Agassiz Almeida Filho

Plínio Melgaré

Em um livro sobre o Estado de Direito, J.J. Gomes Canotilho pergunta: que direito para o Estado? E enuncia outra interrogação: que lei para que cidade? O princípio básico de um Estado de Direito é a eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos e a tutela dos direitos fundamentais diante desses poderes. Após a Segunda Guerra Mundial, o Estado de Direito também passou a afirmar uma ordem inclusiva, focada na emancipação humana, que responde a experiências históricas trágicas, baseadas em identificações binárias e excludentes, como arianos/não arianos, nacionais/imigrantes ou ricos/pobres.
Subjaz a um Estado de Direito a compreensão acerca do que seja a Constituição, bem como o sentido e a índole da jurisdição constitucional. Ferdinand Lassalle entendia a Constituição como expressão dos fatores reais e efetivos de poder, sendo os problemas constitucionais questões políticas e não de direito <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Carl Schmitt a compreendeu como uma decisão política tomada pelos grupos que chegam ao poder após o enfrentamento político (antagonismo amigo/inimigo), situando em um plano secundário a dimensão jurídica da Constituição. Ambos os autores entendiam que a Constituição não se impunha como sistema normativo.
Mas a dinâmica constitucional é enriquecida com elementos de juridicidade, para além de componentes políticos. Konrad Hesse apresenta a ideia da força normativa da Constituição <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, de acordo com a qual a as normas constitucionais possuem pretensão de eficácia e natureza jurídica. García de Enterría, ao estudar a Constituição espanhola de 1978 <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, assevera seu valor normativo, sua força vinculativa, que transforma um poder político bruto, desnudo, em um legitimo poder jurídico. De modo expressivo, a compreensão normativa da Constituição é definida por Castanheira Neves: “A Constituição é o estatuto jurídico do político”. A Constituição é política, mas também é jurídica. E cabe ao direito, com sua densidade axiológica própria, domesticar o poder político, como se este fosse uma fera e aquele seu domador.
Desde Maquiavel, sabe-se quais são a racionalidade e a intenção da política: movida por fins determinados pela razão de Estado, alcança o êxito ao aumentar e manter o poder do governante. Em um Estado Democrático de Direito, cabe à Constituição um capítulo importante na vida da polis: controlar as leis, evitar atos inconstitucionais e frear o impulso dos prepotentes, ainda que oriundos de uma maioria de ocasião.
A jurisdição constitucional, por sua vez, é a responsável por afirmar princípios normativos decorrentes de alguma exigência de justiça, de equidade ou de alguma outra dimensão de eticidade. Princípios, conforme escreve Paul Ricoeur, identificáveis pela sua força normativa própria <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. E o direito cumpre o papel de ser uma instância crítica da validade da política.
É próprio de uma sociedade plural o embate entre as forças sociopolíticas e o direito, que atua como um elemento de contenção do poder e preservação da própria polis como espaço organizado de convivência. Em tempos de intensa disputa ideológica, o embate se acentua. No cenário político contemporâneo, há o recrudescimento de ideologias políticas que pretendem exercer o poder à margem da normatividade constitucional.
Luigi Ferrajoli identifica o exercício de poderes selvagens <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, que ameaçam a democracia constitucional. São poderes exercidos por atores que não se submetem às regras, hostilizam as instituições democráticas, os direitos fundamentais, a separação dos Poderes, a liberdade de expressão. E pretendem validar seus atos em nome de uma legitimidade popular auferida nas urnas, envolta por um suposto consenso que não tem sentido num regime baseado na existência de maioria e minorias. São forças dissociativas que atacam o regime democrático e a cultura de paz com o fim de implantar o voluntarismo político.
Nesse cenário, o fortalecimento da jurisdição constitucional se impõe. Porém, em nome desses poderes selvagens recrudesce o discurso sobre a quem cabe a guarda da Constituição. O presidente Bolsonaro, no decreto de indulto que beneficiou o condenado deputado Daniel Silveira, chama para si essa tarefa. Justifica o indulto por um erro hermenêutico do Supremo Tribunal Federal (STF), que não teria bem interpretado os dispositivos constitucionais referentes à liberdade de expressão e à imunidade parlamentar. Avoca a função de guardião da Constituição, usurpando a competência constitucional do STF. A legitimar esse entendimento, a visão enviesada de que caberia primordialmente aos representantes eleitos pelo povo interpretá-la.
Não há dúvidas de que também o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/poder-executivo">Poder Executivo</a> precisa interpretar e concretizar a Constituição, sobretudo ante a sociedade aberta de intérpretes da Constituição (Peter Häberle). Todos os membros da comunidade política de algum modo interferem na interpretação e definição do conteúdo da Constituição. No entanto, nos marcos do constitucionalismo, os conflitos entre os poderes são debelados pelo sistema de freios e contrapesos e pelas demais normas constitucionais que compõem a orgânica do Estado. Quando esses conflitos se baseiam em juízos de constitucionalidade, a Constituição de 88, como se sabe, aponta o STF como o guardião da sua incolumidade normativa.
Situar a presidência da República como última instância para a interpretação das normas constitucionais significa resgatar a velha discussão entre Hans Kelsen e Carl Schmitt sobre quem deveria ser o guardião da Constituição. Em meio ao regime nazista, Schmitt defendia que o Führer deveria dizer a última palavra acerca da Constituição porque personificava a unidade política do povo alemão. A posição que preponderou, como se sabe, foi a defendida por Kelsen: o tribunal constitucional.
O papel do <a href="https://www.jota.info/stf">STF</a> como guardião da Constituição traz elementos da tradição norte-americana, do pensamento kelseniano sobre a jurisdição constitucional e da doutrina da força normativa da Constituição. É uma construção clássica e uma das características do constitucionalismo contemporâneo. Ela se baseia na ideia de que a Constituição, política e jurídica, limita o poder e protege os direitos fundamentais. Na democracia, não há espaço para usurpações e arranjos institucionais contrários à Constituição. O outro caminho é o Estado de força e seu sempre ameaçador espectro autoritário.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ¿Que és uma constituición? trad. Temis: Bogotá, 2003, pp. 79 e seguintes.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A força normativa da Constituição. trad. Gilmar Ferreira Mendes. Sergio Fabris: Porto Alegre, 1993.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> La constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Civitas: Madrid, 1994.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Paul Ricoeur. O justo ou a essência da justiça. trad. Vasco Casimiro. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 149.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Poteri selvaggi: la crisi della democrazia italiana. Laterza: Roma, 2011.

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JOTA

Na democracia, não há espaço para arranjos institucionais contrários à Constituição

Estado de direito e Estado de força

No estado de direito não há espaço para arranjos institucionais contrários à Constituição. O outro caminho é o Estado de força