Eduardo Miceli

No último dia 10 de setembro, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, na decisão do Recurso Especial 2.121.497/RJ, majorou a condenação em danos materiais que deve arcar o grupo Azzas 2154 – nos autos, ainda Tiferet Comércio de Roupas Ltda. – pela reprodução de trechos em camisetas da marca Reserva das obras lítero-musicais “Do Leme ao Pontal” e “Você e eu, eu e você”, de autoria de Sebastião Rodrigues Maia, protegidas pelos direitos patrimoniais de autor até 2069, na forma do artigo 41 da Lei de Direitos Autorais<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Em seu voto, o ministro relator Marco Aurélio Bellizze entendeu existir a transcrição da obra musical do autor, “pois as estampas ultrapassam a mera referência à obra do ator, tratando-se de cópia das letras de duas músicas com o simplório acréscimo de “&amp;” e a supressão de outros conectivos”.
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Dessa forma, sob o entendimento do duplo caráter indenizatório aplicável à conduta do grupo Azzas 2154 – de finalidade ressarcitória como também punitiva – majorou o quantum indenizatório para que fosse composto das remunerações que teriam sido auferidas se a licença para utilizar as obras de autoria de Tim Maia fosse obtida, em adição à quantia total das vendas dos produtos com os dizeres advindos das composições do artista nascido no bairro da Tijuca, sem poder o teto de R$ 600 mil pleiteado.
Mais do que uma análise do mérito do voto do ministro relator Marco Aurélio Bellizze, seguido de forma unânime, quanto à configuração de violação aos direitos de reprodução da obra lítero-musical nas peças de indumentária objeto do feito, salta aos olhos um trecho do acórdão, que suscita paralela, mas crucial discussão:
“Reafirme-se que a vinculação do artista a uma determinada marca sem a devida autorização é conduta preocupante, pois pode representar um endosso do autor a um pensamento que não se compactua com sua convicção pessoal, tornando-o praticamente um sócio da grife, mas sem o seu aval, podendo implicar uma vantagem muito maior para o infrator, como a valorização de sua marca e o incremento na venda de outros produtos”. (grifou-se)
Merece atenção a louvável preocupação do magistrado com a vinculação do autor ao pensamento ou prática que não se coaduna com suas convicções, atinente à preservação dos valores extrapatrimoniais de Sebastião Rodrigues Maia, mesmo em sede de violação patrimonial de direito autoral. Notável, também, que o originador das obras lítero-musicais empregadas nas camisetas da Reserva, lamentavelmente, faleceu em 15 de março de 1998, após sentir-se mal na gravação de uma de suas apresentações.
Seria uma hercúlea tarefa, não distante da adivinhação, imaginar as convicções e orientações pessoais do autor falecido em relação às práticas da marca Reserva, criada seis anos após a morte de Tim Maia.
Da mesma forma, é possível arguir que, mesmo na hipótese do licenciamento das obras pelo espólio, como lhe faculta a Lei 9.610 de 1998<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, igualmente não seria possível afirmar se tratar das convicções do autor sobre o endosso ou não dos bens hipoteticamente licenciados.
Suscita-se o necessário, mas por vezes escanteado, debate sobre o reflexo do exercício das faculdades integrantes do direito autoral por sucessores, de maneira ampla. Com o (já) considerável prazo mínimo de 50 anos previsto na Convenção da União de Berna e a adição de mais duas décadas pela legislação pátria (um pacote Berne Plus) para a proteção dos direitos de exclusividade da obra após o falecimento do autor, em quaisquer modalidades e formas de uso, cumpre uma cautelosa investigação acerca da função social destas faculdades patrimoniais.
Não se trata da função do direito autoral em si, mas do seu exercício após a morte do autor, observando, necessariamente, a utilidade, objetivo e finalidade<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> da mantença de direitos afins ao exercício proprietário por sete décadas.  Por vezes, o exercício do direito de exclusivo por sucessores colide com o interesse público e a necessária observância do solidarismo do ordenamento jurídico pátrio<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Veja-se como exemplo o neto de James Joyce, Stephen Joyce, que proibiu diversas interpretações públicas da obra de seu antecessor, bem como a produção de audiocast de Ulysses, essenciais para acessibilidade às obras do romancista irlandês; similarmente, o estate do autor sul-africano J.R.R. Tolkien controla com punho de ferro o acesso aos escritos do brilhante filólogo.
Cria-se empecilhos ao acesso à cultura, sua disseminação, por motivações que variam desde exclusivamente pecuniárias, como também quando os titulares dos direitos do autor morto discordam das convicções e formas de pensar o mundo de seus ascendentes.
Não se pretende esgotar tão profunda discussão nesse breve texto, que é nuançada e versa sobre o conflito de normas constitucionais que garantem o direito de autor (e sua transmissibilidade aos herdeiros) em face do livre acesso à informação, à cultura e ao desenvolvimento tecnológico; busca-se apenas fomentar o debate.
Se a função social do direito de autor é a promoção do desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, é importante que se observe como a longeva exclusividade, a ser exercida por terceiros não participantes da gênese criativa em si, contribuem para essa finalidade.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> UNZELTE, Carolina. STJ determina que Reserva indenize família de Tim Maia por uso de músicas em camisetas. Jota, 10 de setembro de 2024. Disponível em <a href="https://www.jota.info/justica/stj-determina-que-reserva-indenize-familia-de-tim-maia-por-uso-de-musicas-em-camisetas">https://www.jota.info/justica/stj-determina-que-reserva-indenize-familia-de-tim-maia-por-uso-de-musicas-em-camisetas</a>. Acesso em 12 de setembro de 2024.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Lei 9.610 de 1998. Art. 41. “Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.” (grifou-se)
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “A  ideia  de  função,  importada  das  ciências  naturais,  revela um caráter fisiológico: conduz diretamente aos efeitos, focaliza uma “consequência de determinada espécie, determinável e esperada teoricamente e/ou empiricamente observável ou inferível, e observada ou inferida”. Função, assim, remete a finalidades, objetivos, utilidade, repercussões.” (KONDER, Carlos Nelson. Para além da “principialização” da função social do contrato. Revista Brasileira de Direito Civil. v. 13 n. 03. jul./set. 2017.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> PERLINGIERI, Pietro.  O direito civil na legalidade constitucional.Tradução: Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 677.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> CARBONI, Guilherme. Função Social do Direito de Autor. Curitiba: Editora Juruá, 2008. p. 233.

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JOTA

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