Em março de 2013, há quase dez anos, o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4917, requerendo cautelarmente a suspensão de diversos dispositivos[1] da Lei 12.734/2012, que alteravam as Leis 9.478/97 e 12.321/2010, acerca da distribuição dos royalties de petróleo. O hoje ministro do STF Luís Roberto Barroso, então procurador do Estado do Rio de Janeiro, assinava a inicial com o governador.
A tese jurídica a embasar o pedido era de que o pagamento de royalties e participações especiais inseria-se no pacto federativo originário da Constituição de 1988, como contrapartida ao regime diferenciado do ICMS incidente sobre o petróleo, bem como envolvia compensação aos ônus ambientais e da demanda por serviços públicos gerados pela exploração do recurso natural.
O periculum in mora a respaldar o deferimento da cautelar, como consta da inicial[2], era de que já em 2013 a perda de receita do Rio de Janeiro seria de R$ 1,6 bilhão, quase a totalidade dos R$ 1,9 bilhão do seu orçamento livre de vinculação para aquele ano, estimando que as perdas totais chegariam a R$ 27 bilhões até 2020.
Projeção que hoje se mostra tímida, haja vista a variação cambial e a elevação da produção de petróleo no Brasil na última década.
Fato é que os royalties e as participações especiais do Rio de Janeiro, descontadas as vinculações legais, já haviam sido incorporadas ao Rioprevidência desde 2005[3], sendo utilizadas para o pagamento dos aposentados e pensionistas do estado.
A finalidade previdenciária só não abrange a totalidade dos repasses, porque, através do Decreto Estadual 43.911/2012, houve o destaque de 13% das transferências para o pagamento da dívida contratual do estado com a União.
Vale dizer que a ADIn 4917, juntamente das ADIns conexas 4916, 4918, 4920 e 5038, teve julgamento conjunto incluído na pauta do STF em cinco oportunidades: uma em 2014, duas em 2019 e duas em 2020, tendo sido sempre excluídas do calendário pela presidência, em atendimento a pedidos dos estados produtores.
Entre 2019 e 2020, no âmbito do Colégio Nacional dos Procuradores-Gerais dos Estados (Conpeg), foi formada uma comissão de conciliação, com o intuito de se debater os termos de um possível acordo, com participação dos três maiores estados impactados pela produção de petróleo e gás (RJ, SP e ES) e por três representantes dos estados não impactados (GO, PI e RS).
Em março de 2020, os trabalhos da comissão foram suspensos em razão da pandemia de Covid-19. Na sequência, em abril, o Espírito Santo apresentou uma proposta de acordo, que foi emendada em setembro pelo Rio de Janeiro. No entanto, em outubro, a Confederação Nacional de Municípios se manifestou em sentido contrário aos termos propostos.
Ao que tudo indica, este seria mais um daqueles processos que, em razão da sua relevância, complexidade e impacto no patrimônio e renda dos entes federativos, ficaria mais alguns anos “em banho-maria”, aguardando solução consensual. No entanto, em 19 de dezembro de 2022, o STF editou a Emenda Regimental 58.
A leitura sistemática do inc. V do art. 21 a ser incluído no RISTF c/c art. 2º da Emenda Regimental 58 (regra de transição) nos leva a crer que a cautelar deferida pela ministra Cármen Lúcia em 2013 terá de ser submetida ao plenário no prazo de 90 dias úteis, a contar da publicação da emenda no Diário de Justiça Eletrônico, a ocorrer em janeiro. Dessa forma, o prazo máximo para referendo da cautelar pelos demais ministros deve ser até maio.
O Rio de Janeiro trata como tragédia o risco da cautelar não ser referendada, haja vista que, dos R$ 102,35 bilhões da LOA de 2023, royalties e participações especiais respondem por quase R$ 27,7 bilhões[4], ou seja, quase 30% do orçamento anual.
Com valores dessa monta em jogo, é certo que o Rio de janeiro estará insolvente se não for mantida a cautelar, e, muito pior, os municípios que já vivem problemas graves de orçamento por conta da LC 194/2022 (redução forçada do ICMS dos combustíveis) serão ainda mais prejudicados.
Nessa toada, há de se reconhecer o bom direito dos estados produtores, já que não pode ser considerada constitucional regulamentação do § 1º, do art. 20 da CRFB/88 que ignore a natureza compensatória prescrita pelo constituinte originário.
Sem perder de vista que o pacto federativo originário previu compensação direta entre recebimento de royalties e perda de ICMS (art. 155, § 2º, X, b). Situação de desequilíbrio que se demonstra facilmente pelo fato de o Rio de Janeiro responder pelo 2º PIB do país, mas ter apenas a 13ª arrecadação de ICMS per capita e somente a 9ª receita corrente líquida per capita[5] entre todas as unidades federativas.
A propósito disso, a arrecadação do governo federal no Rio de Janeiro em 2021 foi de R$ 202 bilhões, enquanto as transferências federais para o governo do estado e municípios do RJ no mesmo período somaram apenas R$ 48,4 bilhões.
Esse é o tamanho do problema fiscal que vivenciamos há décadas, que nasce da absorção das obrigações do estado da Guanabara (antigo Distrito Federal), passando pela emenda Serra na Constituinte – que impediu a tributação do petróleo – até a Emenda Constitucional 33/2001, que determinou a cobrança do ICMS dos combustíveis no destino e não na origem.
O pacto federativo tem sido um mau negócio para o Rio de Janeiro. É certo que, por circunstâncias diversas, os estados da Federação enfrentam dificuldades econômicas/financeiras, mas isso não autoriza o confisco de verbas compensatórias, verdadeira infidelidade federativa praticada pela maioria votante no Congresso Nacional.
É preciso se afastar da ilusão de que essa matéria poderia ser resolvida no Legislativo. O pano de fundo da lei de partilha dos royalties e participações é retirar recursos dos estados produtores e entregar aos não produtores. E, de que se tenha notícia, só no kung fu 126 derrotam 387 (no caso da Câmara dos Deputados), ou 9 superam 72 (no caso do Senado).
Essa é uma disputa eminentemente constitucional, e somente o STF poderá fazer justiça a quem perdeu bilhões em ICMS na Constituição de 1988 e sofre sozinho todo o risco ambiental pela exploração da atividade.
[1] Dispositivos impugnados: arts. 42-B; 42-C; 48, II; 49, II; 49-A; 49-B; 50; 50-A; 50-B; 50-C; 50-D; e 50-E, da Lei 9478/97, incluídos pela Lei 12.734/2012.
[2] Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3511887&prcID=4379376&ad=s
[3] Decreto Estadual 37.571/05, alterado pelos Decretos 38.162/05 e 42.011/09
[4] Estimativa que considera barril de petróleo a U$ 93,75, e dólar em R$ 5,10. Disponível em http://www.fazenda.rj.gov.br/sefaz/content/conn/UCMServer/uuid/dDocName%3aWCC42000040712
[5] Números de 2001. Fonte: Assessoria Fiscal da Alerj, com base nos dados da Receita Federal e no Portal Transparência do Governo Federal.