Coronavírus

Estado de emergência digital: regulando fake news durante a pandemia

Na falta de diretrizes sobre estado de emergência digital, nada pode evitar que se transforme em regra nas redes

Crédito: Pixabay

Atualmente, 90% das Constituições ao redor do mundo permitem a declaração de um estado de emergência para lidar com as mais variadas crises. Ainda que paradoxal, a lógica é simples: direitos fundamentais podem ser suspensos temporariamente para que o estado constitucional seja preservado. Em outras palavras, a Constituição prevê sua própria “violação” em momentos excepcionais para que, no futuro, seja resguardada.

O estado de emergência constitucional, por definição, conta com duas principais características: ele é conservador – serve para imunizar o status quo constitucional – e temporário – possui prazo de validade e não pode substituir a própria Constituição.

Enquanto em 1979 apenas 19% das Constituições aplicavam limites temporais ao estado de emergência, ainda em 2009 a proporção havia saltado para 35,9%. Também é comum que Constituições proíbam emendas constitucionais enquanto o estado de emergência perdurar, evitando a normalização da exceção.

Nada obstante, o estado de emergência também pode ser declarado através da via legislativa ordinária. Pode parecer uma contradição, mas o que alguns autores chamam de “modelo legislativo” de exceção tornou-se técnica corriqueira. Segundo Tom Ginsburg e Mila Versteeg, este novo paradigma inaugurou duas possibilidades.

Em primeiro lugar, a exemplo do Reino Unido, uma nova legislação pode ser editada para lidar com a pandemia. Em segundo lugar, a exemplo do Brasil, o estado de emergência pode se basear numa legislação já existente.

Seguindo o modelo legislativo de estado de emergência, o Congresso das Filipinas, em 24 de março de 2020, aprovou o “Bayanihan to Heal as One Act”. A lei tem prazo de validade de três meses a partir de sua publicação e define uma política pública nacional para combater o coronavírus.

Através do ato, o Congresso delegou poderes emergenciais ao presidente Rodrigo Duterte para que possa, dentre outras ações, restringir a liberdade de locomoção dentro do território nacional e distribuir um auxílio emergencial para famílias de baixa renda.

Nada obstante, há um “estranho no ninho”. Ao final da nova legislação, o Congresso filipino prevê a criação temporária de novos crimes. Indivíduos que produzirem ou espalharem informações falsas a respeito da pandemia em redes sociais poderão ser presos por até dois meses ou terão que pagar uma multa de no mínimo dez mil pesos (algo próximo de mil reais). Alguns comentaristas se preocupam com o uso desse dispositivo para silenciar políticos da oposição e já há pelo menos um caso que aponta para essa perigosa direção.

O que a legislação filipina demonstra é que, além das preocupações clássicas que são levantadas durante um estado de emergência sanitária, a pandemia de Covid-19 gerou outro problema que é próprio da nossa geração: a proliferação de fake news em redes sociais.

Notícias falsas sobre curas não testadas ou que incentivam pessoas a desrespeitarem o lockdown podem agravar a crise e ocasionar ainda mais mortes. Há, assim, um bom motivo para limitar não apenas a liberdade de locomoção, mas também a liberdade de expressão.

As principais redes sociais, como Facebook e Twitter, adotaram medidas de emergência para regular as fake news em suas plataformas durante a pandemia. O Facebook anunciou que removeria posts que defendessem a ineficácia do distanciamento social para combater o coronavírus e também informou que deletaria anúncios de medicamentos sem eficácia médica comprovada para o tratamento da Covid-19.

Mais recentemente, a plataforma disse que passaria a redirecionar usuários que interagissem com fake news para a página da Organização Mundial da Saúde dedicada a compilar fatos e mitos sobre o coronavírus.

Até mesmo o Twitter, conhecido por não limitar a liberdade de expressão de seus usuários, anunciou que iria revisar suas regras internas de forma a expandir a sua definição de “dano” para abranger postagens que se posicionam contra as diretrizes das autoridades de saúde.

Assim, a plataforma passará a remover tweets que desafiam recomendações médicas ou que promovem o uso de medicamentos que não possuem eficácia comprovada para o tratamento de infecções respiratórias virais.

Após modificarem suas regras internas de regulação de fake news diante da pandemia, ambas as plataformas deletaram vídeos que o presidente Bolsonaro havia postado em suas redes sociais. Nas imagens o Presidente aparecia em público interagindo com apoiadores, o que contraria a recomendação da OMS para que as pessoas permaneçam em casa.

Ainda, Bolsonaro afirmava que “a hidroxicloroquina está dando certo em tudo o que é lugar”, embora inexistam provas contundentes que sustentem tal afirmação. Em nota, o Facebook afirmou que não permite “desinformação que possa causar danos reais às pessoas”.

Em suma, as redes sociais também declararam estado de emergência. Antes da pandemia, plataformas como Facebook e Twitter não costumavam deletar postagens de chefes de estado ou de governo, mesmo quando as informações veiculadas eram comprovadamente falsas.

Após a pandemia, a liberdade de expressão nas redes sociais foi suspensa e as principais plataformas estão deletando postagens que em outras circunstâncias permaneceriam online. A pergunta que fica é: seriam esses poderes conservadores e temporários como determina a cartilha do direito constitucional contemporâneo?

Essas plataformas alteraram suas regras internas para agir com mais agilidade. A declaração do Twitter, por exemplo, é inequívoca; a empresa anunciou que iria “expandir” sua definição de “dano” para remover fake news relacionadas ao coronavírus. Nada na manifestação da empresa indica que essa seja uma mudança temporária.

Pelo contrário, a sua declaração termina com a afirmação de que a plataforma “continuará a revisar suas regras internas no contexto da Covid-19 e levará em conta de qual maneira elas precisarão evoluir para abranger novos comportamentos”.

Eis o problema de não definir os limites aplicáveis ao estado de exceção antes de sua declaração: tudo é possível. Como dito acima, o estado de emergência constitucional deve respeitar dois princípios básicos: precisa ser temporário e conservador. O estado de emergência digital não passa por nenhum dos dois testes.

Primeiro, nada garante que será temporário. Não há nenhum mecanismo capaz de suspender as novas regras assim que a pandemia acabar. Segundo, nada garante que será conservador. Justamente por não existirem mecanismos capazes de suspender as novas regras, elas poderão se tornar parte da nova “normalidade” assim que o coronavírus for controlado.

A nova legislação editada pelo Congresso das Filipinas é preocupante e poderá ser usada em nome de uma agenda autocrática trazendo ainda mais instabilidade para a já frágil democracia asiática.

Mas pelo menos temos a certeza de que ela é temporária (com prazo de validade de três meses), é monitorada de perto por uma comissão parlamentar mista criada especialmente para essa finalidade, e, ainda, não terá o condão de altera definitivamente o estado constitucional.

Nas redes sociais a conversa é outra. Pela falta de diretrizes prévias a respeito dos limites do estado de emergência digital, nada pode evitar que a exceção se transforme em regra nas redes sociais.