Fernando Fontainha

Do latim vocare, o termo “vocação” ganhou seu primeiro emprego prático na necessidade de justificação da opção clerical. Como explicar o engajamento de longo prazo em uma ocupação que implica no abandono de uma vida sexual, familiar e patrimonial. Como dar sentido a uma vida de restrições, senão pelo chamado divino? A voz de Deus, neste caso, alude à primazia da contrapartida cultural ou simbólica sobre a material ou financeira.
Apesar da análise weberiana sobre a reapropriação luterana da vocação, o termo chega aos tempos modernos bastante operacional, e se estende para muito além da carreira eclesiástica. Muitas são as profissões que organizam suas hierarquias tendo como um dos critérios fortes a vocação. Estamos falando de um critério forte a ponto de perenizar um conjunto de subjetividades como elementos de um padrão de excelência profissional. Várias são as atividades onde se identificam os atores “fora da curva” por este critério.
Geralmente estas características, percebidas como inatas e estáticas, não são mais associadas diretamente à uma origem divina, mas à capacidade individual de reproduzir os valores subjetivos de uma instituição. É assim com os militares, os religiosos, os políticos e, é claro, os juízes.
Desta forma, uma série de valores postulados pela instituição são projetados como subjetividades possivelmente presentes em alguns de seus membros. No caso da magistratura, falamos de subjetividades como senso de equidade, sentimento de justiça, imunidade à solicitações, reserva moral e imparcialidade. Todas características sentidas como expressão da missão cultural da instituição e facilmente atribuíveis a um de seus membros. Na ausência de qualquer meio objetivo de sua mensuração, sua única utilidade prática é o reforço de velhos padrões de reprodução de elites judiciais.
O problema é que esta perversa hierarquização não ocorre em prejuízo da maioria dos magistrados da base da carreira, que terão forte obstáculo profissional por conta deste arbitrário critério. Ela ocorre em prejuízo de todo e qualquer cidadão que eventualmente precise de um magistrado real, dotado de habilidades e competências bastante objetivas, tais como: saber conduzir uma audiência, inquirir uma testemunha, proferir uma decisão, coordenar o trabalho de assessores e estagiários, gerir uma serventia judicial.
Porque eu digo isto? Em magistraturas como a brasileira, de tipo burocrático, o concurso público é a porta de entrada privilegiada na carreira. À exceção do quinto constitucional e das nomeações para os tribunais superiores, a imensa maioria dos juízes brasileiros é recrutada por concurso público. Uma vez que é impossível – para além de indesejável – projetar um processo seletivo que averígue quais candidatos são mais “vocacionados”, ficamos com um que tente hierarquizar suas habilidades e competências por meio de notas, como nos testes escolares. Como se tratam de provas “de Direito”, todos dormem tranquilos pois se tornarão magistrados no Brasil os melhores juristas técnicos, e chegarão no topo de seus tribunais aqueles que além de excelência técnica, apresentarem a tal “vocação”. Mas, como ocorre o tal concurso?
Muito embora o CNJ venha progressivamente uniformizando algumas normas relativas ao recrutamento judicial, cada tribunal brasileiro é autônomo para organizar seus próprios concursos. Se pode, assim, falar em um tipo ideal – uma espécie de “concurso modelo” – de concurso de magistratura no Brasil dos últimos 10 anos, que teria as seguintes características gerais:
1) Muitos milhares (por vezes mais de dez mil) de candidatos concorrem a poucas dezenas de vagas;
2) Eles são inicialmente podados por uma primeira fase de provas de múltipla escolha, cuja elaboração e correção o tribunal terceiriza para entidade privada especializada em provas de múltipla escolha. Os muitos milhares se tornam poucas centenas após esta etapa.
3) Estas poucas centenas de candidatos são então submetidos à uma série de provas discursivas, geralmente uma série de questões de cada matéria, a serem respondidas em poucas linhas. A partir desta fase o tribunal toma diretamente para si a elaboração e a correção das provas, sendo as bancas compostas majoritariamente por seus membros, e minoritariamente por convidados dos seus membros.
4) Em seguida costuma seguir para a prova oral um número de candidatos muito próximo – por vezes exatamente igual – ao número de vagas disponíveis. Não é incomum serem aprovados menos candidatos que o número de vagas.
5) O tempo de exercício profissional exigido pode ser realizado em cursos preparatórios que oferecem também diplomas de pós-graduação em Direito.
6) A aprovação no concurso não implica em período probatório real, ou mesmo em formação inicial mandatória ao ingresso na carreira. A aprovação no concurso é o que vitalicia um indivíduo na magistratura brasileira.
A menos que se considere que é nos cursinhos preparatórios que circulam os valores fundamentais da instituição judicial, ou as competências e habilidades de um bom juiz, parece razoável afirmar que a única certeza que o cidadão brasileiro pode ter é que um magistrado iniciante sabe o Direito necessário para responder a questões de múltipla escolha, antecipar as expectativas de uma banca por escrito, e demonstrar boa atitude e controle emocional em situação de prova oral.
Ao longo da carreira, na prática, o juiz pode ir aprendendo a ser juiz? Claro! Se isto acontecer, sorte do cidadão. No entanto, os critérios subjetivos da “vocação” e os objetivos da “produtividade” são os únicos disponíveis ao jovem que quer saber quais boas práticas deve cultivar para ascender legitimamente na carreira. Long history short, a elite local aponta os “mais justos” e a elite central aponta os “mais rápidos”.
Como acadêmico interessado no judiciário, por sua importância no Brasil contemporâneo, creio me caber o dever aparentemente incendiário de explicitar pontos de tensão cuja discussão é urgente, tanto para a sociedade como um todo, quanto para a instituição judiciária.
Se algum ônus propositivo me pesa sobre os ombros, é aquele de apontar a incongruência do modelo atual, que merece ser repensado a partir de mais sinergia entre a faculdade de Direito, o mercado profissional, a preparação, a formação inicial e o processo de vitaliciamento. Como fazer isso? É um debate que merece entrar nas pautas prioritárias da sociedade como um todo, e da instituição judiciária.
Afinal, os juízes que queremos são os que a República prepara, seleciona e forma para atuar em seu nome, ou os concurseiros que se digladiam pelas “vantagens eventuais”?
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JOTA

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