dia da consciência negra

Equidade racial: quando iremos abrir os olhos para essa necessidade?

Os 134 anos da abolição ainda são insuficientes para suplantar os 350 anos de uma persistente mentalidade escravista

perfilamento racial
Crédito: Unsplash

Na tarde de 29 de outubro de 2022, véspera do segundo turno das eleições, num bairro nobre de São Paulo, uma deputada federal perseguia a pé um homem negro. Branca, ruiva e com uma pistola nas mãos, a parlamentar encurralou seu alvo em um bar. Apontava-lhe a arma, enquanto ordenava que ele se deitasse no chão.

Mais tarde, em suas redes sociais, ela disse: “Eles usaram um negro para vir em cima de mim”. Afirmou também ter sido ofendida, cuspida e empurrada no chão pelo rapaz. Descobriu-se depois que ele a havia xingado, nada mais. Irritada, a mulher correra atrás dele e caíra sozinha, colocando a vida de outra pessoa em risco por uma ofensa verbal[1].

Não há o que louvar na atitude do rapaz, mas a reação da congressista foi desproporcional à ofensa. Num duelo entre balas e palavras, o chumbo sempre vence a saliva.

Cabe perguntar: haveria essa resposta exagerada, se uma pessoa branca tivesse ofendido a parlamentar? E mais: a deputada teria dito que usaram um branco para vir em cima dela? É muito provável que a resposta para ambas as questões seja não.

A atitude lamentável da deputada infelizmente faz eco à de parte de nosso povo. Os 134 anos da abolição ainda são insuficientes para suplantar os 350 anos de uma persistente mentalidade escravista.

Perto de cinco milhões de africanos foram trazidos a este país entre os séculos 16 e 18 para trabalhar como escravizados. Negar-lhes a humanidade e reduzi-los a objetos – até mesmo ante seus próprios olhos – era essencial para o funcionamento do sistema econômico da época. Objetos não são gente, não merecem empatia, não precisam de dignidade.

A frase da deputada embute essa objetificação, cujo resultado se traduz em diversas estatísticas socioeconômicas desfavoráveis.

Em 2021, mais de 56% de nossa população se identificava como preta ou parda[2]. Seria de se esperar que essa proporção se repetisse nas várias áreas da vida social. Contudo, não é isso o que acontece. Quase sempre a presença negra se eleva bastante nos indicadores ruins e submerge muito nos bons.

Exemplos não faltam: enquanto 78% das vítimas de assassinatos no Brasil são afrodescendentes[3], apenas 21% dos magistrados brasileiros têm essa origem[4]. Dois terços dos encarcerados no Brasil têm pele escura[5], característica de somente 26% dos deputados federais eleitos em 2022[6]. Perto de 75% dos miseráveis do país são negros[7], enquanto CEOs pretos ou pardos não lideram nem 10% das empresas no Brasil[8].

Nada disso é coincidência ou acidente. Sucessivas gerações de negros têm tido seu avanço sistematicamente impedido em nossa sociedade. A extinção da escravatura não gerou compensações aos escravizados ou sua inserção na sociedade. Eles não só foram deixados à própria sorte, como também submetidos a processos crescentes de marginalização e eliminação.

Antes da abolição, há evidências de mão de obra cativa nas mais diversas profissões: cozinheiro, calafate, tanoeiro, entre outras[9]. Até perto do fim do século 19, curandeiros, parteiras e dentistas negros cuidavam da saúde de boa parte do povo[10]. Os africanos se destacavam inclusive na metalurgia: parte de suas inovações tecnológicas foi aproveitada na primeira siderúrgica brasileira, a Patriótica, em 1812[11].

Apesar disso, orientado por um darwinismo social que entendia pretos e pardos como biologicamente inferiores, o poder público incentivou a imigração de europeus e asiáticos para o Brasil, como forma de melhorar – leia-se embranquecer – a nossa população, tornando-a supostamente mais apta para trabalhos complexos[12]. Restringia-se, assim, a possibilidade de afrodescendentes ocuparem postos de trabalho nesse novo cenário.

À falta de ocupação juntou-se a perseguição judicial. O código criminal de 1890 punia a vadiagem com encarceramento de 15 a 30 dias. Com reduzidas possibilidades de obter uma ocupação formal, a massa de ex-cativos tornou-se alvo preferencial das autoridades policiais[13].

Mais de um século depois, a surpresa é a permanência da “predileção” da polícia pela população negra. Das 6.145 mortes causadas por ações policiais em 2021, 5.168, ou 84%, foram de pessoas negras[14].

É verdade que avanços como o sistema de cotas para negros no Brasil têm propiciado progressos à população negra, viabilizando acessos antes impensáveis ao ensino superior, a empregos e à participação política.

No entanto, ainda há muitos problemas a superar em termos do racismo estrutural que permeia todos os níveis de nossa sociedade. Um racismo que oprime, desqualifica e agride todas as pessoas negras, especialmente as mais pobres.

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), por meio de seu Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, vem lutando por modificar esse quadro.

Promovemos seminário sobre a letalidade policial contra a população negra; manifestamo-nos contra projeto de lei que visava eliminar o sistema de cotas; atuamos na assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta que levou a rede Carrefour a destinar R$ 115 milhões a programas de igualdade racial após João Alberto Silveira Freitas, homem negro, ter sido espancado até a morte por seguranças em uma das lojas da empresa[15].

O art. 3º, IV, de nossa Constituição elenca como objetivo nacional a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Há 34 anos, nós, como sociedade, temos falhado em atingir essa meta. Desde 2011, quando o 20 de novembro foi instituído como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, somos lembrados dessa falha.

Zumbi representa a resistência da comunidade negra às diuturnas tentativas de seu extermínio. Eliminação física, moral e histórica. Mesmo assim, esse grupo social se mantém de pé, luta e persiste.

A perseguição de 29 de outubro de 2022 foi mais uma dessas tentativas. E irá se repetir sob outras formas, todos os dias, enquanto a igualdade racial estiver apenas na letra da lei.

Somos iguais no papel, mas não equivalentes em sociedade. Precisamos de equidade racial verdadeira, que viabilize a pretos e pardos oportunidades reais de progresso, segurança e dignidade. Essa deve ser nossa meta. E dela precisamos ter, independentemente do tom de pele, urgente consciência. Quando iremos abrir nossos olhos?


[1] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/10/29/zambelli-arma-rua-sp.htm. Acesso em 09/11/2022.

[2] https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/07/ibge-populacao-autodeclarada-preta-cresce-324percent-no-brasil-em-10-anos.ghtml. Acesso em 08/11/2022.

[3] Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5. Pág. 14. Acesso em 08/11/2022.

[4] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/rela-negros-negras-no-poder-judiciario.pdf. pág. 47. Acesso em 10/11/2022.

[5] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5. pág 403. Acesso em 10/11/2022.

[6] https://www.poder360.com.br/eleicoes/numero-de-deputados-negros-cresce-10-em-2022/. Acesso em 10/11/2022.

[7] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2021/12/03/pobreza-e-maior-entre-criancas-negros-e-moradores-do-norte-e-do-nordeste.htm. Acesso em 11/11/2022.

[8] https://www.fdc.org.br/conhecimento-site/noticias-site/Documents/Maior%20parte%20dos%20CEOs%20%C3%A9%20homem%20e%20branco%20_%20Carreira%20_%20Valor%20Econ%C3%B4mico.pdf. Acesso em 11/11/2022.

[9] PINTO, Natália Garcia. E o trabalhador é cativo: o escravo urbano e seus ofícios na cidade de Rio Grande [1848-1852]. Disponível em  http://eeh2008.anpuh-rs.org.br/resources/content/anais/1211146629_ARQUIVO_EoTrabalhadoreCativo.pdf. pág. 3. Acesso em 14/11/2022.

[10] RAMATIS, Jacino. O Negro no Mercado de Trabalho em São Paulo pós-abolição 1912-1920. Disponível em https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8137/tde-11042013-093449/publico/2012_RamatisJacino_VCorr.pdf. Pág 42. Acesso em 14/11/2022.

[11] https://projetoquerino.com.br/wp-content/uploads/2022/07/Ep-05_Os-piores-patroes_Querino-1.pdf. pág. 7. Acesso em 14/11/2022.

[12] FULGÊNCIO, Rafael Figueiredo. O paradigma racista da política de imigração brasileira e os debates
sobre a “Questão Chinesa” nos primeiros anos da República
. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/503045/RIL202.pdf?sequence=8. Págs. 6-9. Acesso em 14/11/2022

[13] PAULINO, Sílvia Campos e OLIVEIRA, Rosane. Vadiagem e as Novas Formas de Controle da População Negra Urbana Pós-abolição. Disponível em https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistadireitoemovimento_online/edicoes/volume18_numero1/volume18_numero1_94.pdf. Acesso em 14/11/2022.

[14] Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5. Pág. 14. Acesso em 08/11/2022.

[15] https://www.extraclasse.org.br/justica/2021/09/mpf-homologa-tac-com-carrefour-no-valor-de-r-115-milhoes-pela-morte-de-beto/. Acesso em 14/11/2022.

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