Jéssica Acocella

Preocupação frequente – e mais que compreensível – dos gestores públicos no âmbito de processos licitatórios gira em torno das condições econômico-financeiras das empresas contratadas pela Administração. Afinal, a incapacidade do parceiro privado em suportar todos os investimentos e custos necessários coloca em risco o cumprimento das obrigações contratuais e a adequada entrega do objeto pretendido pelo poder público.
A fim de dar amparo à Administração Pública para avaliar a aptidão financeira das empresas proponentes, tanto a Lei 8.666/1993 (cuja vigência encerrará no próximo 1º de abril) como a nova <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-licitacoes">Lei de Licitações</a>, a Lei 14.133/2021, estabelecem, na fase de habilitação do certame, rol exaustivo de requisitos de qualificação econômico-financeira. Nos termos da nova lei, a comprovação deve se dar por meio de: balanço patrimonial, demonstração de resultado de exercício e demais demonstrações contábeis dos dois últimos exercícios sociais, bem como certidão negativa de feitos sobre falência expedida pelo distribuidor da sede do licitante (art. 69).
Registre-se que a exigência de garantia de proposta, prevista na Lei 8.666/93 como documento relativo à qualificação econômico-financeira, passou a ser estabelecida, na Lei 14.133/21, como documento de pré-habilitação, a ser apresentado no momento da entrega da proposta e limitado a 1% do valor estimado para a contratação. Com a exigência de tal garantia pretende-se assegurar a idoneidade da proposta econômica, sua manutenção durante a respectiva vigência e que o parceiro privado não desista imotivadamente do compromisso assumido.
Por outro lado, em ambos os regimes jurídicos – da antiga e da nova lei –, são regulados impedimentos de licitar e contratar pessoas físicas e jurídicas que se enquadrem em determinadas categorias, a exemplo do autor de anteprojeto, projeto básico ou projeto executivo relacionados a obras, serviços ou fornecimentos licitados; e pessoas físicas ou jurídicas que se encontrem, ao tempo da licitação, impossibilitadas de participar da licitação em decorrência de sanção que lhe foi imposta. Tais impedimentos, portanto, consistem em verdadeiras barreiras de entrada nos processos públicos concorrenciais.
No entanto, do rol legal não se extrai qualquer impedimento relacionado à capacidade econômico-financeira dos potenciais concorrentes. Tratam-se, de forma geral, de restrições impeditivas voltadas à preservação de valores como moralidade, imparcialidade e isonomia das contratações públicas.
Ocorre que, tendo em vista a preocupação em se permitir o acesso, ao certame, apenas de empresas que disponham de viabilidade financeira para executar o objeto contratual pretendido, não raro encontra-se a previsão, em editais de licitação, de impedimento de participação de empresas que estejam em recuperação judicial.
Trata-se, porém, conforme <a href="https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/02012023-Segunda-Turma-reafirma-entendimento-de-que-empresa-em-recuperacao-judicial-pode-participar-de-licitacao.aspx">recentíssimo entendimento corroborado pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça</a>, de exigência ilegal, à luz do rol estabelecido na lei de licitações. Isso porque, conforme esclarecido pela Corte, a boa situação financeira das empresas parceiras do poder público pode ser verificada a despeito de estar em processo de recuperação judicial, inclusive por meio da apresentação das certidões negativas de débitos fiscais previstas em lei – além dos já mencionados documentos de qualificação econômico-financeira pertinentes à fase de habilitação.
Frise-se que, em que pese a referida decisão ter sido proferida à luz da Lei 8.666/93, o mesmo racional parece ser extensível ao regime que decorre da Lei 14.133/21, que tampouco estabelece quaisquer óbices às empresas em recuperação.
Com efeito, realizando-se interpretação sistemática entre os regimes jurídicos licitatório e empresarial/falimentar, tal entendimento está em perfeita consonância com os princípios da preservação, da função social da empresa e do estímulo à atividade econômica, centrais no regime da Lei 11.101/2005 – Lei de Falências e Recuperação.
Isso porque, sem negar prima facie a participação de empresa em processo de recuperação, aplica-se a vontade expressa pelo legislador viabilizando à sociedade empresária, de forma efetiva e por meio de parceria com o poder público, a <a href="https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&amp;sequencial=2043093&amp;num_registro=201902019666&amp;data=20221205&amp;formato=PDF">superação da situação contingencial</a> de crise econômico-financeira e, consequentemente, a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores.
Acrescente-se, haja vista a existência de mecanismos legais e efetivos capazes de mitigar os riscos para o poder público em face de eventual insuficiência financeira do parceiro privado ao longo da execução contratual, vedar a participação de empresa em recuperação judicial iria de encontro com o princípio da proporcionalidade, o qual, no tocante especificamente aos processos licitatórios, impõe que os parâmetros e restrições editalícios não extrapolem os limites estritamente necessários ao cumprimento contratual. Exigências indevidas comprometem, em última análise, a ampla competitividade dos certames.
Nesse sentido, <a href="https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2010/principio-da-proporcionalidade-e-seus-fundamentos-andrea-neves-gonzaga-marques#:~:text=%22Um%20meio%20%C3%A9%20proporcional%20se,import%C3%A2ncia%20de%20satisfa%C3%A7%C3%A3o%20do%20outro">estabelece o subprincípio da necessidade</a> que: “o meio não será necessário se o objetivo almejado puder ser alcançado com a adoção de medida que se revele a um só tempo adequada e menos onerosa”.
Com isso, as contratações públicas, por meio do grande potencial de mobilização de diversos setores da economia – no Brasil, estima-se que as <a href="https://epge.fgv.br/conferencias/apresentacao-do-relatorio-da-ocde-2018/files/relatorios-economicos-ocde-brasil-2018.pdf">licitações públicas movimentem cerca de 10% do PIB nacional</a> –, podem gerar importantes efeitos positivos sobre o mercado ao impulsionar, ainda que indiretamente e com as devidas salvaguardas para o poder público, empresas em crise.<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>

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JOTA

Exigência de garantia de proposta, prevista na Lei 8.666/93, passou a ser documento de pré-habilitação na Lei 14.133/21

Empresas em recuperação judicial e o acesso liberado às contratações públicas

Exigência de garantia de proposta, prevista na Lei 8.666/93, passou a ser documento de pré-habilitação na Lei 14.133/21