do artigo 40 da LPI seria capaz de poupar cerca de R$ 1 bilhão aos cofres públicos.

Assim, para além de representar um prejuízo acumulado historicamente, este dispositivo é, neste momento, um elemento que fragiliza a resposta nacional à pandemia.

Em terceiro lugar, a extensão do monopólio patentário e a manutenção de preços exorbitantes para tecnologias essenciais de saúde têm o potencial de gerar ainda mais danos durante a pandemia. Afinal, o Estado brasileiro tem sido obrigado a direcionar a maior parte dos seus recursos para o combate à Covid-19, desassistindo a prevenção e o tratamento de outras enfermidades, como o HIV/AIDS, a tuberculose e a malária. Neste contexto, exacerba-se ainda mais a necessidade por diversos medicamentos patenteados e acirram-se tragicamente as dificuldades de acesso.

Em quarto lugar, o risco adicional que ameaça pessoas com comorbidades e a escassez de leitos hospitalares podem potencializar a necessidade por determinados medicamentos sob monopólio. Afinal, o tratamento adequado para algumas doenças pode retirar muitos brasileiros do grupo de risco da Covid-19 e aliviar imediatamente a pressão desta pandemia sobre o SUS.

Em quinto lugar, é de fundamental importância considerar o papel histórico do parágrafo único do artigo 40 da LPI na limitação do crescimento das indústrias farmacêuticas e farmoquímicas nacionais. Isto é, ao garantir privilégios desarrazoados às empresas transnacionais, essa regra contribuiu enormemente para a consolidação da dependência externa do Estado brasileiro em relação às mais básicas tecnologias de saúde.

Como acontece em diversos outros campos, a pandemia da Covid-19 expõe e esclarece tensões históricas subjacentes ao sistema patentário. Não obstante a pandemia de Covid-19 e o sistema de patentes possam ser considerados um enorme desafio para todos os países do mundo, não restam dúvidas de que a existência do parágrafo único do artigo 40 da LPI faz com que a experiência brasileira seja ainda mais dura.

Nesse sentido, a ADI 5.529, que aponta a inequívoca inconstitucionalidade deste dispositivo e aguarda para ser julgada no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2014, ganha ainda mais relevância e se apresenta como uma chance inescapável de revertermos este erro histórico.

Com efeito, o reconhecimento da inconstitucionalidade da extensão indevida da vigência das patentes no Brasil, além de preservar a soberania da Constituição Federal e garantir o equilíbrio do ordenamento jurídico brasileiro, tem o potencial de salvar muitas vidas e de preparar o nosso país para enfrentar futuras pandemias.

 


Episódio desta semana do ‘Sem Precedentes‘, podcast sobre STF e Constituição, analisa as quase 12 horas de sabatina de Kassio Nunes. Ouça: