Mayra Cotta
Advogada. Professora da New School e fundadora da Bastet Compliance de Gênero.
Este é o terceiro artigo de uma série que se propõe a discutir as ferramentas que uma consutoria de compliance de gênero com foco em prevenção e enfrentamento ao assédio sexual pode oferecer. Os artigos anteriores trataram dos princípios gerais e das linhas de atuação deste tipo de compliance, bem como das possíveis maneiras de se lidar com casos específicos que surjam dentro de uma empresa ou organização. Agora, o foco será na restauração do ambiente de trabalho, no momento posterior à denúncia e apuração de um caso específico. Afinal, um chefe assediador deixa para trás uma espécie de terra-arrasada que precisa ser recuperada. Um ambiente de trabalho marcado por essas práticas não retorna a um funcionamento saudável automaticamente, ainda que o assediador seja afastado ou demitido.
A reconstrução do ambiente de trabalho no qual um caso grave de assédio sexual foi denunciado ou no qual esta prática era corriqueira e naturalizada traz dois desafios distintos. Primeiro, é necessário repactuar as regras de comportamento, a fim de se estabelecer de maneira inequívoca as práticas que não devem ser reproduzidas ou toleradas no ambiente de trabalho. Segundo, a empresa ou organização precisa criar canais e estruturas internas para que eventuais problemas possam ser imediatamente endereçados e reparados, a partir de processos organizados e previamente estabelecidos.
O reconhecimento das falhas que de alguma forma permitiram a ocorrência de problemas é o pressuposto para que a estratégia de restauração do ambiente de trabalho seja efetiva.
Mais uma vez, o princípio restaurativo oferece um pilar fundamental desta abordagem. De acordo com ele, todo problema que ocorre em um determinado espaço oferece uma oportunidade para entender melhor aquele ambiente. Nesse sentido, um caso de assédio sexual, por exemplo, não deve ser entendido simplesmente como um problema que decorre de um comportamento individual, mas algo que reflete questões sistêmicas. A partir de um caso específico, é possível portanto identificar as condições que permitiram a sua ocorrência e criar estratégias para transformá-las.
Na prática, isso significa que um chefe que usava a sua posição de poder para assediar sexualmente suas funcionárias e seus funcionários muito provavelmente estava cercado por uma estrutura de comportamentos e práticas problemáticas, que não necessariamente deixarão de ocorrer, ainda que este chefe seja afastado. Se estes outros comportamentos considerados menos graves que o assédio sexual não forem também diretamente endereçados, o afastamento ou responsabilização do assediador terá um efeito limitado. Ainda, estruturas que reproduzem desigualdades de gênero internamente na empresa ou organização - como desigualdade salarial entre homens e mulheres e representação majoritariamente masculina em posições de chefia - precisam necessariamente ser corrigidas.
O paradigma restaurativo também amplia o número de interessados na construção de soluções para os problemas identificados. Em um círculo de justiça restaurativa, participam não apenas os diretamente envolvidos em um caso específico de assédio sexual, mas também outras pessoas que pertencem àquele ambiente de trabalho. A idéia é que a inclusão de mais pessoas no processo decisório para a solução de um caso específico contribui para que a resposta de fato ofereça uma resolução satisfatória a todos os envolvidos. Esta resposta pode consistir em medidas distintas, que vão desde a reparação das pessoas prejudicadas pelos comportamentos problemáticos à efetiva responsabilização de quem se comportou mal.
A facilitação de processos coletivos para a repactuação das regras de comportamento também é um serviço fundamental que uma consultoria de compliance de gênero com foco em assédio sexual pode oferecer. Processos coletivos que geram resultados mutuamente acordados têm mais chances de efetivamente durar e conseguem criar e implementar procedimentos que fornecem soluções sustentáveis no tempo. O estabelecimento de novos acordos coletivos e regras de comportamento, por meio da facilitação de dinâmicas coletivas, é um caminho promissor, também capaz de desenhar as estruturas internas necessárias para recebimento de reclamações e acompanhamento de casos de assédio sexual e outras violências de gênero.
A construção de capacidades permanentes para lidar com eventuais problemas que surjam é parte das ações a serem tomadas por todas as empresas e organizações comprometidas com o combate e a prevenção ao assédio sexual. As empresas e organizações precisam ter canais internos de denúncia, administrados por quem tenha poder de tomar decisões e conduzir os processos de responsabilização e reparação. Esta estrutura deve ter sua autoridade garantida por meio de uma atuação independente e livre de ingerências da diretoria. É necessário que esteja bem estabelecido onde as vítimas podem ir para denunciar, qual o procedimento que será adotado para se lidar com o caso e quais as medidas cabíveis para cada tipo de problema. O canal de denúncia é responsável por garantir a escuta qualificada de vítimas e o sigilo necessário até que o melhor procedimento de ação seja determinado.
Por fim, espaços permanentes de diálogos sobre as relações de trabalho e avaliações regulares para determinar se os problemas estão sendo efetivamente endereçados devem fazer parte do cotidiano de qualquer empresa ou organização séria. Grupos auto-organizados de mulheres institucionalmente apoiados, por exemplo, têm se mostrado potentes mecanismos de prevenção de problemas. É também um espaço onde comportamentos problemáticos menos graves podem ser discutidos prontamente, antes de virarem casos de assédio sexual.
No próximo e último artigo dessa série, será discutida a frente de trabalho mais eficaz no enfrentamento ao assédio, qual seja a prevenção. Por meio de um esforço proativo, empresas e organizações podem endereçar comportamentos problemáticos e os elementos típicos de um ambiente potencialmente tóxico antes que escalem para o assédio sexual. Auditoria externa, etnografia institucional e treinamentos educativos são alguns dos mecanismos disponibilizados por um compliance de gênero que podem dar suporte a estas iniciativas preventivas. De fato, há uma série de medidas concretas que podem contribuir efetivamente para a construção de um mundo do trabalho livre de assédio sexual.
O episódio 47 do podcast Sem Precedentes analisa o julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiu pela inconstitucionalidade da reeleição dos presidentes do Congresso. Ouça: