Laura Diniz

Iuri Dantas

Duas habilidades foram cruciais para tirar o homo sapiens da selvageria e colocá-lo no trilho do modelo civilizado: o aperfeiçoamento da linguagem e a capacidade de criar mitos coletivos – como deuses, o conceito de dinheiro e, mais recentemente, o Estado Democrático de Direito. Assim, conversando sobre planos e ideais, grandes quantidades de pessoas passaram a cooperar de forma eficaz em torno de objetivos comuns.
A fascinante guinada da espécie humana da barbárie à civilização se deu entre 70 mil a.C. e 12 mil a.C., durante a chamada Revolução Cognitiva, segundo Yuval Noah Harari, em Sapiens – Uma breve história da humanidade. Dali para frente, sobre essas duas bases, dominamos a agricultura, a escrita e a manufatura, evoluindo até a modernização tecnológica ininterrupta de hoje, em que uma cultura suplanta a anterior em menos de uma geração. Criamos Direitos Humanos universais.
Nas últimas décadas, experimentamos uma longevidade inédita, produzimos mais comida e menos guerras do que nunca. No Brasil, foi possível acreditar que nunca houve tanta riqueza. O século atual começou com mais acertos que erros na economia, permitindo um avanço do bem estar e, a reboque, uma ilusão de que os mais pobres também começavam a ter vez. Soluço.
Rio de Janeiro. Maio. 2016.
Com palavras de satisfação, um homem compartilha na internet a foto de uma garota de dezesseis anos severamente ferida depois de ser estuprada, nas contas dela, por cerca de trinta homens.
Dois mecanismos psicológicos opostos surgem na sociedade, por default, a respeito dos personagens:
“Esses homens são monstros!”, dizem alguns de imediato. Quando um fato nos causa estímulo aversivo, tentamos distanciá-lo de nós. Monstros = seres de outra espécie = raros = pequeno grau de ameaça.
“Isso que dá usar roupa curta, ser piriguete e ficar dando mole!”, dizem outros, igualmente de imediato. Quando queremos justificar um ato impróprio, usamos a técnica da neutralização, por meio da qual tentamos inseri-lo em um contexto de normalidade e previsibilidade. Deu mole = queria ter relações sexuais = eles atenderam a vontade dela = causa e consequência.
O grande lamento existencial dessa situação é que os "monstros" são maridos, namorados, amigos, colegas de trabalho das mulheres violentadas e não párias que vivem às sombras e que surgem das trevas apenas para cometer crimes hediondos como esses.
Quanto às mulheres, bem, não precisa nem explicar que tentar responsabilizar uma mulher por sofrer uma violência é tão indigno quanto o crime em si, certo?
O Estado Democrático de Direito é uma ficção jurídica criada pelos homo sapiens para que homens e mulheres abram mão de alguns direitos em troca de outros, de modo a organizar e otimizar a vida em grandes grupos. Assim, entre outras coisas, acordamos que não podemos ferir os outros, salvo em legítima defesa, e que abrimos mão do uso individual da força para resolver conflitos em troca de proteção estatal.
O sistema previu que algumas pessoas quebrariam regras desse pacto e criou mecanismos para puni-las. Quando muitas pessoas começam a quebrar uma regra, é sinal de que há algo de errado com o sistema – a norma pode ter ficado obsoleta frente à evolução cultural ou a cultura obsoleta funciona como a bola de ferro no pé da norma. No caso, trata-se da segunda hipótese.
Uma mulher é estuprada no Brasil a cada 11 minutos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No início dessa década, houve mais de meio milhão de tentativas ou atos de estupro, segundo dados do governo federal. Os números mostram apenas uma fração da realidade, já que a maioria das vítimas não notifica os crimes às autoridades. Segundo o Ministério da Saúde, menos de um em cada quatro casos chegou às delegacias no biênio 2011/2012. A explicação passa pelo medo do estigma e pela fundada falta de confiança no sistema de Justiça. Polícia despreparada, perícia desaparelhada, provas ruins, impunidade.
Impunidade que avilta.
A criação das Delegacias da Mulher, a aprovação da Lei Maria da Penha e a disseminação de Varas Judiciais Especializadas em Violência Doméstica são louváveis iniciativas dos Três Poderes no enfrentamento desse mal. Ponto para o governo interino de Michel Temer, que reagiu ao caso com o anúncio da criação de um grupo especial na Polícia Federal para coordenar esforços contra esse tipo de crime. As vítimas precisam de atendimento específico e cuidado adequado para não potencializar as sequelas da violência e dar melhores condições às autoridades para pegar os culpados.
Isso ainda é pouco, no entanto. Basta citar que Temer registrou o ineditismo da criação da delegacia da mulher em São Paulo, nos anos 80, quando ele estava à frente da Secretaria de Segurança Pública na gestão Franco Montoro. Três décadas depois, os registros só fazem aumentar. Falham a polícia e o Ministério Público, falha o sistema de Justiça, vergonhosamente.
Mas o grande problema, sejamos claros, é o machismo. A cultura do estupro, propagandeada por celebridades e parlamentares abjetos, cultiva a terra em que grassam barbaridades como a desta semana, como a do ano passado no Piauí, como a de Liana Friedenbach em 2003, como tantos outros casos antes e depois, célebres e anônimos.
Machismo que deve ser combatido desde a piadinha cochichada, o fiu-fiu na rua, a diferença salarial nos escritórios, a pouca representatividade nas cúpulas dos Três Poderes.
Machismo que transforma crianças e adolescentes em mulheres voluptuosas em filmes, comerciais. “Era uma mulher formada”, na expressão deplorável sempre aceita socialmente. A vítima do estupro coletivo no Rio tem apenas 16 anos.
Machismo que existe em todas as camadas sociais, mas que penaliza especialmente os pobres, mais expostos ao tráfico, à violência de criminosos fardados e não fardados, os sem-Estado, enfim.
Machismo que não é exclusivo dos países “em desenvolvimento", mas que fere e mata mulheres em diversos países da Europa, que faz com que universidades americanas se voltem contra suas alunas violentadas.
No Brasil, lutemos por uma polícia mais preparada, por uma perícia mais equipada, por uma acusação mais eficaz e, com respeito ao devido processo, por mais estupradores atrás das grades pagando com décadas de suas vidas pela hediondez que cometeram. Que, no caso concreto, se puna com rigor. Mas lutemos mais contra o machismo, que acoberta os crimes com uma camada de normalidade.
Foi a necessidade de sobreviver em um ambiente inóspito, repleto de adversidades e ameaças que levou o homo sapiens a evoluir dezenas de milhares de anos atrás. O estupro coletivo no Rio cobra o mesmo de todos nós. Que cooperemos, enquanto espécie, para nos livrar dessa chaga.

Maltrato Mujer

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JOTA

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