Renato da Fonseca Janon

<blockquote class="jota-article__quote">
“Magistrados futuros, não vos deixeis contagiar de contágio tão maligno. Não negueis jamais ao Erário, à Administração, à União, os seus direitos. São tão invioláveis, como quaisquer outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais alto dos poderes.
Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta, e redobrar de escrúpulo; porque são os mais mal defendidos, os que suscitam menos interesse, e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição com a míngua nos recursos.
<footer class="jota-article__quote-cite">Rui Barbosa – em “Oração aos Moços”</footer>
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O ponto mais controverso da reforma trabalhista implementada pela lei.13.467/2017 é o cerceamento do direito de ação do trabalhador, por meio da criação de barreiras econômicas punitivas que limitam o benefício da justiça gratuita e impõem o ônus da sucumbência. Em outras palavras, o trabalhador, em caso de improcedência do seu pedido, mesmo desempregado, pode ter que pagar honorários periciais e honorários advocatícios para o advogado do patrão. Há diversos relatos de casos em que foram impostas aos autores condenações astronômicas, que corresponderiam a vários anos de salário <a href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>.
É uma clara estratégia de intimidação. Ao criar um risco financeiro elevado, ameaçando o trabalhador de pagar uma conta que, a rigor, seria impagável, o que se pretende, na prática, é que ele não exerça o seu direito constitucional de ajuizar uma ação trabalhista para questionar um direito perante o Judiciário.
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Os defensores da reforma trabalhista dizem que havia um excesso no volume de ações em decorrência do “protecionismo exacerbado” e da ausência de riscos. No entanto, as estatísticas oficiais do CNJ revelam que a principal causa do elevado número de processos trabalhistas é o descumprimento das obrigações mais elementares do contrato de trabalho, como, por exemplo, salários, férias, 13o.salários, horas extras, todos direitos garantidos no art.7o da Carta Magna. Muitas vezes, o empregado demanda apenas o pagamento de verbas rescisórias incontroversas.
Significa dizer que, na verdade, existe uma cultura da sonegação e da impunidade, não deixando ao cidadão outra alternativa a não ser bater na porta do Judiciário. E, mesmo quando o autor não consegue comprovar um fato sobre o qual havia controvérsia, é importante lembrar que nem sempre é porque ele estava mentindo. Ele, simplesmente, pode não conseguir testemunhas para confirmar suas alegações. Seria justo que, nesses casos, o autor venha a ser punido com condenações exorbitantes apenas porque não teve sucesso na sua ação? Ora, para os casos de má-fé a lei já previa multa e indenização em favor da parte prejudicada. Na verdade, as inovações trazidas pela lei 13.467/2017 nada têm a ver com o senso de Justiça, mas sim com o desejo de atemorizar o trabalhador para desestimulá-lo a ajuizar uma ação trabalhista.
Diante dessas premissas, não há como deixar de se reconhecer que esse ponto específico da chamada “reforma trabalhista” é manifestamente inconstitucional e contrário aos Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil.
Primeiro, vejamos a restrição do benefício da justiça gratuita. Em sua nova redação, o art. 790,§3o, da CLT, passou a estabelecer que: “é facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.”
Trata-se de inaceitável óbice econômico para o exercício fundamental do direito de ação. O ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma sistemática e orgânica, de modo que é inconcebível que um autor de uma ação cível tenha mais facilidade de obter o benefício da Justiça Gratuita do que um trabalhador hipossuficiente, que recorre à Justiça do Trabalho.
O art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal estabelece que "O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos", de modo que não pode o legislador infraconstitucional criar obstáculos draconianos para a fruição desse direito, tal como o fez equivocadamente através da edição da Lei nº 13.467/2017.
Negar o exercício pleno da garantia de acesso à justiça aos que não tem condições econômicas de fazê-lo sem prejuízo de sua subsistência e de sua família, através de uma mera lei ordinária, constitui abuso do Estado no exercício do poder de legislar. Ao Estado se impõe o dever fundamental de não restringir liberdades e garantias individuais reconhecidas como direitos subjetivos públicos, como é o caso do direito de provocar a prestação jurisdicional, especialmente para aqueles mais carentes de recursos para arcar com despesas e honorários.
Dizendo de outra forma, o Estado Leviatã “põe sobre o trabalhador uma verdadeira espada de Dâmocles, no sentido de que terá o pleno exercício do seu direito de ação na forma prevista na regra do inciso LXXIV do art. 5o da Carta Magna, condicionando, entretanto, a sua plenitude e gratuidade, na forma como pensada pelo Constituinte, à obtenção de um resultado totalmente favorável ao trabalhador carente”, conforme já decidiu o TRT da 19a.Região<a href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>. Afinal, de acordo com a regra imposta pela reforma trabalhista, a garantia constitucional do art.5o, LXXIV, da CF somente será observada em caso de procedência total da ação, pois, do contrário, o autor não receberá do Estado a “ assistência jurídica integral e gratuita”. Condicionar o exercício de um direito individual fundamental, que constitui cláusula pétrea (art.60, §4o, IV, CF), ao sucesso de uma demanda é violar a Constituição de forma oblíqua e sorrateira.
Portanto, em respeito ao art. 5o, LXXIV, da CF, o benefício da justiça gratuita deve continuar sendo concedido a todos que comprovarem ou declararem, sob as penas da lei, que estão em estado de hipossuficiência econômica, independentemente do salário, salvo se houver prova em sentido contrário.
A segunda mudança draconiana trazida pela lei 13.467/2017 está descrita na nova redação do art. 791-A, caput e §4o, CLT:
Art. 791-A. Ao advogado, ainda que atue em causa própria, serão devidos honorários de sucumbência, fixados entre o mínimo de 5% (cinco por cento) e o máximo de 15% (quinze por cento) sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa.
4º Vencido o beneficiário da justiça gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.
Como se vê, o autor também passa a suportar o ônus da sucumbência, sendo condenado ao pagamento de honorários em caso de improcedência do pedido, independentemente de ser ou não beneficiário da justiça gratuita. No primeiro caso, haverá apenas uma suspensão da exibilidade se ele não tiver algum crédito a receber em juízo, ainda que, em outro processo. Na prática, quer dizer que, se ele ganhou uma parte da ação e perdeu a outra, o autor vai seu crédito alimentar para pagar os honorários advocatícios do advogado do patrão.
Por conseguinte, o art. 791-A, §4o, CLT gera ônus desproporcional e injusto para o autor da ação ao possibilitar que eventual crédito adquirido no próprio ou noutro processo possa ser utilizado para pagar os honorários sucumbenciais, desprezando o caráter alimentar das verbas trabalhistas e a possibilidade de comprometimento de necessidades essenciais do trabalhador. Ademais, a restrição dos benefícios da justiça gratuita imposta pela Lei nº 13.467/17, com a inclusão do art. 791-A, § 4º, da CLT, pode aniquilar de vez o único caminho que o trabalhador tem para tentar reaver direitos trabalhistas violados.
Não por outro motivo foi acolhido o Enunciado no. 100 da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho (2017) e XIX Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho - CONAMAT 2018, nos seguintes termos:
"100. HONORÁRIOS E ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. É inconstitucional a previsão de utilização dos créditos trabalhistas reconhecidos em juízo para o pagamento de despesas do beneficiário da justiça gratuita com honorários advocatícios ou periciais (artigos 791-A, § 4º, e 790-B, § 4º da CLT, com a redação dada pela Lei nº 13.467/2017), por ferir os direitos fundamentais à assistência judiciária gratuita e integral, prestada pelo Estado, e à proteção do salário (artigos 5º, LXXIV, e 7º, X, da Constituição Federal)."
Destarte, diante dessas evidências, é imperioso reconhecer que os artigos 790, § 3.º, e 791-A, caput e §4o, ambos da CLT, são manifestamente inconstitucionais por violarem os princípios indeclináveis da assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV, CF) e do livre acesso à Justiça (art.5º, XXXV, CF).
Entretanto, se esses fundamentos já não fossem suficientes, as normas da lei 13.467/2017, que limitam o benefício da justiça gratuita e estabelecem o ônus da sucumbência para o autor, também não passam pelo crivo do Controle da Convencionalidade, na medida que contrariam Tratados e Convenções internacionais sobre direitos humanos (mais precisamente os artigos 8 e 25 do Pacto de San José da Costa Rica), os quais, quando ratificados, são incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro em posição hierárquica superior à da lei ordinária. Esse caráter supralegal do tratado devidamente ratificado e internalizado — porém não submetido ao processo legislativo estipulado pelo art.5º, §3º, da CF— foi reafirmado pela edição da SÚMULA VINCULANTE 25 do STF, segundo a qual “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. Esse verbete sumular consolidou o entendimento do Pretório Excelso no sentido de que o art.7º, item 7, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (conhecida como “Pacto de San José da Costa Rica”) teria ingressado no sistema jurídico nacional com status supralegal, inferior à Constituição, mas superior à legislação interna.
Extrai-se daí que, ao editar a Súmula Vinculante no 25/STF (de cumprimento obrigatório por todos), o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento de que os Tratados Internacionais sobre direitos humanos (como, por exemplo, o próprio Pacto de San José da Costa Rica) – gozam de caráter SUPRALEGAL, estando acima de qualquer Lei Ordinária (como é o caso da lei 13.467/2017).
Pois bem. Esse mesmo “Pacto de San José da Costa Rica” - codinome da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), em seus artigos 8 -8.1 e 25, assevera que toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. Vejamos o texto literal da Convenção Americana dos Direitos Humanos:
Artigo 8.º: Garantias judiciais 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza” (sublinhei).
Artigo 25: Proteção judicial 1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais”.
Percebe-se, então, que, de forma ainda mais ampla, o Tratado Internacional está assegurando ao cidadão os mesmos direitos de livre acesso ao Judiciário e de assistência jurídica integral e gratuita que estão previstos no art.5o, incisos XXXV e LXXIV, da nossa Constituição. Disposições semelhantes são encontradas nos artigos 8 e 10 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH):
Artigo 8. Todo homem tem direito a receber, dos tribunais nacionais competentes, remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.
Artigo 10. Todo o homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra si
A propósito, em Setembro de 2017, a Suprema Corte do Reino Unido decidiu pela impossibilidade da exigência de custas processuais para os trabalhadores britânicos reclamarem perante o Judiciário daquele país, sob o fundamento de que “o direito constitucional de acesso aos Tribunais é inerente e central ao Estado de Direito (“Rule of Law”) e à Democracia” e de que “quando o parlamento aprova leis criando direitos trabalhistas, por exemplo, ele o faz não somente para conferir benefícios aos empregados individualmente, mas porque foi decidido que é interesse público que tais direitos devam ser efetivados <a href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>.
Por tudo quanto exposto, podemos concluir que os artigos 790, § 3.º, e 791-A, “caput” e §4o, da CLT, que, respectivamente, limitam o benefício da justiça gratuita e estabelecem o ônus da sucumbência, são INAPLICÁVEIS porque:
1) em controle de constitucionalidade, violam direitos individuais fundamentais, mais precisamente as garantias dos princípios da assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV, CF) e do livre acesso à Justiça (art.5º, XXXV, CF).
2) em controle de convencionalidade, violam os artigos 8 – 8.1 e 25 do Pacto de San José da Costa Rica (CADH) e os artigos 8 e 10 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), sendo que o caráter supralegal desses Tratados está assegurado na Súmula Vinculante no.25/STF <a href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>
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<div id="sdfootnote1">
<a href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> <a href="https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ex-empregado-tem-de-pagar-r-750-mil-a-empresa,70002221343">https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ex-empregado-tem-de-pagar-r-750-mil-a-empresa,70002221343</a>;
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a>- TRT 19, Arguição de Inconstitucionalidade no. 0000206-34.2018.5.19.0000 - <a href="https://www.trt19.jus.br/portalTRT19/conteudo/salaImprensa/6468">https://www.trt19.jus.br/portalTRT19/conteudo/salaImprensa/6468</a>
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> <a href="https://www.supremecourt.uk/cases/uksc-2015-0233.html">https://www.supremecourt.uk/cases/uksc-</a><a href="https://www.supremecourt.uk/cases/uksc-2015-0233.html">2015-0233.html</a>
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> Nesse sentido – sobre o controle de convencionalidade: TRT-3 – MG - RO: 00120441120175030143 001204411.2017.5.03.0143, Relator: Marcelo Lamego Pertence, 07.06.2018, Sétima Turma
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