Paulo Fernando Pinheiro Machado

Há cerca de quatro meses, antecipamos <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-wallet-do-dragao-e-a-inflacao-13082021">aqui</a> neste espaço o processo de estagflação global que então se formava e que agora, no final do ano, já nos está comendo pelas rebarbas. “O processo inflacionário atual”, resumimos, “trata-se, em essência, de uma dinâmica internacional, monetária e de oferta [materializada em] um processo disjuntivo estrutural do sistema financeiro internacional” <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Em outras palavras, cara leitora, o dragão atual tem duas cabeças: uma cabeça inflacionária, representada pelo fenômeno de expansão da base monetária, causado pela injeção de cerca de US$ 25 trilhões na economia global desde 2008 <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, e uma outra cabeça deflacionária, representada pela redução da atividade econômica aliada aos ganhos de produção causados pelo avanço da tecnologia. É duro arder em dois fogos. Já lembrava o visconde do Uruguai que “nec Hercules contra duo” – nem Hércules pode com dois <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/aprovometro?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Aprovometro_materias"><img class="aligncenter wp-image-292714 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/aprovometro.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
A dinâmica das duas cabeças do monstro é assaz complexa. Elas brigam entre si, o que levou muitos analistas – incluindo Jerome Powell, presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central norte-americano, e Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> — a vaticinarem que elas se aniquilariam mutuamente, fazendo com que a atual dinâmica inflacionária global fosse meramente transitória, porque a atividade econômica retomaria o fôlego pré-pandemia, ajustando-se ao nível da base monetária, isto é, a economia mundial cresceria rapidamente para o patamar em que a enorme quantidade de moeda em circulação seria suficiente para atendê-la. Repare, cara leitora, que, como viemos alertando ao longo do ano nesta coluna, para alcançar uma expansão de US$ 25 trilhões da base monetária global em pouco mais de uma década, seria preciso mais fôlego do que o da Corsa de Cerineia.
Jerome Powell reconheceu o erro de análise no último dia 30 de novembro, retirando a palavra “transitória” da sua caracterização da atual dinâmica inflacionária <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Para o economista e presidente do Queen's College, Cambridge, Mohamed A. El-Erian, o erro, contudo, teve consequências <a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Segundo El-Erian, “isso garantiu que o Fed continuasse com compras mensais massivas de títulos no mercado em um momento em que a economia estava indo bem, o mercado imobiliário estava em chamas e a 'recuperação de tudo' alimentada pela liquidez em ativos financeiros mostrava sinais crescentes de risco excessivo (...) na verdade, a própria noção de que o Fed tem sido totalmente insensível ao preço, uma vez que ele compra mais de US$ 100 bilhões todos os meses, efetivamente tornou os outros agentes menos sensíveis ao valor, desacoplando ainda mais os preços dos ativos dos fundamentos econômicos e corporativos” <a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Em outras palavras, cara leitora, o remédio teria agravado o problema, aumentando, na prática, a disparidade já imensa entre a renda real e os preços, como qualquer um que vá ao supermercado ou pense em adquirir um imóvel pode comprovar.
Os sinais do mercado são justamente no sentido de que essa disjunção entre preço e valor tende a se acirrar em 2022, consolidando um processo de estagflação global de longo prazo, conforme havíamos antecipado em fevereiro deste ano, em artigo para o jornal <a href="https://valor.globo.com/opiniao/coluna/inflacao-do-fed-e-o-possivel-estouro-da-bolha-acionaria.ghtml">Valor Econômico</a> <a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. O melhor termômetro para se medir a temperatura e a direção da atividade econômica global é o mercado de títulos do tesouro norte-americano, o bond market. Após uma queda brusca do prêmio pago pelos títulos com maturação em 10 anos a partir de meados de 2018 (quando os títulos estavam em média em 2,91%), caindo mesmo ao ponto de inverter a curva de juros em 2019, prenunciando uma recessão global, ao longo deste ano de 2021, em que pesem as campanhas de vacinação e a reabertura das economias ao redor do globo, o bond market não voltou aos níveis de 2018, mantendo-se praticamente estável em torno de 1,44%. Trata-se de um forte indicativo de que a atividade econômica global está em declínio, o que normalmente teria como consequência um processo deflacionário de longo prazo.
Isso se não houvesse uma massiva intervenção governamental, com a maior injeção de liquidez da história (leia-se, cara leitora, impressão de moeda) da ordem de US$ 25 trilhões. O processo econômico internacional, ao longo de 2021, confirmou nossa análise de que a atual inflação é essencialmente monetária, agravada por um choque de oferta. Repare, cara leitora, que os sinais do mercado de títulos da dívida norte-americana são no sentido de que esse choque de oferta tende a se agravar ao longo de 2022, intensificando a disjunção entre preço e valor. Em outras palavras, há um empate entre as duas cabeças do monstro da estagflação, com ambas tendendo a se fortalecer ao longo do ano que vem.
Nesse cenário, a notícia da eclosão da variante ômicron não é auspiciosa. Em que pese o alto grau de incerteza no momento, <a href="https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)02758-6/fulltext?dgcid=raven_jbs_etoc_email">um estudo</a> publicado no último dia 3 de dezembro na influente revista médica Lancet apresenta indícios de que a nova variante pode ser mais contagiosa do que as anteriores. Segundo os autores do estudo, “extrapolações baseadas em mutações conhecidas e observações preliminares, que devem ser interpretadas com cautela, indicam que a Omicron pode se espalhar mais rápido e pode escapar de anticorpos mais prontamente do que as variantes anteriores, aumentando assim os casos de reinfecção e os casos de infecções leves em pessoas vacinadas” <a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Para piorar o cenário, há indícios, também, de que a variante ômicron pode ser mais transmissível em crianças com menos de cinco anos. Dados da província de Gauteng, na África do Sul, epicentro do surgimento da nova variante, apontam para um aumento expressivo dos casos de internação de crianças, conduzidas, segundo a especialista local, Dra. Waasila Jassat, “como medida de precaução” <a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
O historiador britânico Niall Ferguson alerta para o fato de que, se essas tendências se confirmarem, o impacto da ômicron poderá ser muito maior do que o atualmente esperado. Segundo Ferguson, “ao contrário do que se passou com a onda delta, muitas escolas teriam de voltar à instrução híbrida, os pais voltariam a retirar-se da força de trabalho para fornecer cuidados infantis e os padrões de consumo voltariam a se retirar do varejo, do turismo e dos serviços pessoais. Os sistemas hospitalares também enfrentariam uma escassez de leitos intensivos pediátricos, que não foram muito necessários nas ondas anteriores da Covid” <a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Niall Ferguson alerta para o fato de que a nova variante, aliada às atuais tensões geopolíticas, pode significar o prego no caixão da globalização. O historiador britânico, contudo, faz uma ressalva de que não prevê “um colapso tão completo da globalização como aconteceu depois de 1914. A globalização 2.0 parece estar expirando com um gemido — ou talvez uma tosse persistente — ao invés de um estrondo. A convergência de renda e a mudança tecnológica teriam necessariamente reduzido a sua utilidade. Tendo sobrevivido em 2007, a globalização se acomodou em um nível mais baixo após a crise financeira e foi menos prejudicada por políticas populistas como a das tarifas do que poderia ter sido previsto. Mas o advento da Segunda Guerra Fria e da Covid-19 desferiu dois golpes severos. Até que ponto a globalização retrocederá depende de até que ponto os dois fenômenos persistirão ou se agravarão” <a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>.
Para nós aqui nos tristes trópicos só nos resta içar as velas e nos prepararmos para navegar em mares turbulentos no ano que vem. De mais urgente, contudo, parece ser o impacto que um processo prolongado de estagflação global causaria na economia brasileira. Dada a tendência de disjunção entre preço e valor, com possibilidades de acirramento para o ano que vem, o objetivo estratégico teria de ser, necessariamente, o de elevar o nível da produção e da atividade econômica para colocá-la a par com o nível dos preços. Em sendo o processo inflacionário atual um fenômeno global essencialmente monetário, um aperto dos juros em 2022 poderia ter um efeito contraproducente de intensificar ainda mais a disjunção entre preço e valor por estrangular ainda mais o crescimento econômico.
Não se pode perder de vista, cara leitora, que a inflação no Brasil possui, tradicionalmente, um caráter fortemente inercial, isto é, o fenômeno tende a se transformar em uma espiral psicológica, adquirindo uma dinâmica própria dissociada do elemento original que a causou. O remédio brasileiro para a estagflação atual, que é de origem global e não local, conforme já analisamos <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-wallet-do-dragao-e-a-inflacao-13082021">aqui nesta coluna</a> <a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>, não pode ser via política monetária, tendo de ser focado necessariamente na política fiscal. Ou seja, há que se atacar a cabeça deflacionária do monstro, para que se torne ela mesma inflacionária e coma a outra, que é, ela também, inflacionária.
Pode parecer contraintuitivo gerar mais inflação para controlar um processo inflacionário. Trata-se, porém, de gerar uma inflação distinta, de demanda, produto de uma economia cuja produtividade real, e não meramente financeira, está aquecida. A diferença entre o remédio e o veneno está na dose. O enfrentamento do problema via política monetária, com aumento dos juros, apenas acirrará a doença, arriscando mesmo a sobrevivência do paciente. Nec Hercules contra duo, nem Hércules pode com dois, já dizia o Visconde do Uruguai. A melhor saída é enfrentar cada cabeça do monstro em separado, começando por reverter o declínio da atividade econômica. Com sucesso, sobrará apenas uma única cabeça inflacionária ao dragão. Já vimos esse filme antes. E sobrevivemos.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Pinheiro Machado, P.F. “A Wallet do Dragão e a Inflação”, in Diários de um Diplomata, Jota, 13 ago. 2021. Disponível em:<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-wallet-do-dragao-e-a-inflacao-13082021"> https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-wallet-do-dragao-e-a-inflacao-13082021</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a><a href="https://www.atlanticcouncil.org/global-qe-tracker/"> https://www.atlanticcouncil.org/global-qe-tracker/</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Pinheiro Machado, P.F. “A Doutrina Monroe Tropical: O visconde do Uruguai e a definição da América do Sul como circuanstãncia diplomática do Brasil”, in Diálogos Latinoamericanos, núm. 19, 2012, pp. 69-91 Aarhus Universitet, Aarhus, Dinamarca  p. 81. Disponível em: <a href="https://www.redalyc.org/pdf/162/16229034003.pdf">https://www.redalyc.org/pdf/162/16229034003.pdf</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Arnold. M. “Christine Lagarde says EU inflation a passing ‘hump’ and 2022 rate rise ‘very unlikely’”, in Financial Times, 03 dez. 2021. Disponível em: <a href="https://www.ft.com/content/dfd205bd-bb19-46f2-9a75-47af00a843b5">https://www.ft.com/content/dfd205bd-bb19-46f2-9a75-47af00a843b5</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Reuters. ”Fed's Powell floats dropping "transitory" label for inflation”, in Reuters, 30 nov. 2021. Disponível em: <a href="https://www.reuters.com/article/usa-fed-instant-idUSKBN2IF1S0">https://www.reuters.com/article/usa-fed-instant-idUSKBN2IF1S0</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> El-Erian, M. A. “Powell’s ‘Transitory’ Retreat Is Just the Beginning”, in The Washington Post, 02 dez. 2021. Disponível em: <a href="https://www.washingtonpost.com/business/powells-transitory-retreat-is-just-the-beginning/2021/12/01/fead2338-5280-11ec-83d2-d9dab0e23b7e_story.html">https://www.washingtonpost.com/business/powells-transitory-retreat-is-just-the-beginning/2021/12/01/fead2338-5280-11ec-83d2-d9dab0e23b7e_story.html</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Pinheiro Machado, P. F. “A inflação do Fed e o possível estouro da bolha acionaria”, in Valor Econômico, 02 fev. 2021. Disponível em: <a href="https://valor.globo.com/opiniao/coluna/inflacao-do-fed-e-o-possivel-estouro-da-bolha-acionaria.ghtml">https://valor.globo.com/opiniao/coluna/inflacao-do-fed-e-o-possivel-estouro-da-bolha-acionaria.ghtml</a>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Karim, S.S.A. e Karim, Q.A. “Omicron SARS-CoV-2 variant: a new chapter in the COVID-19 pandemic”, in The Lancet, 03 dez. 2021. Disponível em: <a href="https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)02758-6/fulltext?dgcid=raven_jbs_etoc_email#articleInformation">https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)02758-6/fulltext?dgcid=raven_jbs_etoc_email#articleInformation</a>
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Mandavilli, A.” Omicron Variant Spreading Twice as Quickly as Delta in South Africa”, in The New York Times, 03 dez. 2021. Disponível em: <a href="https://www.nytimes.com/2021/12/03/health/coronavirus-omicron-vaccines-contagiousness.html">https://www.nytimes.com/2021/12/03/health/coronavirus-omicron-vaccines-contagiousness.html</a>
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Ferguson, N. “Omicron Sounds the Death Knell for Globalization 2.0”, in Bloomberg, 05 dez. 2021. Disponível em: <a href="https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2021-12-05/omicron-sounds-death-knell-for-globalization-2-0">https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2021-12-05/omicron-sounds-death-knell-for-globalization-2-0</a>
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Pinheiro Machado, P.F. “A Wallet do Dragão e a Inflação”, in Diários de um Diplomata, Jota, 13 ago. 2021. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-wallet-do-dragao-e-a-inflacao-13082021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-wallet-do-dragao-e-a-inflacao-13082021</a>

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