Ana Lara Camargo de Castro

Na ascensão do movimento feminista norte-americano dos anos 60 e 70, estabeleceu-se o que hoje se conhece como feminist jurisprudence ou feminist legal theory. Em suma, parte desse movimento, que lutava pela igualdade da mulher na dinâmica das relações de poder (conceito muito simples que para mim resume, sem drama ou esforço, a beleza do feminismo), estava interessada em promover alterações legais por perceber o papel da lei (e do sistema que a maneja) na perpetuação da discriminação e da subordinação de gênero. O crime de estupro – de vulnerável ou não – foi sempre revestido de caráter profundamente discriminatório.
Desde as sociedades antigas, a mulher era percebida como propriedade do pai ou do marido, a virgindade tinha caráter de commodity e o estupro poderia acarretar indenização ao homem pela perda ou desvalorização do capital. A solução de o estuprador casar-se com sua vítima, como compensação pelo dano, persistiu no Brasil até recentemente.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Em resumo, para ser vítima crível do crime de estupro, como censurou o Justice Alan B. Handler, da Suprema Corte do Estado de New Jersey, criticando Lorde Hale, a mulher tinha de ‘ter boa fama, revelar a ofensa imediatamente, apresentar lesões e gritar por socorro’.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> A lei e a jurisprudência se desenvolveram nessas bases e estabeleceram diversos requisitos, como de ‘resistência’ (resistance requirement), ‘comunicação imediata’ (fresh complaint rule) ou ‘comunicação célere’ (reasonable time rule), ‘insuficiência apenas da palavra da vítima’ (corroboration requirement), ‘isenção do marido’ (marital exemption).
Para se provar o estupro, para além do uso da ameaça ou da força, era necessário provar que o ato foi contra a vontade da vítima. E a prova do não consentimento acabava se tornando ônus da mulher. A existência de ferimentos resultantes da penetração e da retenção forçadas era exigida.
Assim, em regra, só os estupros brutais tinham chance de resultar em condenação, já que a tática de rendição da vítima para evitar a morte, a escalada da violência utilizada para a submissão ou o agravamento das lesões corporais não era hipótese reconhecida e equivalia ao consentimento. Então, em crime de estupro a vítima está em escrutínio, não apenas para se apurar se o fato típico se configurou, mas também para se saber se ela merece a proteção estatal. E a porta pela qual se faz passar essa tal vítima ideal é, de fato, estreitíssima.
As feministas norte-americanas, preocupadas com o descrédito à palavra da vítima de estupro que a colocava no banco dos réus, avançaram não apenas na derrubada dos requisitos discriminatórios, mas também na construção do que se chama rape shield statutes vale dizer, legislações que vedam certos questionamentos em trial de delitos sexuais. Na atualidade, todos os Estados norte-americanos e a União (cujo sistema aplica-se a crimes federais e militares) possuem essa espécie de lei, seja listando as inquirições proibidas de integrar o acervo probatório dos autos, seja conferindo ao juiz ampla discricionariedade para barrar sua admissão.
No sistema federal, as Federal Rules of Evidence contêm dispositivo expresso, na Rule 412, inadmitindo a evidência em processo cível ou criminal oferecida para fazer prova de que a vítima manteve outro relacionamento sexual ou da sua predisposição sexual.
<ul class="jota-article__internal-links">
<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/estupro" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Tudo sobre o crime de estupro</a></li>
</ul>
Regra geral, as leis estaduais barram as chamadas character evidence, evidências de caráter, comportamento, propensão, passado sexual para refutar a credibilidade da vítima, sendo que alguns textos legais são mais sofisticados e excluem também a evidência quanto à maneira como a vítima estava vestida (manner of dress) para indicar reputação, provocação ou consentimento (como é o caso da legislação da Califórnia, da Flórida, de New Hampshire, New Jersey e do Oregon).
Está longe de ser o sistema perfeito, há muitas falhas, mas em muito avançou. Há também exceções estabelecidas nas próprias leis para admissão desse tipo de evidência, por exemplo, a prática de ato sexual com terceira pessoa não como character evidence, mas para negativa de autoria. Todavia, elas também estabelecem procedimentos específicos de admissibilidade, por meio de motions e hearings prévias.
No Canadá, de igual sorte, o Criminal Code (R.S.C., 1985, c. C-46), na section 276(1), estabelece o critério chamado two-myths ou twin-myths evidence, ou seja, barra a admissão de evidência em crimes sexuais a respeito de prática sexual da vítima que se destine à inferência de consentimento ou de descrédito. A lei veda a utilização do histórico sexual da vítima para servir de fundamento a dois mitos socioculturais, o de que o passado sexual ativo da mulher faz presumir que ela consentiu ou o de que a torna menos crível no seu depoimento.
As proibições de abordagem sexista em processos judiciais existem porque, no dizer do retromenciado Justice Handler, são indispensáveis para que o sistema legal assegure ‘a cada um de nós o direito de decidir quem podem tocar nossos corpos, quando e em quais circunstâncias’, porque ‘a decisão de se envolver em prática sexual com alguém é das mais privadas e íntimas decisões que uma pessoa pode tomar’.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
É interessante notar que a publicização de trechos da audiência de instrução do processo por estupro de vulnerável de Mariana Ferrer tenha ganhado ampla disseminação justamente no dia das eleições estadunidenses, tão determinantes no avanço ou retrocesso do importante arcabouço jurisprudencial em civil rights consolidado pelas Suprema Corte dos Estados Unidos, em especial a partir dos anos 60, que ainda repercute como relevante marco civilizatório mundial.
E, mais interessante ainda, é perceber que o foco central da discussão pode se perder na discussão inócua sobre ‘estupro culposo’, até porque a sentença judicial concluiu pela absolvição com fundamento em insuficiência de provas. Obviamente, não existe estupro culposo e essa discussão jurídica é perda de tempo. Que ela não faça cortina de fumaça ao que realmente interessa: o tratamento desumano conferido às vítimas de crimes sexuais.
Vítimas que continuam a ser obrigadas a oferecer resistência até o último de suas forças, se não contra o ato sexual em si, como no antigo requisito da common-law, contra o próprio sistema que deveria, ao menos, permitir-lhe espaço seguro de escuta e acolhida. Se as provas eram mesmo insuficientes, eu não o sei, não conheço os autos, mas a partir do tratamento concedido à vítima em audiência, parece-me bastante claro ter sido experiência excruciante, para mulheres sobre-humanas.
E tudo isso me lembrou fala da Branca Vianna, na minissérie Praia dos Ossos<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, que narra o então homicídio (hoje feminicídio) da Ângela Diniz, ao comentar a atuação de Evandro Lins e Silva no plenário do júri que, para além de ‘traçar o perfil edificante do acusado e puxar a ficha corrida da vítima’, ‘de falar que ela provocou a própria morte e ele merecia compreensão’, ele partiu para ‘argumento que, sinceramente, é meio sádico’, que foi o de afirmar que ela tinha ideações suicidas e, de tanto querer a própria morte, foi satisfeita nos anseios pelas mãos do companheiro.
Talvez não seja possível a tropicalização desses institutos estrangeiros, tudo precisa ser sempre analisado sob a luz pátria, mas mínimos padrões éticos de exercício da profissão sempre podem e devem ser exigidos.  E desvios devem ser sancionados, no mínimo pelas próprias instituições às quais pertencem os profissionais.
As vedações éticas ou legais de certos questionamentos em juízo destinam-se exatamente a obstar esse cenário assediador, torturante e humilhante amiúde imposto às vítimas de crimes sexuais, justamente porque, além de violar os direitos humanos da mulher na ação penal em julgamento, desencoraja o acesso à justiça por descrença total no sistema.
É preciso agir. Do contrário, seguiremos passando à sociedade a impressão de que, como operadores do Direito, somos, afinal, todos meio sádicos.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> HANDLER, Alan B. Supreme Court of New Jersey. State in the Interest of M.T.S. 609 A.2d 1266, 1992.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> HANDLER, Alan B. Ibidem.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> VIANNA, Branca; THOMSON-DEVEAUX, Flora; SCARPIN, Paula. Praia dos ossos. Disponível em: &lt;<a href="https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/creditos">https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/creditos</a>&gt;. Acesso em 04 de novembro de 2020.

Banner_Economía_Feminista

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

O crime de estupro – de vulnerável ou não – foi sempre revestido de caráter profundamente discriminatório

&#8216;Argumento que, sinceramente, é meio sádico&#8217;

'Argumento que, sinceramente, é meio sádico'

O crime de estupro – de vulnerável ou não – foi sempre revestido de caráter profundamente discriminatório. 'Argumento que, sinceramente, é meio sádico'.