Marcelo Schenk Duque

O episódio que levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a ordenar que o presidente do Senado adote as providências necessárias para a instalação da CPI, voltada a apurar eventuais omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> despertou o sempre atual debate em torno dos limites das prerrogativas de cada Poder. O tema costuma ser abordado sob a perspectiva do ativismo judicial, fenômeno marcado por uma conduta proativa do Poder Judiciário, que acaba por interferir nas opções políticas dos demais Poderes, sempre afeto a polêmicas de todo tipo.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
O ativismo extremado opõe-se às doutrinas do judicial self- restraint, de origem norte-americana, e do Zurückhaltung alemã. Nesta linha, muito vem se debatendo se a decisão é correta, pois nada mais teria feito do que exigir o cumprimento ao § 3º, do art. 58 da CF ou se, ao contrário, acabou por interferir na discricionariedade política do Senado, a quem competiria, pelas mãos do seu presidente, avaliar a conveniência e oportunidade da instauração de uma CPI no atual momento de conturbação política e social, agravado pela pandemia.
Sem embargo, a controvérsia também pode ser analisada por outro ângulo, que apesar de importante para o funcionamento regular das instituições, vem sendo pouco debatido: o excesso do poder de obstrução dos presidentes das Casas Legislativas que compõem o Congresso Nacional. Há muito se percebe que o Poder Legislativo federal é marcado por uma disfuncionalidade, que se expressa no elevadíssimo grau de discricionariedade política por parte dos seus respectivos presidentes, que por meio de omissões e chicanas deliberadas conseguem sufocar, querendo, a vontade – inclusive da maioria – da representação política nacional. 
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Esse excesso de poder fica claro já nas eleições para as presidências das respectivas Casas Legislativas, disputadas com grande intensidade por parte dos interessados, que só obtêm a vitória por meio de complexas costuras políticas, que envolvem promessas e compromissos das mais variadas espécies. O fato é que, uma vez eleitos, os presidentes da Câmara e do Senado podem decidir se projetos de interesse nacional serão votados ou engavetados, se os processos de impeachment terão prosseguimento, se condutas de parlamentares serão investigadas, se comissões serão instauradas etc. Não seria exagerado falar que acabam por se confundir com o próprio Poder.
Por esse motivo, o Executivo não só acompanha essas eleições com atenção, como também faz de tudo para influir na escolha daqueles que melhor se alinham aos seus interesses. Surge, aqui, uma das características mais nocivas do chamado presidencialismo de cooptação, que é a compra de apoio político por meio de liberação de emendas parlamentares, distribuição de cargos, alocação de ministérios, dentre outros expedientes, como condição mínima de manutenção da governabilidade ou até mesmo de permanência no cargo.
A luta pela aprovação do orçamento de 2021, com a polêmica inerente ao excesso de gastos e de verbas comprometidas com emendas parlamentares, dentro da perspectiva do chamado “fura-teto”, bem demonstra essa realidade.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Em comum, são estratégias que costumam se afastar da moralidade e eficiência administrativas, além de se desviar da racionalidade que deveria orientar o emprego dos recursos públicos. Na luta por apoio, proliferam os mais ativos interesses fisiológicos, fortalecendo as bancadas que, sob a liderança de figuras políticas carimbadas, surfam a onda de um sistema que lhes garante perenidade.
A decisão do STF insere-se exatamente neste recorte. Gostemos ou não, ela contribuiu para diminuir o poder quase “imperial” do Presidente do Senado Federal, que se viu obrigado a aplicar a regra da Constituição segundo a qual, presentes os três requisitos para instauração de uma CPI (requerimento de um terço de seus membros, indicação de fato determinado a ser investigado e prazo certo para duração), ela deve ser instaurada. Na visão do STF, a instauração de uma CPI, quando presentes tais requisitos, além dos previstos no regimento interno do Senado, representaria direito das minorias parlamentares, afastando, assim, a possibilidade de omissão ou da análise de conveniência política por parte da Presidência da Casa Legislativa.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
O fato que pretendo destacar é que ainda que a decisão do STF possa, eventualmente, trazer desvantagens ao cenário político, não se mostra razoável que em uma democracia, onde recursos vultosos – até mesmo incompatíveis com a realidade econômica e social vigente – são investidos para a manutenção de um largo corpo político, a ação de uma única pessoa seja suficiente para estancar a vontade de outros representantes políticos, que, por terem sido eleitos pelo povo, gozam de igual legitimidade na chamada democracia representativa.
<blockquote class="jota-article__eye">Impõe-se perceber que uma verdadeira democracia é incompatível com o excessivo poder de obstrução política conferido às autoridades, isoladamente consideradas.</blockquote>
É importante notar que essa disfuncionalidade não atinge somente o Senado. Igual problema toca à Presidência da Câmara dos Deputados. Como é possível ignorar que existem mais de uma centena de pedidos de impeachment contra o presidente da República, outros contra ministros de Estado ou do STF e nenhum deles é objeto de deliberação, como se simplesmente não existissem? Recentemente, o STF foi acionado, em sede de mandado de injunção, para verificar a possibilidade de se impor prazo para o presidente da Câmara apreciar os requerimentos de impeachment contra o presidente da República.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Sabe-se que pleitos dessa natureza não guardam sequer razoáveis chances de êxito, pelo contrário. Entretanto, o assunto gera desdobramentos inevitáveis, que vão se acumulando.
Destaco que não se deve deixar de reconhecer uma margem – até mesmo considerável – de discricionariedade política às Casas Legislativas. O que não se pode aceitar, em uma democracia funcional e legítima, é que essa margem se converta em puro arbítrio, ao ponto de ignorar a natureza colegiada dos órgãos de representação coletiva. Da mesma forma, não se advoga que os referidos requerimentos devam ser necessariamente objeto de procedência.
O que se defende é que sejam, ao menos, analisados, de modo a que se arquivem aqueles que se configurarem manifestamente improcedentes, por serem frutos de meras quizílias políticas ou irresignações diversas e se coloquem em tramitação os que guardam plausibilidade, fundamentados em juízos consistentes de razoável procedência, de modo que sejam afetados à análise das comissões internas e, se for o caso, à manifestação soberana do Plenário.
A melhor solução seria que requerimentos dessa natureza tivessem o seu juízo de admissibilidade sujeito às mesas das respectivas Casas Legislativas. Isso retiraria o peso da responsabilidade das costas de uma única autoridade e o distribuiria a um juízo mais plural, contribuindo para a diminuição de arranjos de natureza arbitrária, valorizando a colegialidade, típica dos órgãos de representação.
O que se vivencia, na prática, é um sistema ávido a ações articuladas, que visam a ignorar o plenário das Casas Legislativas, pela técnica da obstrução. Uma verdadeira chicana, de natureza passiva, que sufoca a opinião do corpo de representantes eleitos pela estratégia política de duas autoridades, que foram ungidas à condição de Presidentes da Câmara e do Senado. Fica claro que a representação do povo e dos Estados-membros da Federação não pode sucumbir aos anseios de apenas duas pessoas, por mais importantes que sejam no quadro da representação dos Poderes que encabeçam. No mínimo, estamos a manter uma engenharia de baixíssima institucionalidade, que pouco se coaduna com o espírito democrático e republicano.
Percebe-se, assim, que quando se debate a decisão do STF que ordenou a instauração da CPI apenas sob a perspectiva de eventual ativismo judicial, acaba-se por ofuscar o quadro de deficiência institucional presente na República. Não é mirando apenas as pessoas que os problemas serão corrigidos, sob pena de se perpetuarem no consumar das regras e práticas vigentes.
Eventuais correções somente serão obtidas a contento quando mirarem as instituições, do ponto de vista de sua configuração e fortalecimento. O velho adágio de que o custo da democracia é a eterna vigilância passa, efetivamente, pela compreensão de que esse custo integra um dever de aperfeiçoamento institucional contínuo, que fala contra as práticas vigentes.
<blockquote class="jota-article__eye">É como se o Brasil não tivesse aprendido nada com séculos de experiência do constitucionalismo, que podem ser resumidos a partir de uma das máximas das revoluções liberais: o abuso de poder é combatido pela limitação do poder.</blockquote>
Contrariamente, investimos em um modelo que concentra poder nas mãos dos presidentes das Casas, tornando a sua eleição um verdadeiro balcão de negócios que, em muitos aspectos, neutraliza o caráter colegiado dos órgãos de deliberação coletiva. Na prática, a ação deliberada dos respectivos presidentes pode neutralizar o próprio funcionamento do Poder Legislativo. Quando isso ocorre em concerto com o Executivo, piores são as consequências e mais a atribuição irracional do poder arrasta a democracia para a disfuncionalidade.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=463847&amp;caixaBusca=N.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/juizo-de-valor/ativismo-judicial-esse-bicho-morde-17022017.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> https://www.jota.info/tributos-e-empresas/mercado/guedes-fura-teto-orcamento-09042021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> https://www.jota.info/stf/do-supremo/barroso-cpi-da-covid-senado-08042021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> STF, MI 7.358/DF. Rel. Min. Cármen Lúcia. Consulta processual disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6146700.

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JOTA

Ação deliberada dos respectivos presidentes pode neutralizar o próprio funcionamento do Poder Legislativo

Excesso de poder de obstrução ou prerrogativa política?

A instalação da CPI da Pandemia é a decisão correta?