Marcela Rage Pereira

No Brasil, com o advento da Lei nº 13.344 de 6 outubro de 2016, foi instituído o Dia Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, comemorado anualmente dia 30 de julho.
O Marco Legal do Tráfico de Pessoas, inaugurado em 2016, apresenta princípios norteadores do enfrentamento ao tráfico, medidas de atenção à vítima, bem como de prevenção e repressão à prática. Além disso, incluiu no Código Penal o art. 149-A que dispõe sobre o crime de tráfico de pessoas.
O referido tipo penal, crime de ação múltipla, estatui que incorre na figura típica o sujeito que praticar os verbos núcleos, quais sejam, agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, valendo-se de ameaça, violência, coação fraude ou abuso, para alcançar determinado fim.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Com efeito, a prática dos verbos deve visar a alcançar uma das cinco finalidades elencadas no tipo penal: i) remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo; ii) submissão a trabalho em condições análogas à de escravo; iii) submissão a qualquer tipo de servidão; iv) adoção ilegal; e v) exploração sexual.
Importa salientar, que o crime de tráfico de pessoas é formal, isto é, basta o sujeito ativo aliciar alguém, valendo-se de coação, com a finalidade de submissão a condições análogas às de escravo, por exemplo, que o ilícito restará configurado. Caso o trabalho escravo se materialize, o autor da prática responderá também por esse fato típico, em concurso material de crimes.
A alteração legislativa, ocorrida em 2016, representou medida para o Brasil se adequar aos seus compromissos internacionais, em especial aos assumidos com a ratificação do Protocolo de Palermo, que entrou em vigor no âmbito internacional e, posteriormente, foi internalizado pelo decreto nº 5.017 de 12 de março de 2004.
No referido acordo global, concebido pelas Nações Unidas, os Estados partes se comprometeram a desenvolver ações para prevenir e combater o tráfico de pessoas, em especial o de mulheres e crianças.
<blockquote class="jota-article__eye">No entanto, insta questionar se de fato tais regramentos têm sido capazes de oferecer respostas eficazes às vítimas desses crimes, bem como de fazer cessar a prática desse ilícito que assola, dentre outros bens jurídicos, a liberdade individual e a dignidade da pessoa humana.</blockquote>
Segundo o Relatório Global sobre Tráficos de Pessoas de 2016, lançado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC)[1], mulheres e meninas correspondem a 71% das vítimas do tráfico no mundo, sendo que 1 a cada 4 vítimas são crianças.
Nessa seara, problematiza-se a importância de (re)pensar o tráfico de pessoas sob a ótica do gênero, enfocando o fenômeno como algo que atinge, sobretudo, mulheres. É preciso deixar demarcado o sujeito do qual se fala – no caso sujeitas –, a fim de torná-las visíveis.
Tal exercício, vai além da morfologia das palavras, vez que ao falar somente em “pessoa”, substantivo neutro por excelência, a mulher se perde no horizonte visível do problema, tornando, por conseguinte, os casos de exploração e de violência invisibilizados e subnotificados.
Na América do Sul, segundo os dados coletados pelo UNODC, 4.500 vítimas mulheres (57% do total), foram recrutadas para fins de exploração sexual.
Quando se analisa o Brasil, isoladamente, tem-se que no ano de 2018, a cada 4 dias, registrou-se 1 caso de tráfico de pessoas[2]. As denúncias recebidas no Disque 100, mostraram que 25% dos casos envolvem exploração sexual e 53,1% das vítimas são do sexo feminino.
Fixada a premissa de que o perfil da vítima apresenta forte conotação de gênero, importante também é apresentar a posição ocupada pelo Brasil, como a de país de origem, trânsito e destino das vítimas do tráfico[3].
Nesse diapasão, as estatísticas apontam que as vítimas brasileiras são encontras no exterior, em cenários de exploração sexual, ao passo que vítimas estrangeiras, como paraguaias e bolivianas, são encontradas no Brasil, para fins de trabalho escravo e servidão.
A fim de ilustrar, menciona-se o caso de 2017 envolvendo duas mulheres filipinas, que chegaram ao Brasil por intermédio de empresa especializada na contratação de domésticas estrangeiras. Após as imigrantes terem ido parar no hospital, com vômitos e náuseas, ocasionados pela falta de alimentação adequada e trabalho ininterrupto, descobriu-se que estavam trabalhando em condições análogas às de escravas, sendo submetidas a jornadas exaustivas, servidão por dívida e trabalho forçado.
As filipinas foram atraídas para o trabalho no Brasil por meio de promessas enganosas. A agência ofereceu como atrativo a possibilidade de adquirirem visto de residência no país após dois anos de trabalho e lei trabalhista que garantia limitação da jornada de trabalho e o pagamento de horas extras. Além de terem de pagar para obter a vaga de emprego, chegando aqui descobriram que a promessa de residência era enganosa, como também a lei trabalhista não seria cumprida.
Assim, trabalharam por meses como babá e empregada doméstica num condomínio de alta renda em São Paulo, sem descanso e alimentação suficientes. Elas chegaram a trabalhar 16 horas por dia, durante todo o período que estavam acordadas, e uma delas chegou a comer a comida do cachorro, que recebia pedaços de carne.
Apurou-se, posteriormente, em processo trabalhista, que o empresário, responsável pela empresa de captação de domésticas estrangeiras, aliciou pelo menos 70 mulheres filipinas no período de dois anos, com as promessas irreais de trabalho supramencionadas[4].
O caso narrado desperta atenção pela extrema violação de direitos a que as mulheres foram expostas, tendo em vista a negativa de alimentação e a vultosa jornada de trabalho imposta, condições que para muitas brasileiras não são mais aceitáveis, tendo em vista os avanços na legislação que rege o trabalho doméstico.
Por outro lado, é imprescindível chamar atenção para a rentabilidade do tráfico de pessoas, que movimenta anualmente 32 bilhões de dólares no mundo[5]. Segundo dados da UNODC, em relação ao ranking de lucratividade do crime organizado, o tráfico de pessoas só fica atrás do tráfico de drogas e do tráfico de armas.
No que tange à realidade Filipina, estima-se que as remessas de trabalhadoras filipinas no exterior equivale a 10% do PIB do país, percentual que permite comparar o tratamento da exportação de mulheres filipinas com o de commodities.
Desta feita, aprofundar nos dados sobre tráfico de pessoas traz à tona uma realidade de exploração silenciada e naturalizada. Fatores ligados à vulnerabilidade, como a pobreza, a instabilidade política e econômica do país, a falta de serviços sociais e a falta de perspectiva de futuro, facilitam o engodo dos aliciadores.
Nessa toada, para que o enfrentamento ao tráfico de pessoas se mostre eficaz, é necessário refletir o porquê de determinadas mulheres serem o principal alvo desse crime, desconstruindo o ideário escravagista de tratá-las como mercadorias e naturalmente destinadas a servirem, seja sexualmente, seja no trabalho doméstico.
Sobretudo, é preciso blindá-las dos fatores sociais que as colocam expostas ao aliciamento, como se este fosse a chave para entrar no mundo dos sonhos e não o seu verdadeiro grilhão, como de fato se revela. Enfim, enxergar verdadeiramente as mulheres traficadas para fins diversos deve ser o ponto de partida para que se possa promover o real enfrentamento ao tráfico de pessoas.
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[1] Disponível em: &lt;https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2017/03/quase-um-terco-do-total-de- vitimas-de-trafico-de-pessoas-no-mundo-sao-criancas-segundo-informacoes-do-relatorio-global- sobre-trafico-de-pessoas.html&gt;. Acesso em 25 de julho de 2020.
[2] Disponível em: &lt;https://www.metropoles.com/brasil/direitos-humanos-br/a-cada-4-dias-brasil- registrou-um-caso-de-trafico-de-pessoas-em-2018&gt;. Acesso em 25 de julho de 2020.
[3] Disponível em: &lt;https://www.unodc.org/documents/lpo- brazil/noticias/2014/07/Relatorio_Dados_2012_-_press_quality.pdf&gt;. Acesso em 25 de julho de 2020.
[4] Disponível em: &lt;https://www.jusbrasil.com.br/processos/166950064/processo-n-1001643- 3220175020605-do-trt-2&gt;. Acesso em 25 de julho de 2020.
[5] Disponível em: &lt;https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2012/07/16-unodc-lanca-campanha- global-sobre-crime-organizado-transnacional.html&gt;. Acesso em 25 de julho de 2020.

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JOTA

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