Maria Virginia Mesquita Nasser

Patrícia Sampaio

Ao final de dezembro de 2021 foi promulgada a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14273.htm">Lei 14.273/2021</a>, que já está conhecida como o Novo Marco Legal das Ferrovias. A lei inaugura mais um capítulo da regulação do setor, adicionando-lhe nova camada geológica. Entretanto, as eras de cada modelo parecem se adicionar com bastante rapidez e alguma falta de coordenação. Sobretudo, a recente reforma regulatória pode, se não for adequadamente regulamentada e implementada, fazer o país perder mais uma oportunidade de <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/regulacao-inovacao/marco-das-ferrovias-abre-espaco-para-inovacao-em-outros-setores-11042022">promover a necessária ampliação da malha</a>.
Em breve histórico, ao final nos anos 1990, as principais ferrovias até então implantadas no Brasil foram privatizadas e passaram a operar sob o regime de concessão verticalizada, em que o operador da ferrovia explora tanto a infraestrutura ferroviária (trilhos, pátios, estações) como o serviço de transporte na malha. Inicialmente, apenas concessionárias desse serviço podiam fazer circular carga na malha ferroviária — própria ou de outras concessionárias (nesse segundo caso, mediante tráfego mútuo ou, subsidiariamente, direito de passagem). Havia, por vezes, dupla verticalização, com as concessionárias dedicando boa parte da capacidade disponível em suas malhas para transportar cargas de seus próprios acionistas. O regime de concessões estabelece alguma forma de controle de teto tarifário e proteções ao usuário dependente do modo ferroviário.
A privatização dos anos 1990 promoveu investimentos vultosos, propiciou significativo aumento de movimentação de carga nos trechos concedidos, mas não gerou a expansão da malha. Ao contrário, alguns trechos foram desativados, por serem considerados antieconômicos ou inviáveis. O diagnóstico, portanto, é que se fazem necessários incentivos para atrair investimentos em projetos de expansão. As tentativas da última década, no entanto, se frustraram.
Em 2012, o Governo Federal ensaiou a implementação de um novo modelo, por meio do Programa de Investimento em Logística (PIL). O PIL apostava na desverticalização do setor, prevendo a prestação do serviço de transporte ferroviário dissociado da titularidade do direito de explorar as novas infraestruturas a serem construídas. Foi criada a figura do operador ferroviário independente (OFI), que poderia, sem ser titular da infraestrutura, transportar carga pela malha das concessionárias de ferrovias, mediante remuneração (pagando uma tarifa de acesso). Essa figura se amoldaria especialmente a agentes que tivessem apetite para prestar serviços de transportes oferecendo soluções integradas de logística, unindo diferentes modalidades. Todavia, o sucesso foi restrito: até onde foi possível obter informações, até o momento apenas três empresas se qualificaram para serem operadores ferroviários independentes.<a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a>
Para a construção de novas linhas, a estratégia do PIL confiava em empresas contratadas pelo Governo Federal mediante licitação para construção e operação da nova infraestrutura. O Governo reduziria o risco de demanda — visto como o grande entrave para a expansão — assegurando ao concessionário da infraestrutura compra de toda a capacidade da linha férrea greenfield, uma vez que estivesse construída. Ocorre que, em um cenário de grande restrição fiscal, ninguém no mercado comprou o risco governamental para investimentos tão vultosos.
Por volta de 2015, com o país mergulhando em uma grave crise fiscal e econômica, teve início o longo processo de prorrogação antecipada das concessões ferroviárias, naquele momento ainda sem autorização legislativa expressa, que viria apenas dois anos mais tarde (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13448.htm">Lei 13.448/2017</a>). A ideia central da iniciativa consistia em garantir às concessionárias o direito à prorrogação de suas concessões antes de se chegar ao final do prazo dos contratos, em contrapartida pela realização de novos investimentos na expansão das malhas. A prorrogação também seria aproveitada para substituir os contratos de concessão e arrendamento dos anos 90 por documentos mais detalhados, que indicariam com clareza obrigações de investimentos, regras para reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, matriz de riscos, penalidades por descumprimento contratual, níveis de serviço que deveriam ser alcançados etc. Quem acompanha o setor sabe o esforço imenso que os setores público e privado investiram nesse processo, com direito a aprovação de lei autorizativa, defesa em face de ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADI 5991), audiências e consultas públicas, e atuação de órgãos de controle.
Paralelamente, em 2015, foi lançado o PIL II, que confiou na volta ao modelo de concessão verticalmente integrada (outorga da infraestrutura  e da prestação de serviço de frete ferroviário por licitação a um mesmo concessionário) para a expansão da malha. Passados mais sete anos, no entanto, pouco se avançou.
Eis que, ainda não concluídos os processos de prorrogação de todas as concessões existentes, tem-se nova alteração legislativa, primeiramente com a edição da Medida Provisória 1.065, de 31 de agosto de 2021, e, finalmente, em 23/12/2021, às vésperas do final do ano, com a promulgação da Lei 14.273/2021.
O <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/novo-marco-ferroviario-seguranca-juridica-durante-a-vigencia-da-mp-1-065-2021-04102021">novo marco legal</a> introduz no direito brasileiro o regime “privado” de prestação do serviço de transporte ferroviário. Nele, a empresa autorizada a operar o trecho poderá explorá-lo por até 99 anos, prorrogável por iguais períodos, sem reversibilidade dos ativos ao final da concessão, com liberdade de preços e sem exigências normativas garantidoras de acesso de terceiros (para as ferrovias privadas, o preço do compartilhamento de infraestrutura será objeto de livre acordo entre os interessados).
Nos debate em torno da introdução do regime privado das ferrovias esteve, por vezes, o argumento da necessidade  de implementação (ou recuperação) de trechos férreos curtos que ligariam o ponto de embarque de cargas até a malha férrea principal (as chamadas short lines, bastante comuns nos Estados Unidos).
Ocorre que o novo marco regulatório brasileiro permite amplo uso desse regime, sem separar o que seriam ferrovias estruturantes e o que seriam short lines. Aliás, não há qualquer restrição legal para que ferrovias nacionais sejam doravante construídas e operadas em regime de autorização, seja de extensão, tonelagem transportada ou faturamento anual. E é aí que reside o risco de que a regulação saia dos trilhos: ao invés de promover a apregoada expansão do setor, é possível que o regime de autorização, não só seja incapaz de propiciar a concretização de novos investimentos, como venha até mesmo a facilitar práticas de fechamento de mercado, inibindo a concorrência no transporte ferroviário. Também se poderão experimentar práticas anti-isonômicas entre ferrovias concedidas e autorizadas, e pleitos de reequilíbrio por parte de titulares de infraestrutura preexistente. Vejamos.
Infraestruturas ferroviárias ostentam as clássicas características de monopólio natural, para as quais a literatura oferece como remédios, em regra, regulação tarifária (Pinheiro e Saddi, 2005, p. 283) e exigências de acesso não discriminatório (Salomão Filho, 2008)<a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a>. No entanto, no regime autorizado estabelecido em lei, haverá liberdade de preço e negociação de compartilhamento de infraestrutura.
De outro lado, o regime previsto acabou tomando emprestado para si prerrogativas típicas da operação de infraestrutura em regime público, como o direito de desapropriar áreas privadas de terceiros para implementar a infraestrutura, mas não traz elementos que são típicos da disciplina dos serviços públicos, como exigências de regularidade, universalidade e modicidade tarifária.
O novo marco, ao impor pouquíssimos requisitos à apresentação dos pedidos de autorização, gerou uma enxurrada de requerimentos, alguns para trechos férreos com mesmo par de origem-destino<a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a>. Essa situação, ao contrário de fomentar investimentos em novas linhas, pode inibi-los em alguns casos, pois uma empresa autorizada dificilmente se animaria a arcar com os altos custos de construir um trecho sabendo que outra também poderá fazê-lo. O que poderiam fazer? Combinar quem faz o quê? Não! Acordos entre concorrentes são ilícitos no direito brasileiro. No entanto, a duplicação de investimentos em mercados caracterizados como monopólios naturais também enseja preocupação — não é esperado que agentes racionais embarquem nessa aventura. Uma alternativa razoável é considerar que as empresas estejam se apressando em garantir trechos autorizados, para, no futuro, decidirem se irão realmente executá-los. Ou seja, existe risco de que parte relevante desses investimentos simplesmente não aconteça.
Além disso, autorizações que ensejarem concorrência de ferrovias em regime privado com trechos (ferroviários ou rodoviários) concedidos em regime público deveriam gerar reequilíbrio econômico-financeiro das concessões originalmente outorgadas. Seria importante, nesse sentido, que o Poder Executivo federal não houvesse vetado as menções expressas a direito a reequilíbrio contidas no projeto de lei que deu origem à Lei 14.273/2021.
É verdade que a nova lei trouxe uma possibilidade de que a concessionária incumbente que se veja em concorrência com uma ferrovia autorizada requeira a sua transformação em regime privado (art. 64), mas até mesmo definir que ferrovias são concorrentes e quais não são pode ser complexo, na medida em que mesmo o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE já entendeu que ferrovias com diferentes pares de origem-destino podem concorrer por corredores logísticos de escoamento de carga.<a href="#_edn4" name="_ednref4">[iv]</a>
Além disso, a lei nada mencionou sobre o fato de que ferrovias autorizadas poderão exercer alguma rivalidade com rodovias concedidas, a depender da carga e da distância. Embora o governo brasileiro tenha sustentado, em situações pretéritas, que a introdução de nova infraestrutura de transporte não geraria direito de reequilíbrio econômico-financeiro, sabe-se que essa postura não incentiva a atração de investimentos de longo prazo de maturação, nem é aderente às melhores práticas de alocação de riscos em contratos de concessão, pois atribui ao investidor privado risco totalmente alheio à sua capacidade de gestão ou prevenção.
Ouve-se por vezes no mercado o argumento de que esse novo modelo de ferrovias privadas copia o norte-americano, mas essa alegação merece ressalva. As ferrovias americanas, embora não sejam operadas em regime que se aproxime ao nosso modelo de concessão de serviço público, sofrem maior ou menor incidência de regulação conforme o seu tamanho e relevância (as chamadas vias de Classe I, II ou III, que são definidas por faturamento anual), e conforme estejam ou não submetidas a regime concorrencial.
Em síntese, o novo regime de autorização ferroviária pode vir a trazer alguma expansão da malha, mas essa possibilidade depende de a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) fazer análise adequada de viabilidade de cada projeto que vier a ser solicitado e, sobretudo, de que a União Federal não se despoje do seu dever de  planejamento e indução da expansão da malha ferroviária.
Enfim, a nova lei pode destravar os investimentos tão necessários na expansão da malha, em especial para ferrovias de pequeno e médio porte (aquelas que seriam efetivamente short lines ou trechos cuja vocação seja predominantemente o transporte de carga própria), mas tem também potencial de criar situações anti-isonômicas, que merecem atenção pela União Federal, como poder concedente, e pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/antt">ANTT</a>, na qualidade de agência reguladora.
Não deveríamos, mais uma vez, perder a oportunidade de avançar na construção de um modelo sólido e eficiente de regulação, que efetivamente promova a tão necessária expansão da malha ferroviária. Enquanto isso não acontece, o país perde em competitividade na seara internacional. Segundo o Global Competitiveness Index do Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupa a 71ª posição entre 141 países, sendo que a situação da infraestrutura de transporte puxa a nota do Brasil para baixo, na qual somos o 85º do ranking (Global Competitiveness Index, 2019).<a href="#_edn5" name="_ednref5">[v]</a>
Além disso, com a demora na expansão da falha ferroviária nacional, perde o meio ambiente, já que a ferrovia é potencialmente menos poluente do que outros modos de transporte, com a possível ressalva do hidroviário. Mais grave ainda, perdem-se vidas em acidentes rodoviários que poderiam ser evitados caso as cargas típicas do modo ferroviário tivessem malha para serem escoados.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> São as empresas Tora Logística Armazéns e Terminais Multimodais S/A,  Geoterra Empreendimentos e Transportes S/A, e GME4 do Brasil Participações e Empreendimentos S/A, cujas outorgas foram deferidas, respectivamente, pelas Resoluções 5027/2016, 5222/2017 e 5282/2017-DG/ANTT/MT.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> SADDI, Jairo; PINHEIRO, Armando Castelar. Direito, economia e mercados. Rio de Janeiro: Campus, 2005. Aludindo ao setor de telecomunicações, mas em passagem de todo aplicável ao tema das ferrovias autorizadas, Calixto Salomão Filho observa que “Livre negociação e livre acesso são conceitos de difícil compatibilização, especialmente quando um dos agentes é monopolista. Enquanto o primeiro pressupõe a disponibilidade pelo detentor da concessão das redes, o segundo a nega. Na verdade, a compatibilização só seria possível através da admissão de bom nível de dirigismo contratual” (SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 71)
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> A imprensa noticiou a outorga de autorizações para ferrovias com mesmo par de origem-destino e para a mesma área de influência, embora com compatibilidade locacional, como autorizações conferidas à Rumo e à VLI para trechos entre Água Bruta e Lucas do Rio Verde, ambos em Mato Grosso. Cf. Silveira, Tales. Ministério da Infraestrutura autoriza Rumo e VLI a construir ferrovias privadas em uma mesma área. Agência Infra, 06/01/2022, disponível em <a href="https://www.agenciainfra.com/blog/ministerio-da-infraestrutura-autoriza-rumo-e-vli-a-construir-ferrovias-privadas-em-uma-mesma-area/">https://www.agenciainfra.com/blog/ministerio-da-infraestrutura-autoriza-rumo-e-vli-a-construir-ferrovias-privadas-em-uma-mesma-area/</a>. Acesso em 10/04/2022. Esclareça-se que, na vigência da MP 1065/2021, a competência para outorga das autorizações era do Minfra, tendo sido transferida para a ANTT pela Lei 14.273/2021.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[iv]</a> Como apontou o então Conselheiro Luis Schuartz, “do fato de cada ferrovia possuir um traçado próprio, não se pode inferir necessariamente que inexiste relação de competição entre as malhas, pois as condições – incluindo as comerciais – vigentes para o transporte de um determinado ponto de origem a um determinado ponto de destino podem ser tais que façam duas ou mais ferrovias aparecerem, para um conjunto não desprezível de demandantes, como canais de transporte substituíveis entre si” (voto proferido no Ato de Concentração 08012.005747/2006-21).
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[v]</a> Disponível em <a href="https://www3.weforum.org/docs/WEF_GCI4_2019_Profile_Brazil.pdf">https://www3.weforum.org/docs/WEF_GCI4_2019_Profile_Brazil.pdf</a>. Acesso em 10.abri.2022.

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JOTA

Com a promulgação do “Novo Marco Legal das Ferrovias”, como fica o futuro do setor ferroviário?

Entre a revolução e o descarrilhamento, para onde vai a regulação do setor ferroviário?

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