democracia frágil

Episódios do STF na Era Vargas

O 'não conhecimento' de ações como estratégia política de Cortes Supremas em regimes autoritários

23/01/2022|05:20
STF era vargas
Getúlio Vargas e ministros, em foto de 1931. Crédito: Wikimedia Commons

Entre as estratégias políticas que podem ser levadas adiante por Cortes Supremas em regimes autoritários ou semiautoritários para evitar temas sensíveis e garantir a sua autopreservação, encontram-se os usos do conhecimento processual de ações. Tendo em vista a atuação histórica do STF, os primeiros anos da Era Vargas oferecem exemplos significativos de como o “não conhecimento” de ações judiciais pode guardar um significado substancialmente político.

Em 24 de outubro de 1930, Washington Luís, então presidente da República, foi deposto, preso e recolhido ao Forte de Copacabana. Por meio do HC24000, o STF apreciou a sua soltura. O Supremo não conheceu do pedido. Por se tratar de questão exclusivamente política, entendeu o STF, o tribunal não poderia se intrometer, cabendo à força “discricionária” e “revolucionária” se valer das medidas que julgasse mais adequadas aos propósitos da Revolução.

Tudo indica que a opção de não conhecer do pedido traduzia, por assim dizer, uma abstenção política da Corte – verdadeiro recuo estratégico desta diante da ação revolucionária em curso. Quando o STF apreciou o pedido, em 5 de novembro de 1930, Getúlio Vargas já se encontrava há dois dias na chefia do Governo Provisório. Na prática, o Supremo se recusava a lançar os olhos sobre a situação do principal rival simbólico da Revolução de 1930, Washington Luís.

Os motivos de tal atitude ganham contornos mais claros se lembrarmos que o STF vinha sendo, à época, bastante cauteloso em face do movimento revolucionário. Dias antes, os magistrados deliberaram sobre a necessidade de responder a uma missiva de Gabriel Bernardes – ministro interino da Justiça e Negócios Interiores da Junta Governativa Provisória. A Junta Provisória governou o país até que Getúlio Vargas assumisse a chefia do Governo Provisório em 3 de novembro de 1930.

A carta fazia conhecer à Corte que a Revolução havia triunfado. Circulavam, nesse mesmo período, boatos de que os revolucionários queriam realizar uma “reforma da justiça”. A ideia de fato se encontrava entre os planos de muitos adeptos da Revolução e, embora menos drástica do que tencionavam alguns revolucionários, veio resultar na edição de uma série de decretos com vistas a intervir na corte nos meses e anos subsequentes à Revolução de 1930 (Decreto nº 19.398/1930, Decreto nº 19.656/1931, Decreto nº 19.711/1931, Decreto nº 19.847/1931, Decreto nº 20.106/1931 e Decreto nº 23.055/1933).

Alguns anos mais tarde, já no Período Constitucional (1934-1937), casos que tratavam do tema da “segurança nacional” também colocariam a questão do conhecimento de ações durante períodos de anormalidade política em primeiro plano.

Rondava a Corte Suprema (nome dado ao STF pela Constituição de 1934), especialmente depois da decretação do estado equiparado ao de guerra em 21 de março de 1936 (decreto nº 702), a questão de se saber até que ponto ações protetivas de direitos fundamentais (como o habeas corpus), que envolvessem o tema da segurança nacional, poderiam ser “conhecidas” pelo tribunal.

Mais de uma linha decisória se formou no tribunal sobre o tema. A maioria dos magistrados, porém, entendia que a alusão, pelas autoridades ligadas ao Poder Executivo, à ideia de segurança nacional vedaria o conhecimento das ações por parte da Corte Suprema. Bento de Faria ia além. Entendia que a Corte não poderia conhecer de qualquer pedido de habeas corpus durante o estado equiparado ao de guerra – independentemente de seu conteúdo se relacionar ou não com a ideia de segurança nacional.

Em regimes autoritários ou semiautoritários, Cortes Supremas caminham na corda bamba. Suas decisões são proferidas sob o risco de intervenções diretas do governo autoritário em seu funcionamento. Além disso, riscos existenciais sérios podem assolar seus integrantes. Estratégias ligadas ao conhecimento de ações podem, nesses cenários, despontar como instrumento voltado ao desvio de rotas de colisão do tribunal com o governo. A autopreservação também é um valor a ser perseguido por Cortes Supremas em contextos de fragilidade democrática.

Os episódios históricos narrados neste breve ensaio deixam entrever que o STF nos primeiros anos da Era Vargas agiu de forma cautelosa quando o assunto era a oposição de direitos às atividades repressivas e persecutórias dos atores políticos ligados a Getúlio Vargas. Tais casos, além disso, jogam luz sobre o conteúdo político do exame de conhecimento de ações em momentos históricos politicamente conturbados. Também eles evidenciam certa tendência elusiva da Corte quando o assunto era a proteção de direitos fundamentais. Omissão, anuência e estratégia são palavras que perfazem, a um só tempo, o conteúdo multiforme de atuação do STF nesse momento de nossa história constitucional.logo-jota

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