Carolina Costa Ferreira

Vera Malaguti Batista<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> nos provoca ao dizer que “o que o pensamento crítico vai propor depois do grande encarceramento parece ser a principal questão política dos nossos tempos”. No campo do ensino jurídico, a relação entre encarceramento em massa e a aprendizagem das ciências criminais parece ser tão óbvia quanto oculta em sala de aula<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Em primeiro lugar, é importante indicar o que já se sabe: o Brasil possui a 3ª maior população carcerária do mundo<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, com índices de superlotação altíssimos<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> que não arrefeceram em tempos de pandemia. Além disso, o uso das prisões concentra-se em 5 tipos de crimes<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>: tráfico de drogas, roubo, crimes ligados ao Estatuto do Desarmamento, furtos e homicídios, nesta ordem –, enquanto, a cada ano, em média, 7 novas leis penais são publicadas no Brasil<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Em meio a este cenário já muito conhecido por quem estuda as ciências criminais, o ensino do Direito, principalmente nas universidades públicas e nas melhores universidades privadas, segue seu caminho historicamente definido: formar “lideranças”, grandes nomes para a política, profissionais engajados que atuem diretamente no sistema de justiça criminal, com uma dogmática pouco preocupada com os problemas brasileiros.
Considerando-se o acúmulo de estudos sobre a importância de um pensamento crítico em relação às ciências criminais<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, o atual ensino jurídico de Criminologia, Política Criminal, Direito Penal e Processo Penal pode nos apontar algumas responsabilidades e desafios para a indicação dos problemas e o reposicionamento propositivo em relação ao futuro do ensino das ciências criminais.
O ensino das ciências criminais, nos cursos de Direito, é essencialmente teórico e afastado da prática: geralmente dividido em quatro disciplinas, sendo duas de Teoria Geral (do Crime e da Pena) e duas de Parte Especial, a maioria dos currículos dos cursos jurídicos não contempla, de forma obrigatória, as disciplinas de Criminologia ou de Legislação Penal Especial<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Não há, na maioria dos cursos jurídicos do Brasil, uma disciplina (obrigatória ou optativa) sobre Processo Legislativo e Política Criminal, por exemplo, que permita a discussão dos processos de elaboração de leis penais e processuais penais que resultem em encarceramento em massa.
De forma geral, o estudo do Processo Legislativo é negligenciado nos cursos jurídicos, como se à/ao jurista importasse, apenas, a lei publicada, ignorando a arena do Legislativo, com suas complexidades e impactos à manutenção do encarceramento em massa no país.
Além disso, o debate sobre a elaboração legislativa toma o espaço dos “especialistas”, que são ouvidos pelo Congresso Nacional quando há, por este, necessidade e comodidade, sem que as universidades criem uma agenda de pesquisa, com observatórios de política legislativa (que reúnam ações de ensino, pesquisa e extensão) que resultem em propostas de contenção da atual situação carcerária.
É importante rediscutir a formação curricular, com o aumento de disciplinas optativas que permitam a escolha mais orientada à definição de uma (ou de mais) carreira jurídica ou acadêmica; além disso, os atuais desafios do Direito Penal e do Processo Penal trarão a necessidade de aprofundamento em áreas não necessariamente novas, mas que têm ganhado certa complexidade, como é o caso do Direito Penal Econômico, além do Direito Digital e da Teoria Probatória no Processo Penal.
Tais temas são mais aprofundados na prática forense, nas discussões na pós-graduação, mas batem à porta dos estudantes de Direito, e seriam excelentes aliados na tentativa de aproximação do ensino jurídico à formação de profissionais e acadêmicas protagonistas em seus campos de estudo e trabalho.
Para que haja liberdade na escolha de disciplinas optativas, a perspectiva crítica precisa estar na base da aprendizagem das ciências criminais; nesse sentido, a disciplina de Criminologia parece ser fundamental para o afastamento de estereótipos e preconceitos que circundam o sistema de justiça criminal, além de permitir compreender as permanências estruturais do controle dos corpos das pessoas negras, sobretudo homens, jovens, pobres, e das mulheres negras, encarceradas por tráfico de drogas.
<blockquote class="jota-article__eye">Além disso, a disciplina de Criminologia, com toda a potência dos atuais estudos sobre suas matrizes decoloniais<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, pode estabelecer uma sala de aula inclusiva, aberta ao diálogo e ao avanço do campo.</blockquote>
Em meio às divulgações de fotos difamantes do corpo morto de Lázaro Barbosa, morto em 28 de junho de 2021 com “pelo menos 38 tiros”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> após uma “caçada” amplamente divulgada pela mídia nacional após ter praticado vários crimes graves, recebi um pedido de uma aluna: “Professora, queria tanto uma aula de Criminologia hoje... está difícil ler as notícias”.
A mensagem da aluna me fez perceber o quão potente é a sala de aula, quando há o espaço para escuta, fala e elaboração. Segundo bell hooks, a presença de professora e alunas é igualmente importante para que uma sala de aula potente possa ser vivida<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
E um pedido como esse, num momento de emergência penal, não poderia ser ignorado: realizamos uma aula aberta de Criminologia que reuniu mais de cinquenta pessoas para a análise do “caso Lázaro” sob as mais diversas perspectivas: a criminalização das condutas, a resposta do Estado, as políticas de segurança pública, o racismo religioso, a sensação de (in)segurança da população, a mídia reprodutora de estereótipos, a produção legislativa oportunista<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>.
Um caso que produziu angústia aos estudantes, que queriam desarmar argumentos que ocuparam suas redes sociais, seus contatos com a família, com aqueles que comemoraram a morte de alguém.
Isolar o debate das ciências criminais em um campo teórico, dogmático, asséptico e eurocêntrico talvez seja o grande erro do ensino jurídico brasileiro atual. Entendo a razão, pois há que se ter coragem para o enfrentamento destas questões, que são tão cotidianas quanto complexas e relevantes. Se estudantes de graduação não entenderem que o espaço da sala de aula é seguro para questionamentos, discussões e diferentes perspectivas, não saberão se articular em um ambiente forense, ainda repleto de injustiças em sua própria composição<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>. É importante que estudantes visualizem as falhas do sistema e se sintam suficientemente encorajados a disputar conceitos dogmáticos, processuais, criminológicos ou político-criminais que ajudem a reduzir a situação de encarceramento em massa.
Relembrar o grande paradoxo das ciências criminais – o uso da prisão versus a defesa da liberdade – a partir de exemplos como Esperança Garcia e Luiz Gama pode ser uma ponte interessante da História do Direito com as ciências criminais.
Usar pesquisas sobre a seletividade da política de drogas em ações de extensão, como as Clínicas de Direitos Humanos, para a propositura de Habeas Corpus Coletivos, pode trazer concretude para a mudança de olhares. Usar referências literárias para trabalhar as funções da pena, do cárcere, de um julgamento justo e do perigo de uma história única pode ilustrar, muito mais do que um manual, as funções do Direito Penal.
Um ensino jurídico comprometido com a realidade das ciências criminais pode articular as ações práticas e conhecimento teórico, no centro da cidade, ao sul do hemisfério, com os pés descalços.
O estudo da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, da FDUSP sobre a primeira infância em situação de rua no centro de São Paulo mostra potencialidades neste “olhar em volta” em uma Faculdade de Direito<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
Também são exemplos potentes as ações das Promotoras Legais Populares, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e organizadas em outras faculdades de Direito em todo o Brasil<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>, e as ações do Consórcio Maria da Penha, em parceria com a Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto, com cursos sobre gênero e direito que ganharam repercussão nacional<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>, com discussões teóricas e casos práticos.
O maior desafio, talvez, seja sair do mosteiro e aprender com a rua: celebrar as câmeras ligadas e a preparação para o debate livre, honesto e respeitoso; olhar para a/o aluna/o como ser em formação, mas com sua história e contexto que devem ser levados em consideração para a preparação da aula; definir o protagonismo em sala de aula com o uso de textos, recursos digitais, visuais e musicais, de forma a permitir uma experiência fundada no cuidado; planejar, avaliar e reavaliar, sempre.
Como diz Mia Couto, em “E se Obama fosse africano?”, “mais do que uma geração tecnicamente capaz, nós necessitamos de uma geração capaz de questionar a técnica. Uma juventude capaz de repensar o país e o mundo. Mais do que gente preparada para dar respostas, necessitamos de capacidade para fazer perguntas”<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>.
As premissas virão de livros, pesquisas, ações de extensão. As perguntas virão dos pés descalços, da rua à frente da universidade, das dificuldades da sala de aula em tempos de pandemia. Cabe às professoras, aos professores de ciências criminais não evitar, mais, as perguntas.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BATISTA, Vera Malaguti. Depois do grande encarceramento. In: ABRAMOVAY, Pedro; BATISTA, Vera Malaguti. Depois do grande encarceramento: seminário. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 34.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> O debate foi provocado em evento realizado pela Comissão de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, organizado pela Profa. Maria Paula Dallari Bucci, em que os temas “Encarceramento em massa, giro punitivo e ensino jurídico” e “Crimes do colarinho branco e ensino jurídico” foram discutidos por renomados professores do campo das ciências criminais.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Dados do World Prison Brief – Instituto for Crime and Justice Policy Research (ICPR):  &lt;<a href="https://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All">https://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All</a>&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Recentemente, após a divulgação de dados do CNJ, comemorou-se a “redução da superlotação” de 67,5% para 54,9%: &lt;<a href="https://www.cnj.jus.br/novos-dados-do-sistema-prisional-reforcam-politicas-judiciarias-do-cnj/#:~:text=De%20acordo%20com%20o%20levantamento,%25%20para%2054%2C9%25">https://www.cnj.jus.br/novos-dados-do-sistema-prisional-reforcam-politicas-judiciarias-do-cnj/#:~:text=De%20acordo%20com%20o%20levantamento,%25%20para%2054%2C9%25</a>&gt;.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-ensino-juridico-no-bicentenario-da-independencia-08042021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-ensino-juridico-no-bicentenario-da-independencia-08042021</a>&gt;.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> FERREIRA, Carolina Costa. A política criminal no processo legislativo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> O campo criminológico crítico, liderado pelas Professoras Vera Regina Pereira de Andrade, Vera Malaguti Batista, Nilo Batista, Ela Wiecko Volkmer de Castilho, Carmen Hein de Campos, Camila Prando, Ana Gabriela Mendes Braga, Maíra Machado, Marta Machado, Felipe Freitas, Manuela Abath, Gabriel Divan e tantas outras, nos traz aportes teóricos e práticos sobre a interlocução entre dogmática e criminologia, entre política criminal e dogmática, entre criminologia e processo penal.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> A necessidade de uma disciplina de Legislação Penal Especial, dissociada das demais da Parte Especial do Código Penal, também é algo que suscita discussões entre professoras de Ciências Criminais, que propõem a aprendizagem do Direito Penal, sobretudo, de forma mais sistêmica.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> SOUZA, Luanna Tomaz de; PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. É possível compatibilizar abolicionismos e feminismos no enfrentamento à violência cometida contra as mulheres? In: SEVERI, Fabiana Cristina; CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; MATOS, Myllena Calasans de. Tecendo fios das críticas feministas ao Direito no Brasil – II. Ribeirão Preto: FDRP/USP, 2020, p. 74-104.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.metropoles.com/distrito-federal/lazaro-barbosa-foi-morto-com-pelo-menos-38-tiros-diz-secretario">https://www.metropoles.com/distrito-federal/lazaro-barbosa-foi-morto-com-pelo-menos-38-tiros-diz-secretario</a>&gt;.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 17-18.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Usando como fundamentação o caso Lázaro Barbosa, foi proposto o PL nº 2.213/2021, estabelecendo a obrigatoriedade do exame criminológico: &lt;<a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2029361&amp;filename=PL+2213/2021">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2029361&amp;filename=PL+2213/2021</a>&gt;.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Segundo dados da AJUFE, mulheres negras ocupam 1,8% da magistratura nacional. O CNJ, no Perfil Sociodemográfico da Magistratura Brasileira, não realizou a intersecção de dados de raça e classe, o que foi objeto de Pedido de Providências da AJUFE, para a produção do dado: &lt;<a href="https://www.jota.info/justica/mulheres-negras-magistratura-18042018">https://www.jota.info/justica/mulheres-negras-magistratura-18042018</a>&gt;.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://cdhluizgama.com.br/primeira-infancia-maternidade/">https://cdhluizgama.com.br/primeira-infancia-maternidade/</a>&gt;.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Disponível em: &lt;<a href="http://plpunb.blogspot.com/">http://plpunb.blogspot.com/</a>&gt;.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://youtu.be/wRM9UaEjfuY">https://youtu.be/wRM9UaEjfuY</a>&gt;.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? são Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 44.

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JOTA

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Ensino jurídico e ciências criminais: sair do mosteiro e aprender com a rua

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