Lara Chaves Silva Ribeiro
Graduanda em direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e estagiária no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ)

As peculiares semelhanças entre as condições laborais precárias dos Estados Unidos pré-New Deal e a realidade dos trabalhadores afetados pela chamada uberização do trabalho nos dias de hoje.
Imagine que você vive numa frenética economia. Ações de empresas sobem com euforia, novas tecnologias são apresentadas cotidianamente e chances de novos trabalhos são fartos. E de repente tudo acaba. A inflação sobe, empregos faltam; a miséria sobe e a perspectiva de algo melhor a vir… falta. Então, para sua sobrevivência, você aceita fornecer sua força de trabalho em troca de uma ínfima quantia, sob condições irregulares — até desumanas — durante uma extenuante jornada.
Este cenário fictício seria uma ilustração da Grande Depressão, a maior crise financeira dos Estados Unidos, em 1929, ou da realidade de inúmeros trabalhadores inseridos na economia vigente, no cenário pós-pandêmico? Ambas as opções podem ser comparadas diante dos requisitos: embora a economia mundial não estivesse em euforia, o fatídico ano de 2020 trouxe grave acentuação dos desafios que já se apresentavam em relação ao mundo do trabalho, particularmente em relação aos inseridos na chamada uberização — ou amazonificação — do trabalho.
Os termos acima, em linhas gerais, seriam tendências no mundo laboral, especialmente dentro de grandes corporações, que sujeitam os trabalhadores a tecnologias de vigilância, seja ao marcar checkpoints para mapear a localização destes ou, em ocupações em que se está na empresa, a instalação de inteligência artificial para monitoração, além da contratação através de companhias terceirizadas, tornando o “empregado” um “prestador de serviços”.
Estes dois grandes fatores fazem retornar discussões antes já relativamente consolidadas no mundo do trabalho brasileiro, como o estabelecimento da obrigatoriedade de salário compatível com o custo de vida, além do fornecimento de direitos básicos aos trabalhadores, posto que as estratégias de contratação para diminuição de custos tornou certos postos de trabalho verdadeiros riscos à subsistência e à dignidade humana.
Voltando aos EUA dos anos 20, é importante apontar que, mesmo antes do início da crise financeira, já eram discutidas questões relacionadas à dignidade no trabalho, especialmente em relação à compulsoriedade do salário mínimo. Um dos casos notórios que marcaram a história constitucional do país foi o chamado Adkins v. Children’s Hospital[1], em que um grupo de mulheres moveu ação judicial contra o Hospital Infantil distrital de Columbia, sob argumento de que este não cumpria a regulamentação federal de 1918, que estabelecia compensação mínima para trabalhadoras. A decisão chegou à Suprema Corte (SCOTUS), que definiu, por 5 votos a 3, que o estabelecimento de um salário mínimo seria inconstitucional, já que haveria violação da notável Quinta Emenda, em relação à liberdade de adesão contratual.
Sendo assim, a liberdade dos empregadores para elaboração de cláusulas laborais, adicionada à grande taxa de desemprego, tornou a vida de muitos cidadãos um verdadeiro caos: nos pólos industriais, ou os empregos devolviam remunerações pífias aos funcionários, ou estes sequer conseguiam uma ocupação e pereciam. A situação relatada pelo escritor Edmund Wilson (The American Jitters: A Year of the Slump) era desesperadora. Ele relatou surtos de tuberculose e pessoas invadindo lixões à procura de restos de comida. Comparativamente, o cenário vigente não é muito mais otimista: devido às massivas taxas de despedidos, não são poucas as famílias revirando caminhões de lixo em busca de restos ou filas de pessoas comprando ossos com resquícios de carne no Brasil.
Esta abundância de cenários de indigência levaram o então novo presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, a elaborar o National Recovery Act em 1933. Era o plano legislativo que fazia parte do ambicioso New Deal. O NRA propôs regulamentações federais para impor limites às jornadas laborais e estabelecer salários mínimos para diversos setores, além de favorecer a sindicalização para que trabalhadores pudessem reivindicar seus direitos e negociar condições em posição de maior equidade com as indústrias. O desdobramento foi que a adesão sindical para trabalhadores não-rurais foi de menos de 10%, em 1930, para quase 35%, entre os anos 1940 e 1955[2]. Roosevelt chegou a dizer, no dia da sanção do plano no Capitólio, que “mais história foi feita hoje do que em qualquer outro dia de nossa vida nacional”.
A valorização do NRA levou grande parte das empresas a adotarem a Blue Eagle em suas propagandas. O símbolo, representativo da Administração de Recuperação Nacional, tornou-se emblemático e os cidadãos, especialmente contemplados pelas mudanças trazidas pelo New Deal, empenharam-se em favorecer os negócios que participavam do levantamento da economia, em detrimento dos concorrentes que não estampavam a logotipo nas vitrines.
O cenário político de valorização laboral levou a Corte dos EUA a uma histórica mudança jurisprudencial a partir do caso West Coast Hotel Co. v. Parrish[3]. A SCOTUS decidiu que, ao reconhecer que a liberdade contratual favorecia mais empregadores do que empregados e ao considerar a preservação dos direitos constitucionais através de remunerações dignas, era justo estipular um piso de compensação por hora trabalhada.
Em contraste com hoje, a quantidade de pessoas que recorrem aos trabalhos de apps é maior do que nunca e, logo, também sobe o número de casos tramitando nas Supremas Cortes. A do Reino Unido decidiu, em fevereiro de 2021, que a terceirização dos serviços proposta pela Uber não seria mais aceita e os associados agora deveriam ser empregados e, portanto, esta teria o dever de prover salário mínimo e férias remuneradas. A tendência é que prestadores de serviços destas companhias, como a gigante Amazon, também comecem a se unir para lutar por condições dignas para o exercício do trabalho, como já se vê nas cortes dos EUA[4].
A previdência também foi grande foco para o plano de Roosevelt e é uma problemática discutida atualmente para trabalhadores de conglomerados. Roosevelt decidiu se empenhar em remover o estigma que pairava sobre a seguridade social — antes para os miseráveis — e a transformou em uma instituição que permitiu uma rede de conforto a longo prazo. Isto mudou o curso do governo americano e o alinhou ao hall de países investidos no bem-estar social, além de fornecer maior estabilidade financeira aos trabalhadores.
Atualmente, as grandes corporações também apresentam problemas em relação à negligência à previdência. Considerando que grande parte destes ainda são considerados contratantes independentes, não há razão legal para que haja benefícios como planos de saúde e previdência, como justifica a Uber. Já a Amazon oferece “investimentos a longo prazo” em setores da própria companhia para que associados retirem lucros na “aposentadoria”.
Caso o curso das ações em relação aos trabalhadores atuais continue a demonstrar semelhanças com a valorização sindical e direitos adquiridos pós-New Deal, urge recuperar os benefícios que estes teriam com a adesão sindical, como fez Roosevelt.
Apresentadas tantas similaridades entre a crise financeira nos EUA do século XX, e os efeitos da atual no Brasil e mundo, é possível sintetizar a ideia geral diante do argumento da SCOTUS, no caso W. C. Hotel Co. v. Parrish: o laissez-faire é um conceito plausível idealmente, mas, se analisado na realidade, em tempos de crises, a liberdade contratual sem dispositivos constitucionais regulatórios acentua mais as desigualdades entre partes do que auxilia a economia.
É dever do Estado proteger os cidadãos e as condições de trabalho e, por isso, o modus operandi de parte das corporações é dolorosa mancha nos direitos conquistados no Brasil e no mundo. A “nova Depressão” pode ser considerada real para milhões de trabalhadores em condições precárias e o auxílio para sua remediação pode ser encontrado no exame crítico da história.
[1] Adkins v. Children's Hosp., 261 U.S. 525 (1923)
[2] Os dados foram retirados do livro “Capitalism in America : A History”, publicado em 2018 por Alan Greenspan (ex-presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos) e Adrian Wooldridge (jornalista e editor político do jornal inglês The Economist).
[3] West Coast Hotel Co. v. Parrish, 300 U.S. 379 (1937): a camareira, Elsie Parrish, argumentou que não estava sendo paga de forma compatível com seus serviços pelo West Coast Hotel.
[4] A exemplo, ver decisão da Corte Superior da Pennsylvania, que tornou obrigatório o pagamento dos trabalhadores da Amazon não só pelas horas trabalhadas, mas também pelo tempo que estes precisavam esperar para a troca de turnos e procedimentos de segurança.