João Quinelato

<blockquote class="jota-article__quote">“Durante os tempos de engano universal, dizer a verdade torna-se um ato revolucionário”. (George Orwell, 1984).<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a></blockquote>
É com certa frequência que se atribui exclusivamente à internet o ônus de disseminação de notícias falsas – ou fake news. Repentina e milagrosamente parece ter-se encontrado a causa de um grave sintoma que supostamente decorreria da expansão de novas tecnologias: a internet é (ou ao menos seria) a mãe da mentira online. Trata-se, entretanto, de um silogismo perigoso que parte de uma premissa equivocada e reducionista: a internet seria a causa da divulgação de notícias falsas.
Não é bem assim. Da notícia falsa de que as Bruxas de Salém teriam sido queimadas na fogueira e não enforcadas – pelos protestantes e calvinistas –, passando pelos rumores de que Franklin Roosevelt influenciou os planos de bombardeio do Japão em Pearl Harbor na manhã de 7 de dezembro de 1941 até a disposição do antigo testamento cunhando de pecador o mentiroso, nota-se que a preocupação com os boatos não é fenômeno recente, botando-se a pá de cal na indicação da internet como a única vilã de um problema que é inerente à própria história da humanidade.
No enfrentamento do coronavírus, as fake news foram um novo fronte de batalha: da notícia de que a doença seria tratável com produtos químicos de tanques de peixes até o suposto desenvolvimento laboratorial do vírus na China, diuturnas foram as notícias falsas divulgadas nas redes, reacendendo o debate teórico sobre a relação entre a proteção da liberdade de expressão e as fake news.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
O fenômeno da pós-verdade, definido como circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes para a definição da opinião pública sobre determinados fatos se comparados aos apelos emocionais e intuições pessoais, inaugura desafios sem precedentes para a dogmática tradicional, desafiando sobretudo o estudo da liberdade de expressão.  Conforme lição de Rodotà, tomando-se em conta a rapidez do progresso técnico-científico e a lentidão com que amadurecem os processos sociais paralelos a tal progresso,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> é tarefa da doutrina o quanto antes repensar o alcance a abrangência das liberdades comunicativas em tempos de internet.
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<h3>Fake News: Incompatibilidades com a Liberdade de Expressão</h3>
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<blockquote class="jota-article__citation">“Os cidadãos não são livres para gritar ‘fogo!’  falsamente dentro de um teatro lotado”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a></blockquote>
A liberdade, de modo geral, é a faculdade de poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, exercendo-as como melhor convier. <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Encontra-se no princípio da legalidade, insculpido no art. 5º V da Constituição, o fundamento constitucional geral de liberdade, de modo que se a lei não proíbe determinado comportamento ou não o impõe, as pessoas podem adotá-lo ou não.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> A liberdade, portanto, é direito fundamental, e desdobra-se em diferentes espécies de liberdade: de locomoção, de expressão, de consciência, crença e culto; de reunião, de associação e de trabalho.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Os conceitos da dogmática constitucional não respondem, aparentemente, a uma dúvida premente ao analisar-se as fake news: estaria o direito de mentir albergado pela liberdade de expressão?
A veracidade é, mais que um limite, um requisito interno da informação, de sorte que esta só será digna de proteção do ordenamento quando a presente a verdade.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> A informação falsa, portanto, não estará albergada sob o manto da liberdade constitucional da liberdade de expressão, não protegendo esse direito fundamental o direito à mentira, diferente do que ocorrer em ordenamentos jurídicos estrangeiros.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Ao se determinar judicialmente a retirada de uma notícia falsa de circulação não há sequer uma ponderação de direitos entre liberdade de expressão e privacidade, uma vez que as fake news não são sequer dignas de proteção jurisdicional. Assim é a lição de Luís Roberto Barroso:
“A informação que goza de proteção constitucional é a informação verdadeira. A divulgação deliberada de uma notícia falsa em detrimento do direito da personalidade de outrem, não constitui direito fundamental do emissor.”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
O Superior Tribunal de Justiça vem firmando entendimento no sentido de que a liberdade de informação deve atentar-se ao dever de veracidade, já que a falsidade dos dados divulgados manipula em vez de formar a opinião pública.<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> O controle estatal, nessa hipótese, é condição necessária para garantir a proteção do propósito último das garantias de liberdade de expressão de promover um debate público (marketplace of ideas), que prepare os cidadãos, efetivamente, para deliberar sobre os assuntos de interesse geral.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
A intervenção estatal no exercício das liberdades comunicativas justifica-se, portanto, quando o propósito for a garantia da disseminação confiável, especialmente nos casos de promoção de uma regulação estatal que busque “neutralizar os incentivos econômicos que estimulam a produção de fake news”.<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a> Transformar em censura a atuação promocional do estado regulador nessas hipóteses é ignorar a relevância social da informação fidedigna e da natureza propulsora da verdade no processo de tomada de decisões inteligentes e informadas pelo cidadão. Impedir a circulação de fake news, portanto, não constitui conduta que fomenta a censura e tampouco avilta nenhuma das liberdades comunicativas: as liberdades de expressão, comunicação ou imprensa.
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<h3>As Fake News, a Democracia e o Marketplace of Ideas.</h3>
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Os defensores do chamado marketplace of ideas entendem que as fake news são o preço que se paga para viver-se em uma sociedade livre. As notícias falsas fariam parte do chamado marketplace of ideas, pensamento que defende que a melhor maneira para uma sociedade democrática determinar qual a melhor ideia dentre tantas é deixa-las confrontarem entre si no campo das ideias.
Ari Ezra Waldman, professor da New York University, destaca que assim como os bons produtos vencem no mercado sobre os maus produtos, as boas ideias venceriam sobre as más ideias, de modo que o uso da lei ou da aplicação de uma agenda de proteção ao usuário iria contra esse princípio de discurso livre, não-intervenção e tolerância. Não obstante a teoria do marketplace of ideas, destaca Waldman, parcela da doutrina reconhece que mesmo diante da ampla garantia à liberdade de expressão defendida pela Primeira Emenda à constituição Norte-Americana, considerando que o mercado por vezes falha em sua auto-regulação – e as fake news são uma clara hipótese em que o mercado falha em sua auto-regulação –, na presença da assimetria de informações e na incapacidade de os usuários distinguirem por si próprios as boas das más ideias que circulam na rede, a intervenção do Estado faria sentido.<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a> Para Waldman, entretanto, a doutrina da marletkplace of ideas diz respeito à ideias e não a fatos e, portanto, fatos falsos não estão protegidos pelo marketplace of ideas.
O propósito das garantias de liberdade de expressão e de imprensa, destaca Gustavo Binenbojm, é “fomentar um ‘robusto, aberto e livre debate público’ que prepare os cidadãos que prepare os cidadãos para deliberar sobre assuntos de interesse geral”.<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>  A função precípua das liberdades comunicativas, portanto, é fomentar uma cidadania informada e desenvolver capacidade nos cidadãos para o exercício do autogoverno. Para que se alcance esse objetivo maior de desenvolvimento e progresso democrático e civilizatório é premente que Estado e demais protagonistas desse processo busquem a disseminação de conteúdos relevantes e fidedignos, já que “o essencial não é que todos falem, mas que falem o que merece ser dito”.<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>
O discurso do marketplace of ideas e a visão neoliberal sobre o tema torna o controle das fake news extremamente dificultoso, de modo que qualquer tentativa de frear o fenômeno das fake news será cerceada pelo argumento de que a esfera pública de discussão deveria ser livre de qualquer intervenção ou regulação do Estado sob pena de censura.
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<h3>Reflexões Finais</h3>
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Na proteção da própria liberdade de expressão, na visão de Owen Fiss – professor da faculdade de Direito de Yale –, deve o Estado ser visto como amigo e não inimigo do processo de fortalecimento das liberdades comunicativas, arrematando o autor que o Estado “pode fazer coisas terríveis para desestabilizar e minar democracia, mas também algumas coisas extraordinárias para fortalecê-la”.<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>
É nesse sentido se que deve advogar a intervenção do Estado quando da disseminação das fake news por quaisquer agentes do cenário comunicativo e enxergar nessa intervenção não uma ameaça à democracia ou ao livre exercício das liberdades comunicativas mas, sim, um fortalecimento no desempenho livre, verdadeiro e transparente dessas liberdades.
Parece-nos que, no Brasil, não se pode falar que o texto constitucional dê guarida à posição de que o princípio da liberdade goze de qualquer superioridade hierárquica aos demais princípios da Carta Maior, ainda que esse seja o princípio condicionador para o exercício de outros direitos. Tal posicionamento estaria desprovido de fundamento constitucional.<a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a> O chamado mercado livre de ideias não encontra proteção constitucional na Carta da República já que o que a Constituição protege, efetivamente, é a informação fidedigna, verdadeira e que promova um debate amplo e marcado pela verdade.
Fake news, portanto, caminham em sentido diametralmente oposto ao que as liberdades comunicativas pretendem tutelar, não havendo que se falar em um direito à mentira albergado pela ordem jurídica brasileira.
Fica a expectativa da comunidade jurídica acerca dos próximos episódios do Inquérito 4.781/DF. Oxalá a Corte Maior consiga cumprir com a árdua tarefa de cercear o nefasto fenômeno das fake news sem que, de maneira injusta, o clamor popular erroneamente enxergue esses passos como um retrocesso à censura.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> No original: “During times of universal deceit, telling the truth becomes a revolutionary act”.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> MERCIER, Hugo. Fake news in the time of coronavirus: how big is the threat? The Guardian, 30/03/2020. Disponível em <a href="https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/mar/30/fake-news-coronavirus-false-information">https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/mar/30/fake-news-coronavirus-false-information</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 42.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> A frase é uma paráfrase da opinião de Oliver Wendell Holmes Jr. no caso da Suprema Corte dos Estados Unidos, Schenck vs. Estados Unidos, em 1919, que sustentou que o discurso do réu em oposição ao alistamento militar compulsório durante a Primeira Guerra Mundial não era protegido pela liberdade de expressão sob a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. (Schenck v. United States, 249 U.S. 47.).
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. 1 Ed. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 2003, p. 107.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. 2. Ed. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 2002, p. 85.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. cit. p, 87.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> BARROSO, Luís Roberto. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 235, p. 25, jan. 2004. Disponível em: &lt;http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/45123&gt;.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> “In American law, a definition of fake news cannot be overly encompassing because that would overreach the definition into speech that is protected by the First Amendment. In U.S. law, false information is protected not because falsity is valuable enough but because truthful information can be suppressed. Hence, the First Amendment allows "breathing space." This explains, in part, why fake news should be narrowly defined.” (PARK, Ahran; YOUM, Kyu Ho. Fake news from a legal perspective: the united states and south korea compared. In Southwestern Journal Of International Law, vol. 25, 1, pg. 103).
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente Adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Op cit.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> REsp 896.635/MT, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 10/03/2008).
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> BINENBOJM, Gustavo. Meios de Comunicação de Massa, Pluralismo e Democracia Deliberativa. As Liberdades de Expressão e de Imprensa nos Estados Unidos e no Brasil. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, n. 9, abr. 2005
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> REIS, Márcio Monteiro. Fake News: o Direito pode fazer algo a respeito? Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 16, n. 60, p. 9-41, jan/abr. 2018, p. 36.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> WALDMAN, Ari Erza.  The Marketplace of Fake News. University of Pennsylvania Journal of Constitucional Law. 2018, n. 20, p. 848. Disponível em: &lt; <a href="https://scholarship.law.upenn.edu/jcl/vol20/iss4/3">https://scholarship.law.upenn.edu/jcl/vol20/iss4/3</a> &gt;. Acesso em 18 de novembro de 2018&gt;).
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> BINENBOJM, Gustavo. Autobiografias e heterobiografias: liberdade de expressão, pluralismo e direito à informação. Revista Brasileira de Direito Público, v. 45, p. 9, 2014.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> MEIKLEJOHN, Alexander. Political Freedom: The Constitucional Powers of the People, p. 25-28, 1960.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> “Nós temos de aprender a aceitar esta verdade cheia de ironia e contradição: que o Estado pode ser tanto um inimigo como um amigo do discurso”. (FISS, Owen M. A ironia da Liberdade de expressão: regulação e diversidade na esfera pública. Trad.: Gustavo Binembojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 8)
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> SOUZA, Eduardo Nunes de Souza. Qual liberdade tutelar na era da opinião responsável? Prefácio à QUINELATO DE QUEIROZ, João. Responsabilidade Civil na Rede: danos e liberdades à luz do Marco Civil da Internet. Rio de Janeiro: Processo, 2019

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JOTA

Fake news caminham em sentido diametralmente oposto ao que as liberdades comunicativas pretendem tutelar

Estaria o direito de mentir albergado pela liberdade de expressão?

Fake news caminham em sentido diametralmente oposto ao que as liberdades comunicativas pretendem tutelar