Fábio Lara Aspis

Maria Luiza Gorga

<p>As questões regulatórias do setor de<em> healthcare</em> encontram-se em voga, com iniciativas em diversos ramos do Direito. Os ensaios clínicos, contudo, são um ponto específico e bastante complexo, por vezes negligenciado. À luz das novas discussões sobre a proteção de dados pessoais, buscamos desenvolver abaixo alguns aspectos da questão.</p>
<h3>Ensaio clínico</h3>
<p>De acordo com a RDC nº 09/15, o ensaio clínico consiste em uma pesquisa conduzida em seres humanos com o objetivo de descobrir ou confirmar os efeitos clínicos e/ou farmacológicos e/ou qualquer outro efeito farmacodinâmico do medicamento experimental e/ou identificar qualquer reação adversa ao medicamento experimental e/ou estudar a absorção, distribuição, metabolismo e excreção do medicamento experimental para verificar sua segurança e/ou eficácia<a href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>.</p>
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</ul>
<p>A realização deste tipo de procedimento envolve diversas etapas e <em>players.</em> Como agentes podem ser elencados o (i) Centro de Pesquisa, investigador principal e instituição de saúde, pública ou privada; (ii) Patrocinador, empresa do ramo farmacêutico financiadora da pesquisa clínica; (iii) Organização Representativa para Pesquisa Clínica (ORPC), intermediário quando recebe dados fornecidos pelo centro de pesquisa; (iv) Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), quando recebe relatos de eventos adversos; (v) Laboratório Central, quando recebe pelo centro de pesquisa amostra biológica para processamento e avaliação; (vi) Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); e a (vii) Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)<a href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>.</p>
<p>Referido procedimento consiste em atividade de importância fundamental no desenvolvimento da ciência médico-farmacêutica, e a coleta de dados envolvida nestes diz respeito a inúmeras informações pessoais e íntimas acerca dos indivíduos participantes, sobretudo no que diz respeito à saúde destes. Por esta razão, todos os dados dos ensaios, quando divulgados, são tratados de forma anônima, não sendo possível a sua individualização.</p>
<h3>Sigilo médico</h3>
<p>A necessidade de sigilo das informações relativas aos ensaios clínicos envolvendo seres humanos é resguarda e prevista pela Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que prevê como exigência a confidencialidade, privacidade e proteção da imagem dos indivíduos envolvidos nos procedimentos.</p>
<p>Ainda, mais do que uma exigência prevista na Resolução acima, o sigilo (ou segredo) profissional ligado a determinadas atividades é considerado matéria de ordem pública, com a proteção constitucional da intimidade e relevância o suficiente para que sua violação constitua crime, conforme disposto pelo Código Penal, o qual prevê ser delito aquele que, sem justa causa, revele segredo de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão<a href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>.</p>
<p>A razão desta proteção especial é o fato de que, durante a vida em sociedade, os indivíduos deparam-se com questões de cunho pessoal que só podem ser resolvidas mediante o auxílio de terceiros tecnicamente qualificados – in casu, os profissionais da saúde, inclusive em pesquisa –, os quais então passam a ser confidentes do indivíduo<a href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>, sendo este imperativo do sigilo tão forte que deve prevalecer até mesmo em situações nas quais o profissional tenha conhecimento da prática de atos ilícitos<a href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a>.</p>
<p>Contudo, há que se notar a expressão “sem justa causa” constante do tipo penal, a qual não é vazia, evidenciando que não é criminosa qualquer revelação de segredo, mas somente aquela que não possuir amparo legal, sendo assim sua presença uma excludente da antijuridicidade da ação.</p>
<p>Exemplos desta justa causa estão previstos, direta ou indiretamente, na própria legislação penal, como na obrigação do profissional de saúde em levar a conhecimento das autoridades o crime de ação pública de que tenha conhecimento em razão da função e que envolva o paciente como vítima<a href="#sdfootnote6sym" name="sdfootnote6anc">6</a>, a obrigatoriedade de quebra do sigilo profissional em casos de notificação de determinadas doenças<a href="#sdfootnote7sym" name="sdfootnote7anc">7</a>, e ainda o estado de necessidade, ou seja, a necessidade de salvação de um interesse contrário e cujo sacrifício não seja razoavelmente exigível.</p>
<p>Para além das excludentes penais, tem-se do Código de Ética Médica<a href="#sdfootnote8sym" name="sdfootnote8anc">8</a> - o qual integra o ordenamento em caráter infra legal –, que também administrativamente entende-se que o motivo justo torna legítima a divulgação do segredo – ou seja, a proibição, mesmo no âmbito específico da profissão, não é absoluta, sendo certo que deve respeitar limites que não se confundem com a simples consciência individual do profissional.</p>
<h3>Lei Geral de Proteção de Dados<a href="#sdfootnote9sym" name="sdfootnote9anc">9</a></h3>
<p>Em linha com o disposto anteriormente, os dados pessoais presentes em pesquisas envolvendo seres humanos devem necessariamente ser anonimizados (codificados) quando divulgados<a href="#sdfootnote10sym" name="sdfootnote10anc">10</a>. O responsável por esta divulgação é o Centro de Pesquisa, investigador principal que coleta, processa, anonimiza, classifica e transfere os dados a um patrocinador e arquiva os dados de estudo<a href="#sdfootnote11sym" name="sdfootnote11anc">11</a>.</p>
<p>A nova Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) tem como escopo o tratamento<a href="#sdfootnote12sym" name="sdfootnote12anc">12</a> de dados pessoais<a href="#sdfootnote13sym" name="sdfootnote13anc">13</a>, não dispondo, portanto, de dados anonimizados<a href="#sdfootnote14sym" name="sdfootnote14anc">14</a>. Desta forma, a partir do momento em que os dados tratados não podem mais ser identificados ou identificáveis, a LGPD não será aplicável.</p>
<p>Neste sentido, o ato normativo deverá ser observado para o momento em que são tratadas informações pessoais que identificam ou que tenham um potencial de identificar uma pessoa natural, ou seja, em atividades como as realizadas pelo Centro de Pesquisa, conforme as regras e princípios dispostos pela LGPD.</p>
<p>Para estes casos, por se tratar de dados pessoais sensíveis (dados de saúde), deverá ser coletado previamente à realização da pesquisa o consentimento específico e destacado para finalidades específicas<a href="#sdfootnote15sym" name="sdfootnote15anc">15</a>, que poderá ser traduzido pelo já existente Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)<a href="#sdfootnote16sym" name="sdfootnote16anc">16</a>, com as necessárias adaptações.</p>
<p>Dentre os aspectos que deverão estar presentes neste documento estão a (i) justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão utilizados na pesquisa; a (ii) explicitação dos possíveis desconfortos e riscos decorrentes da participação na pesquisa; o (iii) esclarecimento sobre a forma de acompanhamento e assistência a que terão direito os participantes da pesquisa; (iv) a garantia de que o participante poderá recusar-se a participar ou retirar seu consentimento; (v) garantia de manutenção do sigilo e privacidade dos participantes durante todas as fases da pesquisa; e a (vi) previsão de garantia de indenização em caso de eventuais danos decorrentes da pesquisa<a href="#sdfootnote17sym" name="sdfootnote17anc">17</a>.</p>
<h3>Conclusões e recomendações</h3>
<p><a name="_GoBack"></a> Conforme mencionado, a situação é merecedora de cuidado, já que o Controlador poderá estar submetido a riscos de violações à LGPD e/ou riscos criminais, caso não se adeque às citadas normativas e/ou não obtenha uma hipótese de tratamento que legitime a utilização das informações pessoais dos Titulares envoltos nos estudos clínicos.</p>
<p>Por isso, destaca-se a necessidade de criação de mecanismos seguros de tratamento de dados de pesquisas clínicas, controles e políticas internas, a produção de TCLE prévios adequados às regras da LGPD, cláusulas contratuais que resguardem e estabeleçam as responsabilidades e atividades dos diversos players da cadeia de estudos clínicos e a anonimização das informações sempre que possível.</p>
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<div id="sdfootnote1">
<p><a href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Art. 6, XII, da RDC 09/15.</p>
</div>
<div id="sdfootnote2">
<p><a href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> DALLARI, Annaluza Bolivar. Impactos da Nova Lei Geral de Proteção de Dados na Pesquisa com Seres Humanos. <a href="https://www.conjur.com.br/2018-nov-02/analluza-dallari-impactos-lgpd-pesquisa-seres-humanos">https://www.conjur.com.br/2018-nov-02/analluza-dallari-impactos-lgpd-pesquisa-seres-humanos</a> - Disponível em: 20/03/2019.</p>
</div>
<div id="sdfootnote3">
<p><a href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> Art. 154, do Código Penal.</p>
</div>
<div id="sdfootnote4">
<p><a href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> Notar que, deve haver um nexo causal entre a atividade e o segredo a ser guardado.</p>
</div>
<div id="sdfootnote5">
<p><a href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1980. Vol. 6. p. 261.</p>
</div>
<div id="sdfootnote6">
<p><a href="#sdfootnote6anc" name="sdfootnote6sym">6</a> “Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente:</p>
<p>(...)</p>
<p>II – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal”</p>
</div>
<div id="sdfootnote7">
<p><a href="#sdfootnote7anc" name="sdfootnote7sym">7</a> “Art. 269 - Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória:</p>
<p>Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.”</p>
</div>
<div id="sdfootnote8">
<p><a href="#sdfootnote8anc" name="sdfootnote8sym">8</a> “É vedado ao médico:</p>
<p>Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.</p>
<p>Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.”</p>
</div>
<div id="sdfootnote9">
<p><a href="#sdfootnote9anc" name="sdfootnote9sym">9</a> Lei nº 13.709/18</p>
</div>
<div id="sdfootnote10">
<p><a href="#sdfootnote10anc" name="sdfootnote10sym">10</a> Conforme dispõe o Manual de Orientação: Pendências Frequentes em Protocolos de Pesquisa Clínica, do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CNEP), “quando as informações do participante de pesquisa forem repassadas ao patrocinador ou a terceiros, deve-se cuidar para que os dados estejam anonimizados (codificados) a fim de garantir a privacidade”.</p>
</div>
<div id="sdfootnote11">
<p><a href="#sdfootnote11anc" name="sdfootnote11sym">11</a> DALLARI, Annaluza Bolivar. Impactos da Nova Lei Geral de Proteção de Dados na Pesquisa com Seres Humanos. <a href="https://www.conjur.com.br/2018-nov-02/analluza-dallari-impactos-lgpd-pesquisa-seres-humanos">https://www.conjur.com.br/2018-nov-02/analluza-dallari-impactos-lgpd-pesquisa-seres-humanos</a> - Disponível em: 20/03/2019.</p>
</div>
<div id="sdfootnote12">
<p><a href="#sdfootnote12anc" name="sdfootnote12sym">12</a>Art 5, X, Lei nº 13.709/18. Tratamento: toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração;</p>
</div>
<div id="sdfootnote13">
<p><a href="#sdfootnote13anc" name="sdfootnote13sym">13</a>Art. 5, I, da Lei 13.709/18. Dado Pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável</p>
</div>
<div id="sdfootnote14">
<p><a href="#sdfootnote14anc" name="sdfootnote14sym">14</a> Art. 5, III, da Lei 13.709/18. Dado Anonimizado: dado relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento;</p>
</div>
<div id="sdfootnote15">
<p><a href="#sdfootnote15anc" name="sdfootnote15sym">15</a> Art. 11, I, da Lei 13.709/18.</p>
</div>
<div id="sdfootnote16">
<p><a href="#sdfootnote16anc" name="sdfootnote16sym">16</a> II.23, da Resolução CNS nº 466/2012.</p>
</div>
<div id="sdfootnote17">
<p><a href="#sdfootnote17anc" name="sdfootnote17sym">17</a> IV.3, da Resolução CNS nº 466/2012.</p>
</div>


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